«Emerge o espírito do ser da verdade na cisão, emerge plenamente como aquele a quem a cisão não afecta em ponto algum e de maneira alguma. Pois ele é, como o que autenticamente é, e nenhum ser é e se não diz de ser algum, o único para nós do unívoco da visão e de toda a ciência humana ou divina, o que assume o Nada, e ele é, como se fosse, no princípio de toda a cisão, e a suporta em si como aquele a quem carência alguma e desejo algum e a amor algum afecta, e de nenhuma acção carece nem paixão. Esse, claro mistério e pleno sentido da união suma e inalterada de todo o ser e toda a verdade, é o de que participa não só tudo quanto pensa e se pensa e é de algum modo consciente, mas tudo quanto é para nós como o que nem pensa nem se pensa nem se revela consciente e é apenas como objecto, imagem para a consciência finita. Por ele emerge da cisão com sentido tudo quanto vemos ou não vemos, sabemos ou temos por sabido, ignoramos ou temos ignorado, e tudo quanto apenas a alma profunda longinquamente assinala, tudo quanto só nos é dado apreender quase sempre remoto, indeciso e incerto».
9. Os leitores que pensam – e só escrevemos para leitores que pensam – já relacionaram quanto vimos dizendo sobre civilização, sua exclusiva formação pela filosofia, sua radicação, desenvolvimento e conservação nos povos que existem como nações e repúblicas, se organizam em Estados e se unificam em Pátrias, os leitores já relacionaram e formaram o silogismo da iniludível interdependência de civilização, pátria e filosofia. Tal como se diz numa língua, a filosofia situa-se numa Pátria e por ela se expande em civilização.
A filosofia francesa é o racionalismo cartesiano, a filosofia alemã é o racionalismo idealista, a filosofia portuguesa é a teoria da verdade.
10. Considerada no seu sistema – e todo o pensamento filosófico é sistemático - a “filosofia portuguesa” enuncia, reúne e articula as teses que lhe são peculiares. A primeira das teses, primeira na ordem mais didáctica de exposição do sistema e também a que imediatamente singulariza a “filosofia portuguesa”, é aquela que José Marinho enuncia assim: “o ser enquanto ser é ilusório”.
Álvaro Ribeiro, por sua vez, demonstra como o que se diz o ser não é mais do que a gratuita substantivação, com a suposta substancialização do que se pretende substantivar, da forma verbal intransitiva utilizada para indicar a predicação que, desde a Escolástica até Kant e até às escolas dos nossos dias, erradamente se confunde com o logismo e se faz deturpar no juízo para chegar à fórmula kantiana adoptada por toda a filosofia moderna posterior: “pensar é julgar”.
Afirma-se, pois, que “o ser enquanto ser é ilusório”. Ao dizer-se ser ou ao dizer-se que é, significa-se, primeiro, a relação com um predicado que vai dizer-se a seguir, significa-se depois o acto ou a possibilidade de pensar, visto que pensar é descobrir predicados ou atributos, mas não se significa o que quer que seja dos predicados, não se significa o ser.
Orlando Vitorino |
11. Deve entender-se por teoria o que é visto e cumulativamente pensado. Por isso, José Marinho começa a exposição da TEORIA pela visão a que chama visão unívoca. Unívoca, diz ele, para evitar o termo “universal”, para evitar “o equívoco universal”.
É essa visão a da unidade do ser e da verdade. Aqui, bem como no título dado à exposição da TEORIA, “Teoria do Ser e da Verdade”, estará vendo o iniciando mais apressado alguma incompatibilidade com a tese de que o ser é ilusório. Mas logo a incompatibilidade se desvanece quando se entender, como se deve entender, que o que aqui se diz ser é o que a verdade é.
Forçoso nos é adiantar que a verdade se torna verdade que é, ou se cinde em verdade e verdade que é, para poder saber-se a si mesma. Aqui tem início a “doutrina da cisão” e também desde já adiantamos que a TEORIA se compõe de duas doutrinas complementares: a doutrina da cisão e a doutrina do espírito. Pela cisão tem origem tudo o que há, todo o real. A cisão, porém, separa da verdade e na separação está a origem do erro e do mal. A doutrina do espírito restitui à verdade, em vez de separar une, descrevendo um movimento de retorno, inverso ao da cisão.
O que, por enquanto, importa é fixarmos que em tudo o que há está a verdade e que a visão unívoca é a visão disso mesmo, é portanto a comunicação da verdade. Diz-nos José Marinho que a todos os homens ela é dada, mas raros são aqueles que a não recusam.
Recusam-na, essencialmente, pelo temor de pensar, e de novo temos de referir o amor do saber, ou a filosofia, porque só ela é capaz de vencer o temor de pensar, tão comum aos homens.
12. Se, na ordem de exposição, o ponto de partida da TEORIA é a visão unívoca, na ordem do pensamento é a verdade.
Da verdade em si mesma, da verdade que não é, não há imagem nem representação alguma, não há conceito nem ideia.
José Marinho |
Da verdade não há conceito. Porque só há conceito do verdadeiro que é, como já sabemos, o que está contido na verdade. Os que, escolásticos e modernos, se arrogam conceber a verdade, são os mesmos que a reduziram a critério do verdadeiro e, depois, a certeza.
Da verdade não há ideia. Porque só há ideia do género em que se reúnem espécies e indivíduos e do geral em que se geram espécies e indivíduos.
Dizemos que da verdade só temos a noção. O étimo da palavra está presente em conhecimento e gnose, conhecimento do empírico e imanente, gnose do sublime e transcendente. Indefinidamente utilizada, portanto menos deturpada e cousificada, a noção preservou a sua própria referência a nous, ao espírito. E como o espírito paira sobre o real, sobre as águas do real, e “sopra onde quer”, como tão depressa está, ou substá, tão depressa não está, ou se esvai, como é cumulativamente insubstancial e substante, diremos que a noção é a que mais se adequa ao que podemos significar como saber da verdade. Porque tudo é para saber a verdade. Até o mesmo ser da verdade ou Deus.
13. Se assim chegamos aonde, na ordem do pensamento, tem início a TEORIA, convém, no entanto, uma prevenção.
Logo, na abertura da sua exposição da TEORIA, José Marinho nos adverte da inadequação do conhecimento à filosofia. A advertência vale o que vale a refutação que Álvaro Ribeiro faz do método, determinação característica do moderno pensamento científico e sua filosofia. Método, ou caminho, diz-nos Álvaro Ribeiro, é o que vai de um lugar conhecido até outro também conhecido. “Conhecimento, diz-nos José Marinho, supõe diferença entre ser e verdade, implica e significa distância e incoincidência real ou sempre virtual” enquanto na TEORIA, no “mais puro saber”, “não há distância de algum ser para ser, de alguma verdade para a verdade e saber a verdade”.
A alusão a Descartes, implícita na refutação do método, e a Kant, implícita na refutação do conhecimento, equivale à afirmação de nova singularidade da “filosofia portuguesa” perante a “filosofia moderna”. Alusão mais clara àqueles famosos pensadores norte-europeus acrescenta José Marinho: “o conhecimento surge como milenário e vão propósito frustrado ou adiado dos filósofos imprudentes em sua mesma prudência” o qual “sem nunca chegar a ser, queda anulado: anulado tal e tanto como no infindo e insubsistente decorrer que se assemelha infindo”.
14. Afastado o valor filosófico do conhecimento, adiantaremos que com ele se afasta o que tem sido, na modernidade, obsessiva preocupação: procurar no conhecimento científico a garantia do pensamento filosófico, referenciar a filosofia, domínio do pensamento e do saber, à ciência, domínio do método e do conhecimento.
O mesmo se dirá quanto à arte, à poesia, à política, à religião e, sobretudo, à ciência. A obsessiva preocupação dos filósofos modernos com a referenciação da filosofia à ciência só pode resultar, como tem resultado, fatal à filosofia. Na ciência, domínio do conhecimento, repetimos, ou da investigação para adquirir conhecimento e o aplicar com eficácia dominadora e técnica, a filosofia só pode encontrar obstáculos e embrenhar-se em selvas obscuras e ínvias.
De outras referenciações, em especial da arte e, na arte, da poesia, em especial da política, que é o mesmo que direito, poderá ela receber contribuições reais, positivas e até essenciais: da poesia, a metáfora que prepara a passagem à inferência e ao silogismo: do direito, os conceitos que, sendo-lhe próprios como o individualismo e a propriedade, nele encontram sua realização positiva e concreta.
Deve, pois, abandonar-se e combater-se a obsessiva preocupação da filosofia moderna pela ciência moderna e a eficácia que ela arvora em critério de verdade. A eficácia científica pouco ou nenhum valor de verdade possui e apenas resulta, como hoje está bem claro e aterrorizador, não no domínio das forças da natureza mas também na destruição da natureza.
A “filosofia portuguesa”, que é certo ter começado em Leonardo Coimbra, pela perseverante, esgotante e, ao fim, frustrada e decepcionante tentativa de dar a razão da ciência moderna, acabou por se desenvolver despreocupada, senão indiferente, com a certeza científica, remetê-la para o domínio do velho titanismo e procurar a feliz complementaridade noutros domínios; na arte, na poesia, na política, na religião, no direito, até na economia. Da ciência apenas quis reconstituir ou reactualizar o pensamento científico clássico e não deixou de atender àquele racionalismo cartesiano que o vazio cientismo das certezas e eficácias já hoje considera coisa extinta.
15. Havíamos, pois, alcançado os umbrais onde tem início a TEORIA. Havíamos já visto que, ao interrogarmo-nos sobre o que há, em vez de dizermos, como se ensina na escola, que “tudo é ser”, antes diremos que “tudo é verdade”. E já, quanto ao ser, sabemos porquê: porque o ser é ilusório, como expõe José Marinho; porque o que se diz o ser, como expõe Álvaro Ribeiro, é apenas um modo de dizer a receptividade da predicação.
Saberemos quanto à verdade, que ela contém todos os predicados possíveis pois é evidente que não pode haver predicado que não seja verdadeiro. Quando digo “o céu é azul” só o posso dizer porque é, na verdade, azul.
Claro que, levados pela milenária obsessão do “ser enquanto ser”, somos tentados a considerar que o predicado é verdadeiro, não porque se contenha na verdade, mas porque convém ao ser que, no caso será o céu; se, porém, reflectirmos um pouco, logo veremos que entender que “o céu é o ser” é o mesmo que entender que “o céu é o céu” e, dito, é dizer coisa nenhuma se logo não acrescentarmos que o céu é o céu porque é azul, porque recebe este e outros predicados afins. Deste modo o predicado constitui realidade de tudo o que há ou simplesmente a realidade ou simplesmente tudo o que há. E como nenhum predicado pode deixar de ser verdadeiro, até quando entendido como o que convém a esse nada que obsessivamente se diz o ser, temos de concluir que ser ele verdadeiro é estar contido na verdade, é pertencer à verdade. Não pode, pois, entender-se ele como verdadeiro por convir àquilo que predica, uma vez que isso que predica só é quando predicado.
A antiga definição de Miguel Psellius que faz da verdade a “adequação do pensamento à realidade” (adequatio res et intellectu), além de reduzir a verdade a um critério, é insustentável por maior que tenha sido a fortuna que tenha tido e ainda desde a Escolástica até à mais recente modernidade. E é insustentável precisamente pelo que demonstrámos: o pensamento é sempre pensamento da predicação, a realidade no predicado. O pensamento está, portanto, não na adequação à realidade, mas na adunação ou unidade dele próprio e do real, o que inclui aquela adequação.
O predicado está, pois, contido na verdade. E se o predicado é, unitivamente, pensamento e real, tudo é verdade, tudo é, não o ser, mas a verdade.
Da verdade dissemos que temos a noção que pelo pensamento, sua actividade, o espírito nos oferece. Essa noção, dizendo-nos que tudo é verdade, leva-nos a ter de considerar a verdade em si mesma, ou seja, a verdade que, contendo todos os predicados possíveis, é a unidade deles todos antes de se tornarem reais ou transcendendo-os quando e enquanto reais. Este é o ponto de partida da Teoria da Verdade ou da “filosofia portuguesa” (ibidem, pp. 7-9).
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