domingo, 11 de dezembro de 2011

A doutrina fadista (i)

Escrito por Álvaro Ribeiro








«Vive a teu modo. Não tomes
De estrangeiro a estranha ideia;
Alma e corpo têm medidas:
Não lhes serve a roupa alheia...».

António Correia de Oliveira («É Portugal que vos fala»).




Amália Rodrigues








«…os dois primeiros filmes sonoros portugueses são duas das obras mais interessantes que o cinema dedicou ao fado. A Severa, que Leitão de Barros rodou em 1933, e sonorizou em estúdios franceses, inspira-se na peça teatral de Júlio Dantas, e dá-nos um retrato castiço dos tempos de Severa, e da sua hipotética relação com o marquês de Marialva, em meados do século XIX (1848). Para lá dos elementos biográficos referentes à fadista e meretriz Maria Severa Onofriana (elementos esses muito romanceados e traindo a verdade histórica em certos aspectos), o filme de Leitão de Barros aborda um tema muito curioso e que mostra como o fado evoluiu no interior das classes sociais portuguesas, desde o tempo em que as influências vieram trazidas do lundu africano (via Brasil, e escravos) e do fandango de Sevilha (que está na base certamente do flamengo, já de si com influências da Índia e do Oriente) e se mesclaram com a realidade social e cultural portuguesa dos séculos XVII e XVIII.

Os escravos negros e as suas festividades devem ter-se fundido umbilicalmente (na verdade, fala-se mesmo de uma dança de origem africana a que era dado o nome de "umbigada") com a "arraia-miúda" branca que se divertia nos bairros populares e fora de portas de Lisboa. Depois foi esperar que a "gente da sociedade" (como o aqui citado marquês de Marialva) se interessasse ou pelas escravas negras ou pelas prostitutas brancas para estas começarem a penetrar nos ambientes da burguesia comerciante ou da aristocracia decadente, para o fado ser apreciado e depois cultivado nestes novos ambientes sociais.
A Severa refere bem esse resvalar do fado do terreiro do povo para os salões da sociedade, mostra o desdém de uns (sobretudo das damas ameaçadas pela licenciosidade das "fadistas") e o interesse de outros (sobretudo dos marialvas seduzidos pela mesma licenciosidade das "fadistas"), aponta o fascínio da nobreza e da burguesia pelo exotismo e pelos ambientes e personagens da boémia alfacinha, ilustrando de alguma forma a parte final de um percurso acidentado que conduziu o fado das sanzalas e da escravidão até aos palcos e aos salões». 

«O Fado no Cinema Português» (in Os Anos de Salazar, Centro Editor PDA, 2008, 15, p. 135).




A doutrina fadista



Alfama (Capital do Fado).



O fado é uma arte popular. O primeiro problema duma doutrina do fado consistirá, pois, em investigar quais sejam o verdadeiro significado e o real valor da arte popular.

Arte popular não pode ser entendida como arte que ao povo se dirige, descendo e simplificando, divulgando e degradando, até se tornar acessível ao público e à multidão. Arte popular não é o contrário de arte para raros apenas. Arte popular não é a arte que desce, é, pelo contrário, a arte que sobe, a que procura sempre uma expressão mais alta. O artista, que desce até ao povo, demonstra nesse movimento que do povo não provém; a sua missão cultural, por muito útil e valiosa que seja, é estranha ao povo. Tal como um professor de língua estrangeira; tal como um missionário ou um conquistador.

Não se pretende com isto dizer que se repudie a dádiva generosa dos artistas clássicos; antes pelo contrário. Para com o povo têm os artistas superiores a grande dívida, mais do que o grande dever, de o educar esteticamente; e sempre competia ao Estado como às mais altas instituições representativas da arte superior, realizar a expansão das obras-primas, e alargar o respectivo público. Devem ser dadas às gentes todas as possibilidades (especialmente as escolares e as financeiras), de emoção compreensiva do património artístico da Humanidade. Mas este movimento escolarizante que, sem ideia pejorativa, pode ser chamado de descida é totalmente diferente do movimento de subida.

Arte popular é aquela que do povo parte, que no povo tem a sua origem; cada aspecto da arte popular morre quando atinge certo grau do que se costuma chamar estilização; arte popular é aquela que começa por sê-lo, não aquela que acaba por sê-lo.

Convém, pois, não confundir arte popular com arte clássica, vulgarizada, diminuída; a expressão arte popular não pode designar simultaneamente, sem perigo de erro, duas actividades contrárias, mas não contraditórias.

Há quem negue a arte popular, como há quem negue o povo. Nesta negação está a base mais forte dos argumentos dos detractores do fado; há, porém, dezenas de fadistas que ao adversário concedem aquela premissa, não vendo que dessa concessão, dessa concordância, resultam, a breve prazo, a decadência do espírito fadista, e o definhamento da sua atitude polémica.






O fadista talvez seja levado a tal doutrina, quando impelido por um sentimento de justiça social, legítimo e louvável. Somente, saltando do sentimento de justiça para o ideal do igualitarismo colectivista, opõe à evidência de cada momento uma ilusão utópica e ucrónica, pois imagina possível uma sociedade sem povo, ou melhor, uma sociedade onde não haja a distinção entre povo e outras categorias sociais. Repare-se que não se critica neste ponto qualquer ideal político, o que está fora de discussão; chama-se apenas a atenção para a necessidade eterna da existência do povo, na sua peculiar função em qualquer organismo nacional. Haverá sempre indivíduos que queiram sair do povo; mas a ilusão está em querer, permita-se a frase, que todo o povo saia do povo, abandone o povo, deixe de ser povo. As flores e as folhas parecem querer sair do caule e da raiz; mas não é possível reduzir as plantas assim estruturadas somente a caule ou somente a flor; o fenómeno do fototropismo não vai de encontro ao valor e à dignidade da planta inteira, solidária e una.

Há povo – povo que se modifica, transforma e aperfeiçoa –, há arte popular radicalmente distinta da arte proveniente das outras camadas sociais.

Do estudo do folclore e da etnografia, em seus variadíssimos ramos, resulta bem evidente que existe uma mentalidade popular; mas, o que mais curioso parece, tal mentalidade popular, longe de ser docilmente formada pela alta cultura de origem estranha (ou estrangeira, ou clássica), muitas vezes se opõe, em misteriosa resistência, ao cultismo vampírico.

Leia-se os livros dos etnólogos portugueses, e consulte-se demoradamente o folclore: afirmar-se-á eloquentemente a arte popular, arte que do povo sobe para dizer e exprimir, para revelar uma alma.

O povo tem as suas profissões, os seus costumes familiares e locais, a sua maneira de reagir a todos os fenómenos colectivos, as suas danças, as suas canções, os seus provérbios, as suas locuções e o seu vocabulário, etc. – enfim uma cultura popular irredutível à cultura clássica, uma cultura que evolui e progride por leis internas e próprias, uma cultura que só morre quando atingida pelo crime.

Combater a arte popular, na intenção de extingui-la para substituí-la por arte burguesa ou aristocrática, ministrável ao povo em simplificações, resumos, pílulas, sessões baratas, etc. – é um crime. A vida é revelação de possibilidades; há que deixar o povo viver, revelar-se, exprimir-se. Mandar calar o povo, ensinar-lhe uma língua estranha, e pô-lo a ouvir o que outrem julgue superior, é um crime. Isto é: um delito social irreparável.

É já evidente, nesta altura dialéctica: que mereceria o nome de pedante todo aquele que levantasse a bandeira da rebelião contra o folclore e a etnografia; que mereceria o nome de bárbaro todo aquele que quisesse destruir as indústrias artísticas regionais, para as substituir por uma indústria de tipo único, talvez americana; que mereceria o nome de filisteu todo aquele que quisesse proibir as danças e as canções provinciais, do Minho à Madeira, para as substituir pela música estrangeira, difundida pela TSF ou pelas fanfarras locais. No entanto, se é compreensível o espírito de ódio à diversidade das manifestações populares, é ilógico e incompreensível o ódio votado somente a uma modalidade da música e da poesia populares, ao fado.






É demasiadamente conhecida a lengalenga dos detractores do fado; somente convém em primeiro lugar saber se a cada acusação ao fado não corresponde acusação igual, ou paralela, a outras expressões artísticas que os detractores respeitam, ou dizem respeitar. Valeria a pena colocar, lado a lado, os argumentos contra o fado e as excepções a favor de outras poesias, de outras músicas, de outras canções, quer nacionais, quer estrangeiras; valeria a pena, sim, porque ficaria demonstrado que contra o fado não há razões, mas apenas ódio.

Estranho jeito de ódio! Ódio ao povo, ódio proveniente de quem nas cidades do litoral não é povo!...

E repare-se bem: os detractores do fado pertencem mais à classe média – aos que do povo saíram há uma ou duas gerações –, do que à alta fidalguia, tão compreensiva de tudo quanto revele as virtudes da terra e da grei.

Na alta província, não pode haver ambiente desfavorável à arte popular local; não é possível um desprezo snobe pelo folclore. O fado tem o destino da arte popular na grande cidade do litoral e na grande capital. Se em Londres, Paris ou Berlim houvesse uma arte popular tão digna como o fado é em Lisboa, as classes médias dessas cidades comportar-se-iam segundo as leis da sociologia da cultura.

Que seria do nosso teatro ligeiro, da revista ou da opereta, se lhe extraíssem a beleza folclórica? Imagine-se a pobreza e o desgosto das cenas, dos quadros e dos actos!... Acontece, porém, que só os quadros de fado arreliam o snobismo burguês – esses mesmos quadros que exaltam enebriantemente o povo de Lisboa. Mas, por nobre contraste, o povo de Lisboa não pede a supressão do folclore provinciano, desse folclore que não briga com o gosto artístico dos detractores do fado, se acaso gosto artístico possuem.

O fado é arte popular, e arte do povo da cidade, especialmente dos bairros frequentados por trabalhadores marítimos.

Não se imagina bem o semeador ou a ceifeira, quer durante o trabalho quer durante a diversão, a cantar qualquer coisa de semelhante ao fado. A vida campesina, desde os trabalhos rurais até às feiras das vitórias, sempre activa e variada, de acordo com a saúde e a natureza, não oferece cambiantes emotivas que se possam captar numa canção como o fado. O gosto e o desgosto dos camponeses, por muito significativo que sejam, não revestem o carácter fadista, tão sensível no mundo urbano; o camponês vive as suas alegrias e as suas dores referindo-se à Natureza e à Providência, mas de modo nenhum ao Destino ou Fado (in Canção do Sul, Ano XV, números 187-189, Lisboa, 1-22/10/1937, pp. 2-3).






Continua

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