domingo, 13 de novembro de 2011

O génio da espécie (i)

Escrito por Arthur Schopenhauer







«No homem propriamente dito há qualquer coisa de não-biológico que activa o processo do sexo no momento em que atinge e movimenta o elemento físico conduzindo à fecundação. O instinto da procriação é um mito, sobretudo se o considerarmos à luz do finalismo selectivo imaginado pelos darwinistas ou por Schopenhauer. Não existe nenhuma ligação directa, isto é, vivida, entre o amor e a procriação».

Julius Evola («A Metafísica do Sexo»).


«...as necessidades da acção comum não são as mesmas para um formigueiro e para uma sociedade humana».


Henrique Bergson («A Evolução Criadora»).


«Da imitação da civilização das térmitas, o homem decadente passou à imitação da mais baixa das civilizações dos insectos: a das abelhas.

As velhas religiões conhecem sem dúvida os três estados:

As térmitas, que conservam o macho como incitador de forças numa autocracia perfeita;

As formigas, que se desinteressaram do macho para se democratizarem;

As abelhas, que suprimiram o macho e se mecanizaram totalmente.

Mais abaixo ainda estão as aranhas e os escorpiões, que devoram o macho».


Denis Saurat («A Religião dos Gigantes e a Civilização dos Insectos»).


«O socialismo é um matriarcado. Envolve, absorve e destrói as singularidades pessoais na uniformidade colectiva, como um grande seio maternal, e rodeia essa absorção de cuidados em que o Estado se imagina como uma grande mãe, providencialista, bonificadora, a todos obrigando, como as mães aos filhos, a viver em segurança: segurança contra a velhice, e substitui a família natural pelos lares da terceira idade; segurança contra a falta de habitação, e encerra toda a gente em bairros sociais a tantos metros quadrados por cabeça; segurança contra a invalidez e a doença, e cria as instituições da chamada "segurança social". Mas as coisas são o que são, e toda essa segurança matriarcal redunda em pobreza e servidão para todos. Sobre isso, redunda na mais desesperante banalidade. Banalidade, servidão e pobreza são as imagens dos países socializados. Mas o socialismo é terrível e, também, como as mulheres, tem a crueldade que foi simbolizada nas Amazonas, nas Euménides, nas Medeias, nas fúrias infernais, e assiste impávido ao cruel espectáculo da banalidade, da pobreza e da servidão a que sujeitou a sociedade dos homens».


Orlando Vitorino («Mulheres, Socialismo e Matriarcado», in A Capital de 4/11/85).





O génio da espécie




Qualquer inclinação amorosa, seja qual for a atitude etérea que afecte, tem, na realidade, todas as suas raízes no instinto sexual; e não é mesmo outra coisa senão um instinto especial, determinado, e perfeitamente individualizado. Deste modo, observemos o papel importante que o amor representa em todos os graus e em todas as fases, não só nas comédias e nos romances, mas também no mundo real, onde é, com o amor da vida, a mais poderosa e mais activa de todas as forças; ocupa continuamente as forças da parte mais jovem da humanidade, é o último fim de quase cada aspiração humana, tem uma influência perturbadora nos assuntos mais importantes, interrompe constantemente as actividades mais sérias, por vezes perturba as maiores inteligências, não tem escrúpulo em lançar as suas futilidades nos negócios de Estado e nos trabalhos dos sábios, chega até a introduzir as suas cartas meigas e as suas madeixazinhas de cabelo nas pastas dos ministros e nos manuscritos dos filósofos, não impede de ser todos os dias o causador dos piores e mais intrincados problemas -, rompe as mais preciosas relações, quebra os mais sólidos laços, torna vítimas ou a vida ou a saúde, a riqueza, a situação e a felicidade, faz do homem honesto um homem sem honra, do fiel um traidor, parece ser qual demónio hostil que se esforça por alterar, transtornar e destruir tudo; - sentir-nos-emos então prontos a gritar: Para quê tanto ruído, essa agitação, essa violência, essa angústia e essa miséria? Contudo, trata-se de uma coisa bem simples que cada um encontre a sua uma (1). Porque é que semelhante ninharia representa um papel tão importante e perturba sem cessar a vida regrada dos homens? – Mas, para o pensador consciencioso, o espírito da verdade desvenda pouco a pouco esta resposta: não se trata de uma coisa qualquer; longe disso, a importância do assunto é igual à seriedade e à violência com que é tratado. O fim último de todo o empreendimento amoroso, quer resvale na tragédia ou na comicidade, é de facto, entre as diversas finalidades da vida humana, o mais sério e o mais importante e merece a profunda atenção que todos lhe dedicam. Na realidade, esta questão é nada menos do que a constituição da geração futura.

(…) Todas as paixões amorosas da geração presente não são, portanto, para toda a humanidade, senão a séria meditação da composição da geração futura, da qual, por sua vez, dependem inúmeras gerações. De facto, não se trata, como em qualquer outra circunstância, da felicidade ou da infelicidade dos indivíduos, mas da existência e da constituição própria da humanidade futura: a vontade do indivíduo atinge, neste caso, a sua maior potência, como vontade da espécie. – É sobre este grande interesse que repousam o patético e o sublime no amor, a transcendência dos seus transportes e dos seus sofrimentos, que os poetas através dos milénios não se cansam de representar em exemplos infindos. Que outro assunto seria superior em interesse àquele que trata da felicidade da espécie? Porque o indivíduo é para a própria espécie o que a superfície dos corpos é para os próprios corpos. Eis porque se torna tão difícil motivar o interesse num drama onde se não introduza uma intriga amorosa; e, contudo, apesar da utilização no quotidiano que se lhe dá, o assunto nunca se esgota.

Quando o mero instinto sexual se manifesta na consciência de cada indivíduo de um modo vago e generalizado, sem objectivo preciso, é a vontade de viver em absoluto, exterior a todo o fenómeno, que irrompe. Quando num ser consciente o instinto do amor se apura num indivíduo, é essa mesma vontade que aspira a viver num novo ser, distinto, exacto e determinado. E, neste caso, o instinto sexual, na sua subjectividade, ilude a consciência, e sabe muito bem ocultar-se com a máscara de uma admiração objectiva, porque a natureza necessita desse estratagema para atingir os seus fins, a sua finalidade. Por muito objectiva e muito elevada que possa parecer a admiração por uma pessoa amada, a intenção é, na realidade, gerar um novo ser, determinado na sua natureza: demonstra-o com o facto de o amor não se limitar a um sentimento mútuo, mas exigir a posse, o essencial, ou seja, o prazer físico. A certeza de ser amado não poderia consolar a privação daquele que se ama; e, em semelhante caso, mais de um amante tem posto fim à sua existência. Sucede, pelo contrário, que existem indivíduos muito apaixonados que, não conseguindo ser correspondidos, se contentam com a posse, isto é, com o prazer físico.






É o que se verifica em todos os casamentos de obrigação, nos amores venais ou nos que se obtêm pela violência. Que um filho seja gerado, é esse o fim único, verdadeiro, de todo o romance de amor, embora disso os apaixonados não se apercebam: o modo e os meios para o atingir são acessórios. – As almas nobres, sentimentais, ternamente apaixonadas, podem protestar contra o áspero realismo da minha teoria; os seus argumentos não têm defesa nenhuma. Não é a constituição e o carácter preciso e determinado da geração futura, um fim infinitamente superior, infinitamente mais nobre que os sentimentos transcendentes e as suas quimeras ideais? Entre todos os fins que tem a vida humana, pode haver algum maior e mais importante? Só este explica os intensos ardores do amor, a seriedade com o qual ele se apresenta, a importância que atribui às coisas mais insignificantes que lhe dizem respeito e o condicionam. Não se deve esquecer esta finalidade, se quisermos explicar as inúmeras dificuldades, rodeios, esforços, esses tormentos sem fim visando a posse do ente que se ama, quando, em princípio, parecem tão pouco adaptados à situação. Porque é a geração futura, na sua determinação individual em absoluto, que tende para a existência através desses rodeios e desses esforços.

Sim, é ela própria que se movimenta já na selecção tão prudente, tão precisa, tão obstinada, que procura satisfazer esse instinto sexual que se chama o amor; é já a vontade de viver do novo ser, que os amantes podem e desejam gerar. Já na troca de olhares que se exprimem plenos de desejo se ilumina uma vida nova, se anuncia um futuro ser, completo e em harmonia. O desejo de uma união verdadeira, a fusão num único ser; esse ser que será gerado significará a extensão da sua própria existência e alcance da plenitude. Nele, os factores hereditários dos progenitores sobrevivem unidos. Pelo contrário, uma aversão recíproca e constante entre um homem e uma mulher resulta na impossibilidade de gerar senão um ser mal constituído, privado de harmonia interior, infeliz. O facto de Calderón descrever a impiedosa Semiramis, a quem chama uma filha do ar, como o fruto de uma violação, seguida pelo assassínio do marido, possui pois um profundo sentido.

Esta força imperiosa que atrai um para o outro, exclusivamente, dois indivíduos de sexo diferente, caracteriza a vontade de viver presente em toda a espécie: procura a realização segundo os seus objectivos na criança que esses dois seres podem gerar; terá do seu pai a vontade ou o carácter; da sua mãe, o intelecto, a constituição física provirá de ambos: as feições serão transmitidas algumas vezes pelo seu pai, a figura semelhar-se-á por vezes à da sua mãe, em conformidade com essa lei, aparente no hibridismo animal, que estabelece que o tamanho do feto se adapta ao do útero. Se é difícil explicar o carácter muito próprio e a individualidade de cada homem, não é menos difícil compreender o sentimento igualmente particular e íntimo que impele duas pessoas uma para a outra; na realidade, estes dois factores são apenas um. A paixão é implicitamente, o que a individualidade é explicitamente. O primeiro movimento para a existência, o verdadeiro punctum saliens da vida, é na realidade o instante em que os progenitores começam a amar-se – to fancy each other, como é expresso admiravelmente pelos ingleses, e, como já foi expresso, é da troca e da atracção dos seus olhares cheios de desejo que nasce o primeiro gérmen do novo ser, gérmen frágil, susceptível de desaparecer como todos os gérmens. Esse novo ser é, de algum modo, uma nova ideia platónica; e, como todas as Ideias, empregam um esforço denodado para atingir a sua manifestação no mundo dos fenómenos, ávidos de obterem a matéria favorável que a lei da causalidade lhes proporciona em partilha, assim essa ideia própria de uma individualidade humana tende com avidez e em causa extrema na sua realização fenomenal. Essa energia, essa violência, é objectivamente a paixão que os futuros pais experimentam um pelo outro. Tem graus infinitos cujos extremos poderiam ser caracterizados por “amor vulgar” e “amor divino” (Banquete, 180d-182a): - mas, quanto à própria essência do amor, é sempre a mesma e em toda a parte. Nos seus diversos graus é tanto mais forte quanto mais individualizada, ou seja, é tanto mais poderosa quanto a pessoa amada, pelas suas qualidades e pela sua constituição, é mais apta em satisfazer o desejo do amante e à necessidade que fixa a individualidade própria deste último.






O amor, na sua essência e desde o primeiro impulso, é dirigido para a saúde, para a força, para a beleza, para a juventude que é a sua expressão, porque a vontade deseja antes de tudo criar seres capazes de viver, com o carácter integral da espécie humana; o amor vulgar não vai mais longe. (…) Mas esses graus mais elevados nascem na perfeita sintonia entre dois seres, ou seja, o carácter do pai e o intelecto da mãe consumam na sua união esse ser determinado no qual a vontade de viver em si, presente em toda a espécie, experimenta o desejo; este é proporcional à grandeza da vontade e por este facto ultrapassa os limites de um coração mortal, tal como esses motivos ultrapassam a capacidade do intelecto individual. Eis pois a alma de uma grande e verdadeira paixão. Ora, quanto mais perfeita for a conveniência de dois seres em cada um dos pontos de vista a enunciar, mais forte será sua paixão mútua.

E como não existem dois indivíduos semelhantes em absoluto, todo o homem deve encontrar numa determinada mulher as qualidades em função de um ser a procriar. Quanto mais raro é esse encontro, mais raro é também o amor no qual a paixão é verdadeira. E porque cada um tem em si essa grande paixão, compreende-se a expressão que o génio dos poetas nos faz desse sentimento. Verificando-se que dessa paixão amorosa é unicamente visado o ser futuro e as qualidades que deve possuir, pode suceder que entre jovens, aliás agradáveis e bem conformados, nasça uma afinidade de sentimento, de carácter e de espírito que origine uma amizade alheia ao amor sexual; pode mesmo suceder que, sobre este último aspecto, haja entre eles uma certa aversão. Resultaria na ausência, aos filhos que deles nascessem, de harmonia intelectual ou física, e, em geral, a sua existência e a sua constituição não corresponderiam aos objectivos a que se propõe a vontade de viver no interesse da espécie. Pode suceder, pelo contrário, que apesar das incompatibilidades dos sentimentos, do carácter e do espírito, apesar da repugnância ou da aversão que provoquem, o amor sexual nasça e sobreviva, porque é cego. Se daí resultar um casamento, essa união será forçosamente infeliz.

Passemos agora a um exame mais detalhado do problema – o egoísmo possui em cada homem raízes tão profundas que a motivação pelo egoísmo é a única com a qual se pode contar seguramente para provocar a acção de um ser individual. A espécie, de facto, tem sobre o indivíduo um direito anterior, mais imediato e mais considerável que o efémero da sua individualidade. Contudo, quando se torna necessário que o indivíduo actue e se sacrifique pela sobrevivência e pelo desenvolvimento da espécie, o seu intelecto totalmente orientado para as aspirações individuais, logo que se apercebe da imperiosidade desse sacrifício, submete-se-lhe logo. Para alcançar o seu fim, torna-se necessário que a natureza ludibrie o indivíduo com uma certa ilusão, através da qual ele considere a própria felicidade no que não é, efectivamente, senão o bem da espécie; o indivíduo torna-se assim, inconscientemente, em escravo da natureza, no momento em que julga obedecer apenas aos seus desejos. Uma pura ilusão, desde logo desfeita, paira diante dos seus olhos e faz com que actue. Esta ilusão não é senão o instinto. É o instinto que, na maioria dos casos, representa o sentido da espécie, os interesses da espécie perante a vontade. Mas como a vontade se individualiza, deve ser iludida de modo a que conceba por intermédio do indivíduo o determinismo que o sentido da espécie tem sobre ela; assim, julga actuar em benefício individual, quando efectivamente apenas trabalha para a espécie, no sentido mais restrito. É no animal que o instinto representa o maior papel e que a sua manifestação exterior melhor se pode observar; mas quanto aos percursos secretos do instinto, como para tudo o que é interior, não podemos aprender a conhecê-los senão em nós mesmos. Conclui-se, é verdade, que o instinto tem pouco poder no homem, ou pelo menos que só se manifesta no recém-nascido, ao procurar apoderar-se do seio da mãe. Mas, na realidade, há um instinto muito determinado, bem evidente e principalmente muito complexo, aquele que preside à escolha tão específica, tão séria, tão íntima de um outro indivíduo tendo em vista a satisfação de uma necessidade sexual. Se apenas se ocultasse sob o prazer dos sentidos a satisfação de uma necessidade dominadora, a beleza ou a sua ausência no outro indivíduo seria diferente. A procura apaixonada da beleza, o valor que se lhe atribui, a escolha que se efectua, são alheios ao interesse próprio daquele que escolhe, embora este assim o pense mas, evidentemente ao interesse do futuro ser, no qual importa manter o mais possível integral e puro a forma humana. Na realidade, inúmeros acidentes físicos e inúmeras desgraças morais podem provocar a imperfeição nessa forma: apesar disso, é sempre de novo recuperado, graças a esse sentimento da beleza que vulgarmente dirige o instinto dos sexos, sem o qual o amor não passaria de uma necessidade revoltante.



O "Ovo do Mundo"



Estas considerações esclarecem luminosamente sobre a natureza própria de todo o instinto; como se depreende delas, o seu papel consiste quase sempre em fazer com que o indivíduo proceda para bem da espécie. Porque, evidentemente, a actividade de um insecto em procurar uma certa flor, um determinado fruto, um excremento ou um pedaço de carne, ou então, como o icneumon, a larva de outro insecto para aí depor os ovos; a indiferença com que enfrenta o trabalho e o perigo quando se trata de o conseguir, são muito semelhantes à preferência exclusiva do homem por uma certa mulher, para satisfação do instinto sexual, aquela cuja natureza própria corresponde à sua: procura-a com tão apaixonado zelo que, a despeito da razão, é mais fácil sacrificar a felicidade da sua vida do que perder o seu objectivo; não pondera perante um casamento insensato, nem perante ligações ruinosas, nem perante a desonra ou actos criminosos como o adultério ou a violação, e isto unicamente para servir a finalidade da espécie, sob a soberana lei da natureza, em detrimento do próprio indivíduo. Na generalidade, o instinto parece dirigido por uma intenção individual, embora a ela seja completamente estranha. Sempre que o indivíduo, entregue a si próprio, for incapaz de compreender os determinismos da natureza, ou por impulso lhe resista, ela provoca o instinto; eis porque este é atribuído aos animais inferiores mais desprovidos de inteligência; porém o homem não se lhe submete senão no particularismo de que nos ocupamos. Não porque o homem fosse incapaz de compreender o fim da natureza, mas não o levaria a efeito com todo o zelo necessário, mesmo à custa da sua própria felicidade. Também neste instinto, como em todos os outros, a verdade escuda-se na ilusão para agir sobre a vontade. É na ilusão da volúpia que os olhos do homem brilham perante a imagem mistificadora de uma felicidade sem medida e sem limites nos braços de alguém tão belo que, a seu ver, qualquer outra criatura humana será incapaz de igualar; outra ilusão ainda, quando imagina que a posse de um único ser no mundo lhe assegura, do mesmo modo, a felicidade suprema. Julga sacrificar ao seu próprio prazer todas as dificuldades e esforços, quando na realidade só trabalha para a conservação do tipo específico da espécie, para a procriação de um certo indivíduo perfeitamente determinado que necessita dessa união para se realizar e participar da existência. É tão característico do instinto proceder deste modo – com vista a uma finalidade que não identifica claramente –, que o homem, levado pela ilusão que o invade, por vezes se horroriza perante o fim a que está destinado, que é o da procriação dos seres; desejaria mesmo evitá-lo; é o que sucede em quase todas as ligações ilegítimas. A partir da nossa caracterização precedente da paixão, uma vez satisfeita, todo o amante experimenta uma decepção invulgar; descobre que o objecto de tanto desejo e paixão só lhe proporciona uma vulgar satisfação sexual, a que se segue um rápido desencanto. Esse desejo é comparável com outros desejos que invadem o coração do homem, tal como a espécie o é para o indivíduo, ou como o infinito é para o finito. Só a espécie, pelo contrário, aproveita da realização do desejo, mas disso o indivíduo não toma consciência; todos os sacrifícios a que se impôs, impelido pela vontade da espécie, serviram para uma finalidade que não lhe pertencia. Também todo o amante, após ter realizado a grande acção da natureza, se encontra iludido; porque a ilusão que o tornava vítima da espécie, desapareceu. Eis porque Platão disse muito bem: «O prazer é de todas as coisas a mais vã» (Filebo, 65c).

Estas considerações lançam nova luz sobre os instintos e o sentido estético dos animais. Também estes são dominados por essa faceta da ilusão que lhes oferece a imagem enganadora do seu próprio prazer, enquanto trabalham com tanto empenho e de modo tão desinteressado para a conservação da espécie: eis porque a ave constrói o ninho, o insecto procura o local ideal para a postura dos ovos, ou se entrega à caça de uma presa de que ele não aproveitará, a qual irá servir de alimento às futuras larvas e colocará ao lado dos ovos; assim é também a abelha, a vespa, a formiga, as quais trabalham nas suas engenhosas construções de acordo com a complexidade da sua economia. O que determina todos estes animais, é uma ilusão evidente que coloca ao serviço da espécie a ilusão de um interesse próprio. É esta a única explicação verosímil do fenómeno interno ou subjectivo que determina as manifestações do instinto. Mas, exteriormente, ou de modo objectivo, observamos nos animais mais sujeitos ao poder do instinto, principalmente nos insectos, o predomínio do sistema ganglionar, isto é, do sistema nervoso subjectivo sobre o sistema cerebral ou objectivo; de onde se conclui que os animais são impelidos não tanto por uma inteligência objectiva e exacta como por representações subjectivas geradoras de desejos que provêm da acção do sistema ganglionar sobre o cérebro, o que bem demonstra que se encontram sujeitos a uma espécie de ilusão: e esse será o procedimento fisiológico de todo o instinto. – Irei referir ainda outro exemplo, ainda que menos determinante, do instinto no ser humano: o apetite caprichoso da mulher grávida parece ter origem no facto de que a alimentação do embrião provoca por vezes determinadas modificações específicas do sangue que a ele aflui; deste modo, o alimento que produz esta modificação é representado de imediato no espírito da mulher grávida como objecto de vivo desejo, ainda que ilusório. É assim que a mulher possui a mais um instinto do que o homem: o sistema ganglionar é igualmente bastante mais desenvolvido na mulher. – A maior preponderância do cérebro explica porque o ser humano possui menos instinto que os animais e porque é que os seus instintos algumas vezes se desviam da norma. Assim, por exemplo, o sentido do belo que determina instintivamente a escolha tendo em vista a satisfação sexual, é nulo quando este degenera em vício contra a natureza; este caso é comparável ao da mosca azul (musca vomitoria) que, em vez de dispor os ovos segundo o seu instinto, sobre carne em decomposição, depõe-os sobre a flor do arum dracunculus iludida pelo aroma pútrido dessa planta.




A ideia de que todo o amor tem por fundamento o instinto dirigido para a reprodução da espécie ficará mais evidente se analisarmos em detalhe esse instinto que vamos ver (in Metafísica do Amor, Pequena Biblioteca, 2002, pp. 13-30).


(1) Não me atrevi a exprimir-me aqui com precisão: que a benevolência do leitor traduza pois esta frase na língua de Aristófanes (Nota do Tradutor).

Continua


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