Miguel de Unamuno |
«A brandura, a meiguice portuguesa, está apenas à superfície; raspem-na e encontrarão uma violência plebeia que até assusta. Oliveira Martins conhecia bem os seus compatriotas. A brandura é uma máscara. A linguagem da imprensa ultrapassa aqui em violência o que de mais violento se escreve em Espanha. Aí nunca teriam podido escrever-se páginas como as que Fialho d'Almeida dedicou n'Os Gatos à morte del rei D. Luís e à proclamação de D. Carlos, que não tardou a ser morto por Buíça. E na literatura, os nossos mais fogosos escritores têm que ceder em força aos de aqui. Este é um povo não apenas sentimental mas apaixonado, ou, melhor dizendo, mais apaixonado do que sentimental. A paixão leva-o à vida, e a mesma paixão, consumido o seu alimento, leva-o à morte. Hoje o que lhe resta?
Dentro de dias, a 1 de Dezembro, vão celebrar as festas da restauração da nacionalidade, da libertação da soberania dos Filipes de Espanha. No dia seguinte voltarão a falar da bancarrota e de intervenção estrangeira. Pobre Portugal!»
Miguel de Unamuno («Portugal Povo de Suicidas»).
«Muito individualista, o português é cioso em reivindicar o direito a opiniões próprias, sem que se vergue à autoridade como imposição, especialmente de teóricos, em relação aos quais arranja sempre forma de se superiorizar. Ou deixa aos teorizadores uma autoridade meramente espacial, fora das órbitas do mundo. Nem segue politicamente os intelectuais. Cioso é também na reserva de um domínio irredutível onde seja senhor.
Vem a propósito a altivez dos transmontanos, expressa em "para cá do Marão, mandam os que cá estão", atitude que Miguel Torga como escritor e pessoa interpreta. Evoque-se a Lusitânia de Viriato num longo processo histórico, dos caudilhos da guerrilha aos caudilhos da política, legitimamente representada pela Beira. Já o individualismo atlântico-marítimo revela-se outro, menos aberto, mais dissimulado, feito de teimosia aquosa e corrosiva. Não se denuncia tão ostensivo em mostrar-se independente, basta-lhe sentir que o é na sua pequena esfera; se o molestam agrega-se, ganha presa como cimento debaixo de água. Sabe unir-se na revolta ou apaixonar-se por uma causa. O Porto, cujo habitante reflecte na alma o velho burgo soberbo das suas prerrogativas, depois "cidade invicta", é a cristalização burguesa e a cidadela reivindicativa do povo que fez e deu nome a Portugal. De granito sobre a sapata de granito, representa o povo sofredor e tenaz, estuante de força gregária, desde que determinantemente queira.
De modo geral custa ao português sacrificar o foro individual às exigências da colaboração, a não ser em parcela ínfima para ocasional defesa de vitais interesses comuns ou da sobrevivência ameaçada. Une-se com o entusiasmo e o perigo, para desagravo ou empreitada colectiva. E tende a retomar o desfrute ou abuso do que julga liberdades individuais, logo que tais determinativos enfraqueçam. Em circunstâncias normais e a frio, é pouco associativo. Custa-lhe trabalhar em conjunto ainda que bom profissional. Não se esqueça que dispõe de um infinitivo pessoal».
Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).
«O conceito de filosofia portuguesa, com todas as relações que possam nele encontrar-se com o conceito de filosofia nacional, implica, supomos, esses ou alguns desses aspectos a considerar. Portugal tem, como qualquer outro povo da Terra, uma situação própria. Tanto como a Espanha, ou os povos eslavos, e mais talvez do que eles, a situação do nosso povo é diferente e sob certos aspectos contrastante da dos povos da Europa Central. Pretender ignorar tal situação e transcendê-la ou superá-la, parece próprio do pensamento teorético ou especulativo enquanto tal. Quando, porém, nos interrogamos sobre os caminhos do nosso pensamento, sobre o que é em nós a filosofia, tal situação condicionante faz parte do problema e não pode portanto pôr-se de lado.
Demasiado sabemos que no esquema interpretativo de muitos dos nossos críticos e historiadores, a filosofia portuguesa não teve e não tem originalidade alguma, sendo portanto ocioso falar no assunto. Nós, porém, consideramos não sem alarme um modo de pensar como esse. Pois se por filosofia se entende o pensamento cumprindo-se no homem plenamente, e assumindo a responsabilidade de atribuir ou retirar sentido à vida, tal modo de ser e tal esquema interpretativo equivale a retirar à maior parte dos povos da Terra a possibilidade de encontrarem sentido para a própria existência. E tal tese nos alarma singularmente porque então nos perguntamos o que significam arte, religião, ciência, política e as diferentes formas do humano existir.
A urgência de claramente vermos o que pensamos e como pensamos através do tempo, a última exigência de sabermos tudo quanto no tempo presente e na crise dos nossos dias está limitando em nós a capacidade de filosofar - aparecem-nos inalienáveis. Eis a razão por que, universalista de raiz, nos deixamos nós também seduzir por quanto há no tema de fecundo.
Em relação com o antes posto adquire importância, significação e actualidade consideráveis a obra de Álvaro Ribeiro. Através dos seus livros, este nosso companheiro de muitos anos tornou evidente a velha e aristotélica exigência de filosofar. Aos crentes, ele o ensina, cabe filosofar, pois a fé é apenas a primeira em ordem das virtudes que, se no sentido da acção abre uma via, outra abre no sentido do conhecimento. Aos descrentes, nenhuma esperança fora do pensamento, sob pena de se tornarem simples crentes de sinal contrário, inscientes da própria descrença e seu significado próprio e tão profundo. Pode ser, e o reconheço, que ao interpretar assim eu prolongue duas teses de Álvaro Ribeiro num sentido muito meu próprio. Não careço de justificar-me de o fazer. Pois amo mais a verdade do que a fidelidade literal ao pensamento expresso de outrem ou de mim mesmo. E quanto à fidelidade literal da interpretação historicista e lexicográfica também eu faço dela pouco caso. É certissimamente uma das formas de traição ao pensamento vivo, um dos conúbios monstruosos da razão formal e do objectivismo de aparências, um dos factores daquela espantosa ficção dos animais racionais sem saber da razão que detêm em Portugal o magistério cultural e o poder pedagógico ou político.
Neste ponto reside sem dúvida outro aspecto da falaciosa renúncia que no plano do espírito vivem os pusilânimes sensatos ou os audazes sem largo horizonte. Refiro-me ao problema da razão, da razão que em Portugal não constitui para si problema, e resulta, entre afirmativos e negadores, uma fonte espantosa de palavras e actos fictícios. É certo que, por toda a parte, o problema da razão e seu profundo enigma é por raros atendido. Aqui, porém, o filósofo não tem voz. É o literato mais ou menos jurídico, é o legista mais ou menos literato quem decide. E os que sabem quanto é grave e sério o problema da razão, do juízo, do conceito, os Amorim Viana, os Antero, os Cunha Seixas, os Sampaio Bruno e os Leonardo Coimbra são, décadas, geração após geração, desatendidos. Denunciar a ficção e lutar contra ela é o único próprio de quem ama a verdade. Ora, conforme pensamos, o sentido do universal esgotou-se na Europa. Como universal pensamento se inculca aí um pensamento que não é do homem, mas do europeu e para o europeu. Tal qual o entendo, o sentido das filosofias nacionais é uma das formas de regresso às origens próprias do filosofar, um dos modos de distinguir a filosofia teorética e especulativa de uma filosofia cultural, livresca e universitária. Entre as duas há o abismo que medeia entre o que é vivo e o que o foi.
[...] Em termos de escola, dissemos, o conceito de filosofia portuguesa depende do conceito de filosofia nacional. É certo que a filosofia, como o seu conceito, e qualquer conceito de filosofia, significa imediatamente um universal apreendido. Os próprios filósofos estão, entretanto, neste ponto sujeitos a engano na medida em que supõem que o universal, uma vez concebido, queda para sempre no próprio conceito. Se assim fosse, a filosofia seria muito fácil, mas confundir-se-ia com erudição de compêndio ou enciclopédia.
Convém considerar a analogia entre o conceber da mente e o conceber vital. Da mesma forma que a mulher, ao dar à luz um filho, não lhe garante sem mais a vida, assim também a mente ao dar à luz o que chamamos ideia.
Nós não concebemos para conceber nem julgamos para julgar. Concebemos e julgamos porque assim o exige o pensamento finito de uma intuição infinita, quais existem, se bem podemos dizer "existem", em nossa humana condição.
É estranho, neste ponto, os mesmos homens que têm o sentido da indisputável originalidade de todo o existir, mostrarem-se renitentes em ver como, com maioria de razão, ela se requer na ordem do espírito e do pensamento. Pretende cada um viver o próprio amor, a própria crença, ou descrença, na sua efectiva originalidade. No pensamento, porém, recusam toda a originalidade em nome da religião, da filosofia ou até da ciência, mas perdem todo o sentido do que é radical e efectivamente pensar. Assim, activos e engenhosos no viver, inertes no pensamento, constituem os humanos crentes ou descrentes aquele peso morto que se serve da filosofia e da ciência, ou da própria religião e da arte, para confirmar o primeiro engano ou pecado original, como se diz em termos míticos e religiosos: engano segundo o qual a vida pode viver-se sem verdade, engano pelo qual a filosofia é algo acrescentado e não radical no próprio ser do homem.
Ninguém jamais pensou e pensará por mim. Cultura filosófica, ensino da filosofia, são úteis ou fecundos, e até mesmo para o filósofo, mas não constituem propriamente a filosofia. Ter havido gregos de Atenas ou franceses de Paris que nos doutrinaram foi útil, foi fecundo, mas com a condição de assumirmos, quando recebemos sua lição, a autonomia do pensamento em nós. Pois se na velha comparação, antes lembrada, tão íntimo e fundo e original é o conceber da mente como o conceber da vida, em vão supomos poder assimilar a alheia ciência enquanto o nosso pensamento queda inerte ou apenas a espaços se dinamiza. Assim, o problema da filosofia portuguesa é o problema da autonomia do pensamento e da liberdade assumida no próprio espírito. É o problema do pensar sério e autêntico que pelos caminhos do sofisticado universalismo de Atenas, Roma ou Paris, tão mal em nós como noutros povos se assegurara».
José Marinho («Filosofia Portuguesa e Universalidade da Filosofia», in Estudos sobre o Pensamento Português Contemporâneo).
«Foi Aristóteles, principalmente, um filósofo da Natureza, defensor extreme da inteligibilidade e da realidade do mundo sensível, contra os argumentos de Antístenes e de Zenão de Eleia. Aristóteles foi o primeiro doutrinador da fenomenologia, que explicava pela doutrina da potência e do acto. Contrariava o aristotelismo as filosofias de tendência unitarista, como a de Plotino, ou de tendência dualista, como a de Platão, que dominaram o pensamento medieval, mais preocupado com os negócios do Céu do que com os ócios da Terra; mas os estudiosos fiéis ao pensamento triádico preferiram seguir sempre o mestrado de Aristóteles.
Não é próprio dos Portugueses o sentido de fixação à Terra, dando à palavra terra vários significados, pelo que não parece completamente erróneo dizer que o elemento vital do nosso povo é, sem dúvida, o mar. As viagens dos Portugueses significam a superação do geometrismo mediterrâneo pelo geografismo atlântico, o que aliás tem sido verificado pelos estudiosos do barroco, onde a nudez dos desenhos esquemáticos aparece revestida com as luxuriantes formas da geração e da corrupção. De acordo com a astronomia moderna, as viagens dos Portugueses dilataram a imagem da Terra, e, consequentemente, ampliaram o seu conceito, porque a Terra, depois dos estudos de Copérnico e Newton, é já, sem limites astronómicos, todo o mundo visível, - o mundo inteligível da gravitação, - onde o homem expia os seus erros mas onde espera também chegar à visão beatífica que lhe abrirá as portas do Céu.
A filosofia portuguesa representa, pois, uma aventura espiritual de fidelidade a Aristóteles, aventura que, narrada em documentos literários, políticos e religiosos, não foi compreendida pelos metodólogos responsáveis da reforma pombalina da Universidade de Coimbra. A substituição da cosmologia aristotélica pela física moderna na Faculdade de Filosofia, obrigou, necessariamente, à aceitação da epistemologia cartesiana e, por fim, enciclopedista. Assim, quando a inspiração romântica determinava nos povos anglo-saxões e germânicos um movimento de regresso à cosmologia de Aristóteles, - inevitável revolução filosofal, - preconizava-se no nosso País a difusão anacrónica do iluminismo!
Anacrónica, sim, porque a oposição entre iluminismo e obscurantismo, luz e trevas, visão e cegueira, se bem que tenha muito nobres origens e que haja sido um dos tipos ou arquétipos fundamentais do pensamento helénico, não se articula facilmente com as imagens que mais bem significam a filosofia portuguesa. A viagem, muito melhor do que a iluminação, representa o aperfeiçoamento gnósico de um povo que parte da mundividência medieval para a aventura atlântica. Até os termos lógicos, que parecem mais depurados da influência da imaginação, ganham em ser referidos à missão itinerante do homem que não se aperfeiçoa sem se deslocar.
Conceber a verdade como via, e não como ponto de partida ou de chegada, é esforço humilde da inteligência que não se compadece com a atitude repousada dos positivistas ou fixistas. A adequação do intelecto à realidade não é, porém, susceptível de interpretação estática, e as doutrinas pragmatistas que, de certo modo, renovam a criteriologia aristotélica, alentam no coração do homem a virtude da esperança. Uma filosofia que, pela sua ética intrínseca, não confie mais no futuro do que no presente e no passado, será mera apologia de doutrinas mortas (ou sobreviventes nos escritos dos paleógrafos), e não poderá fundamentar nem legitimar um novo ideal de educação para a humanidade.
Aristóteles |
As características da filosofia portuguesa encontram-se de há muito enunciadas em obras de mérito, de talento e de génio. Se a alguns estudiosos pareceram até agora demasiado envolvidas em expressões de deficiente luminosidade racional, tornar-se-ão, porém, claras, nítidas e evidentes quando relacionadas com uma classificação realista das ciências filosóficas. Assim, se concedermos que a teologia, a antropologia e a cosmologia são as ciências fundamentais, e se com estas relacionarmos a filosofia do direito e a filosofia da arte, teremos o quadro onde mais se espelha a nossa aptidão para harmonizar a cultura com o culto.
Não tem sido, porém, este o critério adoptado no ensino liceal e superior. A filosofia dividida em quatro ou cinco partes, (psicologia, lógica, moral, teoria do conhecimento e metafísica), por imitação do que se observa na Europa Central, não pode ser disciplina que reconheça a autenticidade e a originalidade do pensamento português, e muito menos doutrina que estimule o desenvolvimento da nossa tradição. A adopção de um abstracto, parcial e falso universalismo, como é o das universidades estrangeiras, tem por consequência obrigatória, que parece necessária, a negação das filosofias nacionais, e, portanto, o desconhecimento da filosofia portuguesa».
Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).
«O problema das filosofias situadas - convém lembrá-lo ainda - apareceu gradualmente a nova luz desde a época romântica. Perdida a unidade cultural da Europa, subsistente depois da Idade Média até ao Iluminismo - a urgência de interpretar o significado e o valor da filosofia, como também da poesia, da arte em geral, e das diferentes formas de espiritualidade nos diversos povos e regiões da Europa, ganhou cada vez maior acuidade. De modo convergente, outros povos, outras regiões da terra, vêm reclamando condigna atenção para as suas formas próprias de pensar e conceber. Neste aspecto, essencial, a significação do que ocorreu na Alemanha desde Fichte e os Discursos à Nação Alemã até ao sentido do universal concreto e sua radicação e tratamento exemplar na Fenomenologia do Espírito em Hegel, não creio como outros não crêem, ser possível de modo algum desatender. Se, permito-me sublinhar, os pensadores lógicos não têm aqui escusa alguma, não a têm dialectas e fenomenólogos, chamados hoje, como sempre, para os caminhos do real pensamento dos homens quais tais realmente são».
José Marinho («Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo»).
«Aquele sentimento ainda persistente, mas vago, indefinido e no entanto sequioso de definição (que só pode ser intelectual); aquele sentimento de patriotismo que ainda encontramos nas populações do "interior", sobretudo as rurais; esse sentimento logo o vemos apagado, evanescido, até ridicularizado nas populações das grandes cidades, em especial Lisboa, cidade de classe média social, de meia-tigela intelectual, de doutores e bacharéis, semi-sapientes, cuja suficiência satisfeita de si é alimentada, em cada dia da semana, por um "semanário de opiniões" - coisas como o "Expresso", o "Semanário", o "Jornal", o "Diabo"... - e, naturalmente, pelas discursatas dos políticos de serviço.
É neste ambiente citadino que nos ficam a olhar como um fantasma de outro mundo quando lhes dizemos que Portugal é uma Pátria e que uma Pátria é uma entidade espiritual. Claro que os poderíamos "esclarecer", ou captar-lhes o crédito de "provincianos" mentais, lembrando-lhes que também De Gaulle dizia que a França é uma ideia, "uma certa ideia". Mas De Gaulle terá sido, para alívio desta gente de meia-tigela, o último verdadeiro homem de Estado. E mais prazer nos dá, por mais lhes perturbar a semi-sapiente suficiência, ensinar-lhes que a Alemanha moderna nasceu inteira dos Discursos de um filósofo, OS DISCURSOS À NAÇÃO ALEMÃ, de Fichte, que a levaram a ascender do natural aglomerado de Nação à ideia ou entidade espiritual de Pátria.
Fichte deu aos alemães a razão da existência da Alemanha tal como - em termos muito diferentes - a "filosofia portuguesa" dá aos Portugueses a razão da existência de Portugal. A humanidade encontrar-se-ia, segundo Fichte, na carência daquela regeneração "que só o povo alemão é capaz de realizar porque só ele é uma Pátria; porque "só nele se encontra a força de um pensamento criador"; porque "só ele possui uma língua que vive por si própria, no seu vocabulário e na sua sintaxe"; porque "só nele as obras de arte exprimem a alma do povo" (e Fichte "não impõe limites à sua cólera contra aqueles que imitam requintes e elegâncias estrangeiras"); porque "só ele pode compreender o latim no seu valor original e vivificar, entre os próprios neo-latinos, a cultura antiga"; porque "só ele concilia a filosofia e a religião e dá verdadeiro sentido à vida cristã". E uma vez que são tais as razões da existência da Alemanha, "nenhum outro povo pode realizar o Estado perfeito, aquele em que a vida perdura e se renova e não é um mecanismo fechado", "nenhum outro povo pode, enfim, constituir uma Pátria". "Ao povo alemão cabe, pois, a missão e o dever de salvar a humanidade". Mas, para isso, "impõe-se que ele mesmo renasça e forme, de facto, uma Pátria". E "o único meio que existe para o conseguir é a educação", uma educação que consistirá, "não em registar conhecimentos mortos, mas em formar o pensamento puro, que é o poder criador do espírito".
Ponho-me a imaginar o que, destas razões para a existência da Pátria, dirá, para consigo e para outros, o leitor dos "semanários de opiniões" e das análises e discursatas políticas. Dirá qualquer coisa de desprezível e humilhante para si próprio. E assalta-me um gosto sarcástico, mas pedagógico, de acrescentar:
Nestes DISCURSOS À NAÇÃO ALEMÃ, juntamente com OS ANOS DE APRENDIZAGEM DE WILHELM MEISTER e a REVOLUÇÃO FRANCESA, viu Schlegel os três mais significativos acontecimentos do seu século. Os anos correram e, nos nossos dias, N. Hartmann escreveu, no mais meditado, mais profundo e mais sério dos seus livros, que esses DISCURSOS são um dos mais importantes acontecimentos da história universal. No prefácio às Obras Completas do autor, é reivindicada, para os DISCURSOS, "a glória de terem provocado a renascença da Alemanha". E é geralmente reconhecido que a eles se deve a formação da Alemanha moderna, com todos os erros e males que lhe possam atribuir e com toda a grandeza que lhe não possam negar. Por terem compreendido a decisiva importância dos DISCURSOS, houve uma época em que os franceses os traduziram e compendiaram para serem largamente distribuídos pelos professores das suas escolas.
O que estes DISCURSOS de Fichte são para a Alemanha, poderá ser, e esperamos que venha a ser, para os Portugueses o livro de Álvaro Ribeiro A RAZÃO ANIMADA, que é também a exposição de um sistema, o da "filosofia portuguesa", em termos de um tratado de educação dos Portugueses para que se constituam em Pátria, isto é, para que conheçam, como Pátria, a razão e a finalidade da sua existência como Nação, e a essa ideia, como dizia De Gaulle, ou entidade espiritual, como nós preferimos dizer, subordinem a organização e a acção do Estado e os negócios da República.
General Charles de Gaulle durante a II Guerra Mundial |
A lição de Fichte e o exemplo da Alemanha têm, evidentemente, precursores, ou modelos, na antiguidade clássica, onde a ideia ou entidade espiritual que é a Pátria aparece como civilização entre os gregos e os romanos; e não deixa se ter imitadores em nossos dias, o mais conhecido dos quais, nessa propaganda oficial socialista que nos ensurdece, é o chamado gramscianismo que, adoptando o que há de negativo nos DISCURSOS (negação da liberdade, omnipotência do Estado, prioridade da vontade, etc.), doutrina, como via de instauração do comunismo, a prévia marxização do ensino e da cultura.
O sistema da filosofia portuguesa, conforme já aludimos, é o oposto da filosofia alemã. Para se ver claramente esta oposição, bastar-nos-á dizer que, por um lado, a filosofia portuguesa é o prolongamento e a actualização da filosofia clássica, onde estão as raízes do nosso pensamento e da nossa língua, e que, por outro lado, ela retira o primado à vontade, e até nega isso a que se chama vontade. Ora Fichte "pretendia - na expressão de um dos seus comentadores - aliar as potências alemãs na mesma luta contra os Latinos e seus lacaios". E quanto à vontade, ele próprio declara no seu 3.º DISCURSO: "A nova educação terá, por única razão de ser, apagar inteiramente a liberdade nos domínios sujeitos à sua influência, substituindo-a pela necessidade rigorosa que impossibilita a determinação do diferente ou singular; ela criará, deste modo, uma vontade na qual poderemos confiar com toda a segurança".
OBS.: Os textos citados são transcritos da tradução francesa dos DISCURSOS À NAÇÃO ALEMÃ editada em 1946».
Orlando Vitorino («O processo das PRESIDENCIAIS 86»).
«A existência de filosofias nacionais é uma verdade que pode ser contraditada por espíritos voluntariosos, mas tem a seu favor a evidência dos factos e dos documentos. Unidade filosófica pressupõe unidade linguística, mas já não estamos a tempo de restituir ao latim a função de língua universal. Podem os historiadores da filosofia universal querer representar-nos um drama em três actos - antigo, medieval e moderno - sem que consigamos ao fim saber quem foi o protagonista, se a lógica ou a metafísica, se a psicologia ou a moral.
Decerto que há sempre vantagem política para a nação editora em publicar uma história universal da filosofia, e não devemos estranhar que o respectivo autor atribua aos seus compatriotas os papéis decisivos no progresso do pensamento humano. Sabemos, assim, que a filosofia alemã, depois de Hegel, domina a cultura mundial, e de Marx, Kierkegaard e Nietzsche partiram os movimentos pró e contra Hegel que influem na literatura contemporânea. Sempre os livros apresentam como filosofia universal uma doutrina que, bem analisada, logo revela as características de uma filosofia nacional.
Negar a filosofia portuguesa seria negar a língua portuguesa, não já como utensílio de tradução do pensamento alheio, negação absurda, mas como portadora de palavras intraduzíveis cuja significação só nós podemos imaginar. Negar a filosofia portuguesa seria negar oito séculos de reacção às culturas estrangeiras que entre nós quiseram estabelecer protectorado ou padroado. Negar a filosofia portuguesa seria negar a autonomia dos nossos legisladores, seria negar a autonomia da nossa jurisprudência e do nosso direito».
Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).
A HISTÓRIA DA FILOSOFIA E O ENSINO UNIVERSITÁRIO
A divisão da história da filosofia em antiga, medieval, moderna e contemporânea resulta de um preconceito didáctico que só tem por defesa a origem estrangeira. E porque «lá fora» a organização universitária mantém no ensino um esquema que se reflecte nos compêndios escolares, «entre nós» parece quase irreverência, merecedora de áspero castigo, levantar a voz contra a conveniência de uma rotina consagrada pela internacionalidade. No entanto, difícil será justificar a referida divisão da história da filosofia durante uma discussão criteriosa, e muito especialmente depois de gastos os falaciosos argumentos da conformidade com o modelo estrangeiro e da comodidade própria dos velhos hábitos.
A questão merece ser discutida pelos curiosos de filosofia e pelos responsáveis do ensino nacional. Mais ainda: deverá ser conduzida até ao plano da isenta investigação da verdade que é, exactamente, aquele onde aparece mais justificável o autêntico nacionalismo. A narrativa da filosofia como um saber que se desenvolve numa só linha de história, divisível em segmentos antigo, medieval, moderno e contemporâneo, leva a crer num falso universalismo que, bem analisado, se revela apenas artifício excelente para um povo astucioso impor aos outros a sua própria cultura. É admirável que um pensador de génio, como Hegel, tivesse procurado, nas suas prelecções de história da filosofia, dar satisfação ao orgulho da raça de que era ilustre representante. É, porém, lamentável que estudiosos, bem avisados contra a sedução do estilo e do pensamento do filósofo de Estugarda, confiem por leviandade noutros tratadistas igualmente universitários mas de mais recente erudição. Razões de ordem pedagógica, mas também razões de ordem política, reprovam o ensino da história da filosofia numa só linha que não pode registar a inegável pluralidade de aspectos etnológicos e filosóficos.
Devemos ao Dr. Delfim Santos o primeiro protesto contra a divisão, por idades, da história da filosofia no ensino superior. Em 1934, no seu opúsculo intitulado «Linha Geral da Nova Universidade», afirmou o ilustre professor que «a perspectiva cronológica não é mais fecunda para o estudo dos grandes pensadores e das grandes correntes de pensamento» e, com esse fundamento, propôs que a história da filosofia fosse ensinada numa só cadeira anual, a título de propedêutica. Anos depois, em 1939, ao aprofundar as noções de progresso e história no seu trabalho «Da Filosofia», o Dr. Delfim Santos confirmou a doutrina, tão felizmente defendida, que vai sendo cada vez mais perfilhada pelos alunos dos cursos superiores.
É evidente que uma cadeira anual de história da filosofia pode servir o ensino comum a várias licenciaturas, mas de pouco vale para o estudo verdadeiramente filosófico. O mesmo ensino, quando dividido por sucessivas cadeiras anuais, passa a ser contraproducente. Observemos que a legislação em vigor não impede que a regência das cadeiras de história da filosofia possa ser confiada a professores que ignorem os idiomas em que foram escritas as obras que constam dos programas; e como ainda não existem traduções portuguesas dos clássicos da filosofia, a possível deficiência do professor é agravada pelas consequências do recurso às traduções em línguas intermediárias e pela confusão propícia às doutrinas estrangeiras que estejam bem disfarçadas de universalistas.
Torre de Belém |
É certo que existe no plano do ensino superior uma cadeira de «História da Filosofia em Portugal», mas o respectivo trabalho de professores e alunos ainda não atingiu o volume digno de ser tomado em consideração. Já a própria denominação da cadeira revela a dúvida do legislador acerca da existência de uma filosofia portuguesa: efectivamente, se o estudo tiver de ser feito no quadro sinóptico mais utilizado pelas Universidades da Europa Central, o respectivo resultado será a inevitável conclusão de que o pensamento português é destituído de originalidade e de que a cultura portuguesa andou sempre atrasada em relação à dos povos superiores. Citemos, a propósito, o exemplo mais corrente. A «História da Filosofia em Portugal» diz-nos que não tivemos uma reforma cartesiana nem uma revolução kantiana: fácil é concluir, com todos os juízos desvalorativos, que estamos ainda numa época de Escolástica.
Razões de ordem política aconselham a imediata remodelação de um ensino de que está resultando um pessimismo deprimente para a consciência nacional e a vulgarização de uma historiografia que não corresponde à verdade.
A Escolástica representa para nós, portugueses, um período de formação filosófica. A Idade Média é a idade das nossas origens. O nosso subconsciente poético revela-se por imagens medievais.
Não vale, para nós, de modelo, a filosofia helénica. Nunca atribuímos à Grécia uma exagerada importância na cultura e na civilização, porque nunca esquecemos a contribuição dos povos orientais. Não há dúvida de que a nossa saudade esteve voltada para a Índia.
Para sair da Escolástica não é indispensável entrar no iluminismo. Se o pensamento português nunca assimilou o essencial do pensamento de Descartes e de Kant, facto é para explicar e não para condenar. A aceitação do positivismo em Portugal e a influência perdurável dessa doutrina na nossa literatura possuem um significado digno de interpretação especulativa.
Fácil é verificar, pela análise do ensino público e das obras dos publicistas, que a doutrina dominante em Portugal já não é a Escolástica, mas tão só uma flexível modalidade de positivismo para uso de crédulos e incrédulos. A escolástica, propriamente dita, eleva a inteligência humana até ao nível da Revelação Cristã. Abandonámos a Escolástica de tal modo que sofremos uma decadência de pensamento filosófico, e nessa queda houve dois momentos fatídicos: a instituição do Curso Superior de Letras de Lisboa, que veio a ser foco de radiação do positivismo, e a extinção da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra por inevitável conclusão de ordem política. Não tivemos em Portugal reforma cartesiana nem revolução kantiana, - é certo -, mas tivemos no século passado, e infelizmente continuamos a ter no século que vai já em meio, a equivalente revolta das Letras contra o Espírito.
Mosteiro da Batalha |
Tudo quanto de injusto se tem escrito contra o passado (e até contra o futuro!) do pensamento português, assenta na admitida falsidade de que a filosofia se desenvolve como um só fio que teve origem em Tales de Mileto, por exemplo, e que termina actualmente nas mãos de determinado professor universitário cujo renome é mundial.
A verdade é-nos dada, porém, numa figura mais complexa do que a recta intelectualidade. Vemos que todos os povos superiores - e o povo grego nos oferece o mais nítido exemplo - desenvolveram esforços diferentes para atingirem a sabedoria a raros acessível. Poderemos também ver, quando a isso colectivamente nos dispusermos, que o povo português lutou e tem lutado pela expressão de um pensamento original. Não sabemos, porém, quando chegará a manhã de lucidez nacionalista... (in Atlântico, nova série, n.º 5, Lisboa, 1947, pp. 58-60).
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