«Ora, como no homem positivista de Comte - e até nele mesmo - havia retornos ofensivos do metafísico e até do teológico, também no homem bolchevique pode haver um sobressalto do homem humano.
De aí a necessidade de extinguir as luzes de Deus, para que a miopia do teísta ou do cristão não impeçam a visão normal do homem comunista.
O assalto foi cínico, violento e ignóbil. São conhecidos os fuzilamentos, assassinatos a frio, mascaradas carnavalescas, dejecções em altares, profanações da mais vil infâmia. Nestes propósitos não pode um homem religioso, ou, sequer, agnóstico com o sentido do mistério, deixar de ver mais que um método cínico - ele terá de ver propulsões mais longínquas e trágicas: autênticas possessões demoníacas.
(...) O esforço para a implantação pode deixar em seu caminho doze milhões de mortos de fome, inegáveis casos de canabalismo, oito milhões de crianças vagabundas, raparigas de treze a catorze anos grávidas e sifilizadas, altares profanados - simbolicamente oferecidos ao excremento -, milhões de camponeses fuzilados, médicos, padres, intelectuais assassinados aos milhares: tudo isso nada prova aos olhos dum comunista. O Absoluto do Fim justifica e consagra todos os meios».
Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).
«Comunismo é um estado de espírito. Um dia participei no programa do Bernard Pivot [na televisão francesa] que veio com essa: “Como é que você ainda se considera comunista?” Disse espontaneamente: “Acontece que sou uma espécie de comunista hormonal. Da mesma maneira que a barba me cresce, há uma hormona que fez de mim isto, e não posso deixar de o ser. Pode dizer-me: depois disto que aconteceu, e isto e isto; de acordo, tudo isso aconteceu, e parece-me mal que tenha acontecido, e condeno quem o fez. Mas isso não me tira o direito, e o dever, de ser aquilo que sou”. Ele riu-se muito…».
José Saragago (Público, 7 de Novembro de 2008).
«Veritas é a divisa da Universidade de Harvard. Como certos dentre de vós o sabem já e como os outros aprenderão no decurso da sua vida, a verdade começa a fugir-nos no próprio momento em que o nosso olhar diminui a sua atenção: nesse instante, escapam-nos pormenores e fica-nos a ilusão de que continuamos a segui-la. Numerosas dissensões vêm daí. E é preciso também saber que a verdade raras vezes é doce ao paladar: ela é quase sempre amarga».
A. Soljénitsyne (Harvard, Junho de 1978).
«Tive a oportunidade de contactar com os livros de Solzhenitisin em São Paulo. O interesse dos prisioneiros por tais livros era tal que acabavam por ficar completamente deteriorados pelo uso. Perguntar-me-ão como os consegui introduzir na prisão. Graças à ignorância do guarda que assistia à entrada da minha comida. Para ele era apenas um livro soviético... "um dos nossos". O Arquipélago de Gulag repetiu-se, de facto, em Angola, muitas vezes actualizado numa desumanidade maior...».
Américo Cardoso Botelho («HOLOCAUSTO em ANGOLA»).
Vegetar sob o jugo comunista
John Noble, um cidadão americano, viveu nove anos em diversos campos de concentração soviéticos. Relatou as suas experiências num livro intitulado «I was a Slave in Russia» («Era um Escravo na Rússia»), publicado pelo Cicero Bible Press, em Brodview, Illinois, USA. Na página 43 lê-se: «Apercebi-me mais de uma vez que a morte era a última coisa a recear dadas as condições do cativeiro, sob o jugo dos vermelhos». Noble refere-se, largamente, aos que se ocupavam das necessidades espirituais dos detidos. «Dois grupos de homens, resplandecentes de dedicação, entre os prisioneiros, elevavam-se acima da podridão e do envilecimento que reinavam no campo de Mühlberg: a clerezia e os médicos. Os padres católicos e os pastores protestantes iam muito mais além do desempenho do seu ministério religioso - e faziam-no em condições extremamente difíceis. Missas celebradas às escondidas num canto de um abarracamento, sermão pregado furtivamente ou cânticos proferidos em voz baixa atrás das latrinas. Os padres e os pastores - penso eu - executavam a sua tarefa da forma mais meritória possível (para os que não mergulharam na animalidade), dando prova, em todas as ocasiões, da maior humildade. Nenhum trabalho era desprezível ou repugnante para eles. Em cada humilde tarefa que executavam, quer no meio da fetidez das latrinas ou na espessa lama do exterior, esses homens transportavam no coração a fé abrasadora e inabalável que possuíam. Jean Noble descreve do seguinte modo as celas de uma das numerosas prisões: «A cela média, seis pés sobre três (1,80 por 0,90) tinha o tamanho de um armário de parede. Um leito de madeira quase a ocupava por completo.
As paredes eram de uma alvura ofuscante. E atrás da porta, e por cima do postigo, uma lâmpada de 400 wats permanecia acesa dia e noite, a ponto de dar a ilusão que a brancura das paredes se infiltrava em cada célula do meu cérebro. Entre os tabiques de duas celas havia uma abertura de metal, na qual - a partir das sete horas da manhã - crepitava lenha ou carvão para aquecimento dos prisioneiros. Ao meio dia esses tabiques estavam de tal modo quentes que não só não permitiam que deles nos aproximassemos como o seu calor húmido nos sufocava e nos encharcava de suor. À noite apagava-se o lume. As portas e os corredores, que davam para o exterior, tal como as celas - abertas de par em par -, deixavam penetrar o vento glacial. Não tínhamos cobertores e enregelavamos, tiritando com frio. Buchenwald foi catalogado como, virtualmente, um matadouro hitleriano e, no entanto, ouvi muitas vezes repetir, com desusada insistência, por prisioneiros que tinham estado em campos de concentração, primeiro alemães e depois soviéticos, que o tratamento era bem pior sob o domínio soviético.
John Noble foi transferido de Buchenwald para Weimar onde, após três anos de internamento, sem qualquer acusação, veio a saber que tinha sido condenado a quinze anos de trabalhos forçados num campo do arquipélago do Goulag. Durante esse longo cativeiro jamais contactou com qualquer advogado nem teve conhecimento de qualquer nota de culpa. Eis, segundo ele, como veio a tomar conhecimento da sua condenação: «Uma jovem sentada em frente de uma mesa formula as perguntas habituais respeitantes à minha identidade. Depois estende-me um impresso apenas com duas linhas escritas. A primeira continha o meu nome e tinha um pequeno espaço em branco com o número quinze escrito a meio. «O que é isto?», perguntei, apontando os algarismos. «Foi julgado em Moscovo e condenado a quinze anos de trabalhos forçados». No impresso estava escrito «trabalhos físicos».
Durante todos os anos que Noble passou por diferentes campos soviéticos nunca lhe foi permitido expedir um simples postal, e muito menos uma carta, e nunca teve direito a receber visitas. Eis uma curta passagem do seu livro que descreve a carruagem do comboio que o transportou para o Goulag, numa viagem que durou seis semanas. «Estava comprimido no meio de outros prisioneiros, os pés esmagados contra as paredes do vagão, as mãos apertadas sobre os flancos, o queixo apoiado no rebordo rugoso da tábua do meio. Era absolutamente impossível mudar de posição, de me distender ou de fazer o menor movimento. Duas vezes por dia conduziam-nos à retrete do comboio. Mas sucedia, com frequência, que os prisioneiros, não se podendo reter por mais tempo, aliviavam-se pelas calças, choramigando pelo ocorrido e conspurcando os companheiros da desgraça que estavam mais próximos. E apesar do infortúnio em que nos encontrávamos mergulhados era sobremodo difícil a alguns de nós não odiar esses desgraçados».
Noble trabalhou nas minas de Vorkuta quando se desencadeou uma greve provocada pelos presos informados da revolta dos alemães do Leste contra o regime comunista. Em Vorkuta circulava, de boca em boca, a notícia que os 20 milhões de prisioneiros do campo de concentração de Goulag também se tinham revoltado. A greve durou dez dias. Depois, numa bela manhã, vários milhares de presos foram atirados para um campo, onde lhes foi anunciado que iam ser entabuladas negociações para pôr termo ao conflito. Quando todos estavam juntos, os vemelhos apontaram-lhes as metralhadoras - forçando-os à rendição. Os sobreviventes regressaram imediatamente ao trabalho. Noble relata: «A minha existência em Vorkuta assemelhava-se a uma morte viva. Era como que uma dolorosa combinação de lenta e constante inanição e de acabrunhamento, monotonia que destruiu mais de um homem que gozava de melhor saúde do que eu».
Noble descreve também as torturas a que assistiu. E o que transcrevo aqui está bem longe de espelhar o pior. Ajudou a transportar até à cela um prisioneiro que tinha sido selvaticamente espancado, chicoteado. A pele foi arrancada desde as omoplatas, em toda a largura das costas até à cintura, e o tecido da camisa, que nunca despira, penetrou na carne viva. Durante cerca de uma hora, com um médico, também prisioneiro, retirou com infinitos cuidados os fragmentos de tecido incrustados nas feridas, tentando com precaução escolher os fios do tecido ensanguentado de preferência às parcelas de carne sanguinolenta. Quando acabámos esta dolorosa limpeza envolvemos as feridas com bocados de papel higiénico, a régia prenda oferecida pelo dispensário da prisão e o único «medicamento» a que tinhamos direito. O suplício do gabinete de desinfecção para a esterilização dos colchões, mais complexo e subtil, era executado por uma máquina metálica de imponentes proporções. Com as suas válvulas e os seus geradores a vapor, esta insólita caranguejola não era utilizada há muito. Os novatos não sabiam que ela não estava em condições de receber o vapor de água. E eram estes precisamente os lançados para a cuba transformada em instrumento de tortura. Quem fosse considerado culpado de ter cometido qualquer falta era atirado para dentro da cuba por guardas cujos modos brutais faziam compreender ao desgraçado que a punição seria terrível. O prisioneiro aterrorizado via os painéis de aço descerem e fecharem-se hermeticamente sobre ele, depois ouvia o ruído estridente dos ferrolhos que se uniam. No interior reinava a escuridão compacta e o detido esperava a todo o momento receber um jacto de vapor efervescente ou uma nuvem de gás tóxico. O desgraçado era deixado neste estado de medo abjecto e de incerteza durante um ou dois dias e só decorrido esse lapso de tempo é que os guardas consentiam em lhe abrir a porta. Muitos presos enlouqueciam depois desta diabólica provação. E poucos ficavam livres de doenças nervosas. A maior parte saía da cuba com os cabelos grisalhos e na generalidade dispunha-se a confessar o que quisesse.
Para além da tortura, os prisioneiros eram friamente abatidos sem a menor razão. Os soviéticos matavam porque, literalmente falando, um número tinha sido tirado à sorte ou porque sobre um documento sem importância, após um processo imaginário, alguém tinha decidido que determinada pessoa havia de morrer. As causas apresentadas, de antemão, para a matança eram completamente indiferentes para os homens incumbidos de executar tão triste tarefa, assim como, aliás, o conceito da própria morte.
Localização de Gulags na União Soviética |
E eis a razão porque os gracejos trocados entre os guardas a tal respeito não eram estudados - eram espontâneos... A vida devia ser retirada a certos indivíduos cujos nomes se inscreviam nos quadros estatísticos do Estado. Os processos escolhidos para as execuções, a respeito dos quais os guardas se gabavam por vezes da sua humanidade, eram de extrema simplicidade. Quando um condenado estava despido, conduziam-no a uma ala parcialmente destruída da prisão - e, quando dobrava a esquina de um corredor, o guarda que o seguia matava-o com um tiro na nuca. Cada vez que um prisioneiro era abatido arrastavam o seu corpo até ao fim do corredor. No fim de um dia de matança, um amontoado de corpos seminus, agitados de estertores, jazia no solo do corredor sombrio e nojento. Os corpos eram então regados com gasolina. Um fósforo completava a macabra operação. As chamas desta fogueira espalhavam tal claridade que, por vezes, eram enxergadas por prisioneiros acantonados noutros abarracamentos. Se fossem pedidas explicações a estes carrascos sobre o que se passava respondiam que estavam a queimar lixo.
W. C. Bullitt, o primeiro embaixador dos Estados Unidos nomeado para a Rússia Soviética, no seu livro «A Talk with Vorochilov» («Uma Conversa com Vorochilov»), narra o episódio seguido ocorrido no início do reinado dos bolcheviques: no começo de 1919, segundo Vorochilov contou a Bullitt, persuadiu 10 000 oficiais czaristas de Kiev a renderem-se, prometendo que, se o fizessem, não só eles como as suas famílias seriam autorizados a regressarem a suas casas. Aceite a oferta, mandou-os executar bem como todos os filhos do sexo masculino - as mulheres e filhas foram enviadas para bordéis para satisfazer as necessidades do Exército Vermelho. De passagem mencionou que, nesses prostíbulos para a soldadesca, o tratamento proporcionado a essas pobres mulheres foi tal que nenhuma delas sobreviveu mais de três meses. Ufanando-se de um crime tão abominável, Vorochilov pensou que se conduziu como um bom marxista-leninista. Ter-se-á o marxismo-leninismo, desde essa data, humanizado como alguns pretendem fazer crer?
Ora, Khrushchev disse: «Todo aquele que pensa que abandonámos o marxismo-leninismo engana-se grosseiramente. Tal só sucederá quando os camarões assobiarem (in Fátima e a Grande Conspiração, Edições Fernando Pessoa, pp. 83-86).
Continua
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