segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

D. HENRIQUE, o Navegador (ii)

Escrito por Elaine Sanceau




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«A história e a literatura dum povo explicam-se e influem-se mutuamente. Há entre as duas uma correspondência constante e recíproca. Se as tendências gerais da literatura dum povo reflectem as qualidades mestras do seu carácter, por sua vez, as grandes criações literárias acabam por moldar e dirigir o espírito colectivo.

Ao que supomos não se tem dado suficiente atenção na história portuguesa a duas tradições, que poderosamente contribuíram para a formação do carácter nacional, que estão na raiz do seu desenvolvimento e, por consequência, influíram na obra literária. Referimo-nos ao espírito de Cavalaria e ao Franciscanismo. Foram estas, a nosso ver, as duas grandes escolas em que se formou o português da Idade Média e do Renascimento e em que entranha suas raízes mais fundas a Idade de Oiro das letras nacionais».

Jaime Cortesão («O Humanismo Universalista dos Portugueses»).


«PARA TIRAR FANTASIA E DÚVIDA QUE não podemos vir a bom estado de tôdas virtudes, eu acho, que por tôdas estas partes nos é dada e outorgada condição, e muitas vezes mudada, segundo em nós e por outrem bem poderemos sentir e conhecer:

Da terra, compleição / Do leite e viandas, criação / Dos parentes, nação / Das doenças e acontecimentos, ocasião / Dos planetas, constelação / Dos senhores e amigos, conversação / De Nosso Senhor Deus, por especial inspiração / nos é outorgada condição e discreção.

Aquestas cousas, suso escritas, que mudam nossa discreção e condição, escrevi em simples rimance, por se melhor poder reter. Das quais, por declaração, ponho exemplos:

Primeiro, da terra compleição.

Isto vemos, graças a Nosso Senhor, como em geral os mais de todos os portugueses são leais e de bons corações. E os ingleses valentes homens de armas, de grande e bom regimento em suas igrejas e casas.

E assim quaisquer outras nações têm geralmente algumas virtudes e falecimentos, não que todos os do reino ou senhorio igualmente as hajam, mas em geral têm d'elo grande parte».

D. Duarte («Leal Conselheiro» - Capítulo XXXIX, na edição crítica de 1942).


«A obra de Zurara não é tão vasta nem foi de execução tão difícil como a de Fernão Lopes. abrange as seguintes crónicas: Crónica da Tomada de Ceuta por el-rei D. João I, Crónica dos Feitos da Guiné, Crónica do Conde D. Pedro I de Meneses e Crónica do Conde D. Duarte de Meneses. A estes trabalhos históricos, há que agregar ainda uma Crónica de D. Duarte e parte da Crónica de D. Afonso V, textos que desapareceram, mas cuja existência parece estar demonstrada. Enfim, averiguações de Zurara vão incidir, como as de Froissart, sobre a história contemporânea. Zurara aproveita-se, em parte, do relato de testemunhas oculares, e pratica uma espécie de inquérito de tipo jornalístico, ouvindo várias pessoas.

Mosaico comemorativo da Tomada de Ceuta pelo Infante D. Henrique.


Como nasceram as crónicas de Zurara? Foram, como as de Fernão Lopes, incumbências reais, serviço portanto oficial. A ordem para redigir a Crónica da Tomada de Ceuta data de 1448. Na 1.ª edição, saída em 1644, esta obra intitula-se Terceira Parte da Crónica de el-rei D. João I. O cronista inicia a sua tarefa em 1449, quando haviam já passado 34 anos sobre o feito que ia historiar. Conforme confissão própria, vem a concluí-la na cidade de Silves, no dia 25 de Março de 1450. Sabe-se que alterou e retocou o texto primitivo. A rapidez com que redigiu esta crónica leva-nos a supor que dispunha, à data do mandato de D. Afonso V, de apontamentos que colhera em escritos dispersos e nos dados fornecidos pela tradição oral. Em 1449 encontravam-se vivas algumas pessoas que assistiram à tomada de Ceuta, de modo que Zurara tinha ao dispor testemunhas presenciais, entre as quais estava o Infante D. Henrique, que Zurara consultou, demorando-se alguns dias em casa deste príncipe, "o qual dos ditos feitos havia mais certa lembrança que nenhuma outra pessoa do regno", como informa o próprio cronista.

Para a composição da referida obra, declara que ainda recorreu a textos históricos: "li mui gram parte das crónicas e livros estoriais". Mas além dos "livros historiais", aproveitou-se também, por exemplo, da Virtuosa Benfeitoria e do Leal Conselheiro, de que reproduz, mais ou menos textualmente, sem os citar, determinados capítulos.

Nem sempre nos transmite os factos históricos com singeleza, e a cada passo se perde em divagações estranhas ao tema da narrativa. Desejando, por exemplo, referenciar "o tempo em que a cidade foi tomada", menciona, sucessivamente, antes disso, a "era de Adão", a "era do dilúvio", a "era de Nabucodonosor", a "era de Filipe o gram rei da Grécia", a "era de Alexandre", a "era de César", e finalmente a "era de Nosso Senhor Jesus Cristo". Alude, em seguida, a mais quatro eras e cita a posição do Sol e da Lua. E após tal exibição cronológica e astronómica, acaba por dizer simplesmente que a cidade de Ceuta foi conquistada no dia 21 de Agosto de 1415.

[...] Mateus de Pisano, que tratou com Zurara e o parafraseou, na obra De Bello Septensi, só publicada em 1790, vê também no escritor um "insigne astrólogo". Esta característica mentalidade deixou seus vestígios na Crónica da Tomada de Ceuta, onde há, por exemplo, um capítulo em que se apontam os pressentimentos e os indícios astrais que os Mouros tiveram de que Ceuta iria ser tomada pelos Cristãos.

D. Afonso V vai sempre estimulando a actividade histórica de Zurara e agora ordena-lhe mais que escreva a Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Parece que redigiu esta obra, segundo Dias Dinis, "entre os anos de 1450 e 1452". No ano de 1453, a 23 de Fevereiro, apresentou a D. Afonso V o Livro dos Feitos do Infante D. Henrique, mas tal volume perdeu-se.

Nesta obra, como já na que consagrou à conquista de Ceuta, Zurara destaca o condicionalismo espiritual da expansão marítima. "Na manhã da grande epopeia, a um tempo bárbara e magnífica, dos descobrimentos e conquistas, foi, na verdade, invocado o nome de Deus para a favorecer e levar a cabo". Descobrimentos e conquistas eram também serviço de Deus, em prol da expansão da Fé, em terras onde não chegara ainda a civilização. Ninguém melhor do que Zurara sentiu o espírito de cruzada, que se alcandorava para além dos interesses e egoísmos dos aventureiros e comerciantes».

Feliciano Ramos («História da Literatura Portuguesa»).




«DA ASTRONOMIA E OUTRAS CIÊNCIAS ou artes, quem se pode muito afirmar, vendo algumas vezes percalçar por elas tão grandes verdades, e de outras tantas falecer?

Das obras naturais, quem considerar como parecerá impossível, a quem nunca viu bombardas ou trons, dizer-lhe que uma pouca de pólvora pode lançar tão grande pedra muito longe com tal fôrça, do que nós já não pomos dúvida, por a continuada experiência, conhecerá que de todo não deve contradizer outras semelhantes, pôsto que as não visse.

E assim devemos pensar de outras semelhantes obras, ainda que nos pareçam fora de razão, que podem ser verdadeiras. Mas por tanto não devemos crer outras semelhantes senão quando assim de certo nos forem demostradas.

Nem demos fé aos feitos e bulras dos alquimistas que por tais semelhanças mostram que os devemos haver por verdadeiros. E pôsto que não acertem de fazer que já verdadeiramente se fêz, nem dos que afirmam de haver oiro encantado (o que tenho por grande bulra por evidentes razões e bons exemplos que prolixo seriam de escrever) por em sôbre estas obras da natureza meu conselho é que ligeiramente não se creiam por as mentiras que alguns, que parecem de autoridade, sôbre elas afirmam. Nem de todo se contradigam por as mui maravilhosas que se fazem. E devem-se de trazer em dúvida, mais inclinados a as não crer que as afirmar, temendo aquela sentença: "Quem de ligeiro crê é de leve coração".

De agoiros, sonhos, dar à vontade sinais do céu e da terra, algum bom homem não deve fazer conta. Por que se não pode bem entender quando é por natural demostração de Nosso Senhor, tentação do imigo, natural presciência, ou que vêem por simples acontecimento, por mudança de compleição, ou falas passadas sem algum significado.

E por que não se pode a maior parte bem conhecer, o mais seguro caminho é não curar de tudo isto, e seguir aquêle conselho que diz: "Lança teus cuidados em Deus, e Êle te recriará"».

D. Duarte («Leal Conselheiro» - Capítulo XXXVII, na edição crítica de 1942).


«[...] era de regra que, encomendada uma pintura sacra a um mestre, no quadro social da arte franco-flamenga em geral europeia, no século XV, as figuras que rodeavam Jesus Cristo, a Virgem ou o Santo representados eram os doadores ou encomendadores, que deste modo patenteavam publicamente, não só a sua iniciativa como também a sua devoção. Para não ir mais longe, bastará apontar algumas das obras de João Van Eyck, como a Virgem entronizada aos pés da qual se ajoelha o doador, o Cónego Van der Paele, ou a Virgem apresentada num interior palaciano, vendo-se em frente dela, ajoelhado também, o Chanceler Rolin, o famoso ministro de Filipe o Bom.

Tudo implica que, embora as 58 figuras temporais do Políptico de Nuno Gonçalves, participem por igual na mesma dedicação e no mesmo voto, os seus doadores sejam as personagens que rodeiam o Infante Santo nos dois Painéis Centrais. São cinco no Painel dos Soberanos e dos Infantes; são três ou quatro no Painel dito do Arcebispo, a que se poderão acrescentar talvez ainda algumas personagens no Painel dos Cavaleiros.

III - Painel da Aliança no Espírito Santo e IV - Painel da Missão das Ordens de Cristo e de Aviz.


Tal como Ernesto Soares, Bélard da Fonseca, Mário de Sampayo Ribeiro, José Luís Conceição Silva e Dagoberto Markl, também estamos convencidos de que a personagem de mãos postas e grande chapelão ou chapeirão negro à flamenga durante muito tempo (desde 1882) e ainda hoje geralmente considerada como o Infante D. Henrique, é outra pessoa bem diferente. E isto por razões poderosas, pese aos inconvenientes de esvaziar uma identificação que já se tornou tradicional e anda por todos os livros de história e de arte, na iconografia moderna e na estatuária monumental.

A primeira é que, depois dos estudos de António Dias Dinis e posteriormente de Bélard da Fonseca e de Conceição Silva, ficou prejudicada a base documental em que assentava a identificação de tal figura no Políptico, como sendo o Infante D. Henrique. Essa base era uma iluminura integrada na Crónica da Conquista da Guiné, do cronista Gomes Eanes de Zurara, existente na Biblioteca Nacional de Paris, com um retrato quase idêntico ao dos Painéis, julgando-se que este códice era anterior ou seu contemporâneo e indicando-se (Visconde de Santarém, José Saraiva, entre outros) a data de 1453 como a do ano da sua conclusão).

Ora, não só o códice não é de Zurara, como é constituído, aponta Dias Dinis, por manuscritos vários, alguns dos quais trechos copiados daquela Crónica além de excertos de outras Crónicas e Cartas, o todo preparado provavelmente no século XVI. Mas o ponto fulcral é constituir a referida iluminura com o retrato do suposto Infante D. Henrique um acrescento tardio ao códice, com a agravante de a sua parte inferior, onde se lê a divisa Talant de bien faire (divisa do Navegador), ser posterior ao próprio retrato, apócrifa e falsificada. A divisa não está escrita segundo a ortografia da época (faire por fere, como no túmulo da Batalha), além de que a moldura da iluminura aparece decorada com ramos de sobreiro, de azinheira ou de hera, quando o "corpo da empresa" do Infante era formado por ramos de carrasco. Diz Conceição Silva, resumindo todo este trabalho de investigação, que o códice manuscrito de Paris não é o trabalho original de Zurara, mas apenas uma cópia tardia (posterior a 1510) de várias obras deste cronista, confundidas, feitas muito provavelmente com destino a Espanha. E acrescenta que a página (pergaminho) que contém a iluminura, representando um indivíduo em tudo semelhante ao retrato nos Painéis, não fazia parte do códice na sua origem. Foi-lhe acrescentada posteriormente.

Quer dizer: a identificação do Infante nos Painéis foi feita por um retrato semelhante, mas que, sendo muito posterior, não o pode pois abonar. Ao contrário, a iluminura do códice de Paris é que terá sido copiada do Políptico, surgindo muito depois a aposição da divisa incorrectamente escrita do Infante. Mas surgindo quando? A única hipótese a este respeito é a de Mário de Sampayo Ribeiro que assim raciocina: o códice foi adquirido pelo conselheiro João Lucas Cortês ao conselheiro D. Francisco de Sólis; aquele, que o autor considera um flamenguista, teria possuído uma iluminura solta com o referido retrato, representando uma não identificada personagem da Flandres, dado o chapelão à flamenga, usado nas cortes de Filipe o Bom e de Carlos o Temerário. Quando em 1702 se fez a almoeda dos livros de Cortês, em 1702, alguém teria inserido a iluminura com o retrato no códice. Muito mais tarde (talvez quando o códice entrou na posse do Marechal d'Estrées), alguém lhe acrescentou a divisa Talant de bien faire, julgando porventura que, tratando-se de documentos relacionados com a descoberta e conquista da Guiné e da costa ocidental de África, o retrato teria de ser do Infante D. Henrique. Aliás a existência do retrato, se fosse do Infante, muito valorizaria o Códice.

Desaparece assim por completo a base documental para a identificação do Infante D. Henrique através do códice de Paris. E sobre a sua identificação verdadeira, neste estádio da questão, a única pista positiva que nos resta é a de que se trata muito provavelmente de uma alta personagem borgonhesa, usando um chapelão flamengo precisamente idêntico ao de Filipe o Bom, no famoso retrato de Rogier Van der Weyden, existente no Museu de Dijon.



Imagem comumente atribuída a D. Henrique





Túmulo do Infante D. Henrique no Mosteiro da Batalha.




Infante D. Henrique (Portal Sul do Mosteiro dos Jerónimos).



Como se esta razão não bastasse, duas outras a confirmam. Efectivamente, como já aliás tivemos a ocasião de apontar, tendo o Infante D. Henrique morrido em 1460, não é nada plausível que surja, num quadro pintado entre 1467 e 1471, ao lado de uma assembleia de vivos. Nestes casos, a única excepção à regra, é a das figuras sacrificadas, como a do Infante Santo, que estão já para além do tempo. Este motivo aliás, prejudica quanto a nós, outras identificações que se têm querido fazer, como por exemplo a de Bélard da Fonseca (seria o Infante D. Pedro, irmão do Infante D. Henrique) ou a de Dagoberto Markl (seria o rei D. Duarte).

Por outro lado, se compararmos o retrato do Políptico com a única representação iconográfica feita em vida do Infante D. Henrique, a do túmulo da Batalha (muito embora em reprodução posterior por um canteiro, que todavia, escreve Luís Reis Santos, terá substituído com aceitação e agrado geral o protótipo coevo, reproduzindo as formas iniciais com relativa facilidade, embora sem o nível artístico que devem ter tido) - o certo é que não há a mínima parecença entre os dois retratos. Há muitos traços fisionómicos que sofrem evolução com o tempo ou que escapam no pormenor à atenção de retratistas pouco hábeis, mas o que impressiona aqui é que as estruturas ósseas dos dois rostos são totalmente diferentes. O retrato da estátua jacente da Batalha mostra um maxilar inferior poderoso e avançado, em tudo dissemelhante ao do retrato do Políptico.

Conhecem-se dois outros supostos retratos do Infante D. Henrique, ambos executados no período manuelino: a estátua do portal da Igreja de Santa Maria dos Jerónimos, mostrando-o em guerreiro, como cavaleiro de Avis, e a que se encontra na parte exterior do Convento de Cristo em Tomar. Nenhuma delas oferece também qualquer semelhança com o retrato do Políptico de Nuno Gonçalves. Muito embora estas esculturas sejam pouco significativas, por ter sido a primeira restaurada e modificada, talvez depois do terramoto de 1755 ou talvez mesmo nas obras revivalistas do século XIX, e por estar a segunda ao ar livre, muito corroída, havendo mesmo quem duvide tratar-se do Infante, o certo é que estas obras (cuja figuração fisionómica porventura corresponderá a uma tradição) também não confirmam o referido retrato de Nuno Gonçalves. A dos Jerónimos deve ter sido esculpida entre 1517 e 1519; a de Tomar, a avaliar pelo estilo, como o fez Reis Santos, no período joanino das Obras de Tomar, entre 1521 e 1530.

Quem é então a personagem do chapelão ou chapeirão flamengo? A resposta não é fácil e só podemos oferecer uma conjectura plausível, sustentada não apenas pela própria lógica do Políptico, como também por algumas pistas objectivas.

Quais os requisitos?

Deverá tratar-se de uma personagem borgonhesa, devido ao chapelão e ao traje, que já se não usavam em Portugal, mas de que encontramos réplicas quase exactas no retrato de Filipe o Bom por Van der Weyden e também numa outra representação no trono, em iluminura da obra Le Champion des Dames, de Martin le Franc; e mais do isso, de uma grande personagem, aparentada com a Casa de Avis, dado o lugar de honra em que se encontra. Nestas condições, uma única pessoa o poderia ocupar: Carlos o Temerário, o Duque de Borgonha e de Brabante, primo direito de D. Afonso V, precisamente filho da Duquesa da Borgonha, a Infanta D. Isabel de Avis, filha de D. João I e tia de D. Afonso V. Acresce que o Grande Duque do Ocidente como lhe chama Marcel Brion na sua biografia, usou um bigode semelhante ao do retrato de Nuno Gonçalves, o que não se pode de modo algum dizer a respeito do Infante D. Henrique. Quando Luís Reis Santos argumenta a favor da identificação deste último no Políptico, contra os que, como Mário de Sampayo Ribeiro, entre outros, afirmam nunca ninguém ter falado num bigode semelhante, ou mesmo em tal chapelão flamengo a propósito do Infante de Sagres, não estando o bigode aliás de moda entre nós, o crítico contraria esta opinião lembrando algumas personagens que o usaram notoriamente, como o Duque Alberto V da Áustria, Fernando I, irmão de Carlos V, o pintor Rogier van der Weyden e... Carlos o Temerário...».

António Quadros («Portugal, Razão e Mistério. O Projecto Áureo ou o Império do Espírito Santo», II).




Brasão de Armas de Carlos, o Temerário



«Convirá recordar [...] que o casamento do Rei Fernando com Leonor Teles causou um primeiro sobressalto popular. Foi acto que desgostou o comum do povo; e os representantes deste, pelo reino além, juntaram-se em largos grupos, praticando das notícias da corte. Mas a elite e as classes altas - os grandes da terra e os fidalgos - estavam ausentes e alheios. E dos protestos não se fez porta-voz qualquer da nobreza, ou do clero, ou mercador - mas um simples alfaiate, um Fernão Vasques, apoiado em mesterais, besteiros e homens de pé. Falou o alfaiate ao mensageiro do rei, e disse do agravo de todos; e o mensageiro prometeu boa resposta para o outro dia, no alpendre de São Domingos. Mas esta manifestação do povo não prazia aos fidalgos e privados do rei. E quando se foram ao local do encontro ajustado, não apareceu o soberano, nem seu representante; e chegou a notícia de que o rei, com Leonor Teles, se fora da cidade. Fernão Vasques, depois de torturado, foi enforcado. Escreveu o cronista que fora feita justiça "prestes e boa". Depois, nasce Beatriz, e é prometida a quatro pretendentes sucessivos, e por último a João I de Castela; e este casamento, segundo o acordo feito com o castelhano, teria como consequência ser o trono português entregue a rei estrangeiro. E logo João de Castela, como foi informado da morte de Fernando, escreveu a Leonor Teles pedindo que fosse Beatriz proclamada rainha de Portugal. E então a esmagadora maioria do alto clero e dos fidalgos portugueses levantou arraial e alçou pendão por Beatriz como "rainha de Portugal e Castela", consoante diziam os pregoeiros. Não concordou com a atitude da fidalguia e dos prelados o povo, e entre este foi grande o murmúrio e a turvação, e muitos bradavam: "agora se vende Portugal, que tantas cabeças e sangue custou a ganhar", escreveu o cronista. E daqui se passou a uma luta profunda. De um lado, a elite, o escol, as classes dirigentes, manietadas por compromissos, aferradas a uma legitimidade formal, apegadas a ideias e forças e doutrinas oriundas de além-fronteiras, e aterradas com a perda de posições ou o prejuízo de interesses; de outro lado, o povo, a arraia-miúda, a burguesia ascendente, resolutas em assegurar uma independência que não estivesse à mercê de políticas ou princípios alheios. Por isso, da defesa da independência nacional esteve ausente a nobreza. Escreve Gama Barros: "a antiga nobreza tinha na maior parte desaparecido abraçando a causa de Castela" (G. B., História da Administração Pública, II, 475). Esteve também ausente o alto clero. Este, chefiado pelos bispos da Guarda e de Coimbra, auxiliou o rei de Castela, e somente o arcebispo de Braga foi partidário entusiasta (escreve Damião Peres) da causa nacional. E estiveram ausentes os mercadores, os homens do poder económico. A estes, quando reunidos em conselho, perguntou um tanoeiro de Lisboa, Afonso Penedo, se eram verdadeiros portugueses; e perante as hesitações daqueles, afirma-nos Fernão Lopes, o tanoeiro levou a mão à espada e disse que quem não quisesse outorgar como o povo, era mister que pagasse pela sua garganta, antes que dali saísse. Segundo o cronista, foi argumento decisivo a espada, e todos se declararam como queria Afonso Tanoeiro. Mas quem fez o golpe de Estado que levou às cortes de Coimbra e a Aljubarrota (que segundo parece os espanhóis querem agora transformar em derrota portuguesa ou numa invenção dos portugueses de já seiscentos anos) foi Álvaro Pais. Modesto, de raiz plebeia, "homem honrado e de boa fazenda" - informa-nos Fernão Lopes - subira na escala social com a valorização dos legistas; fora chanceler de Pedro I; e agora, por 1383, estava velho, entrevado de gota, amarrado pela doença a uma cadeira; mas foi Álvaro Pais que concebeu o golpe, e atroou os moradores de Lisboa com o grito de que queriam matar o Mestre de Avis, e encorajou depois o mestre e entusiasmou Nuno Álvares. E tudo foi completado pela dialéctica de João das Regras, que em Coimbra convenceu os relutantes e esmagou a argumentação dos poucos fidalgos presentes. Entretanto, cinquenta e quatro cidades e vilas haviam levantado voz por Castela; e ao lado do Mestre e de Nuno Álvares, segundo a lista de Fernão Lopes, estavam menos de cem fidalgos. No fundo, o debate travou-se em torno de dois valores em conflito: a um lado, o respeito pelas leis de sucessão ao trono, erigidas como valor sacrossanto; a outro lado, a soberania e a independência nacionais. Ao tempo, o primeiro constituía o mito político vigente, e tido por único legítimo e válido pelas classes com afinidades ideológicas e de interesse além-fronteiras, ou sejam, o alto clero e a nobreza, o primeiro por obediência espiritual e até por subordinação hierárquica e a segunda por laços de parentesco e patrimoniais com famílias estrangeiras. O outro princípio - o trono com emanação do povo - representava a defesa da vontade e da soberania nacional, e a gestão desta consoante interesses puramente portugueses e sem enfeudamento a políticas lançadas por outros. Da vitória da dialéctica de João das Regras resultaram três consequências decisivas para o futuro da nação: reforço da Coroa, por se firmar em larga base popular, de que era emanação; subida dos legistas ao poder; ascensão de uma sociedade nova ao governo do país. Por outras palavras: afundadas em Aljubarrota as antigas classes dirigentes, surgiu, formou-se, foi lançada uma nova elite, afirmou-se um novo escol.

E aqui tocamos um fenómeno cíclico na crónica sociológica de Portugal: a cada grande viragem da história nacional, produz-se uma sistemática destruição de elites; e depois o processo da sua reconstituição demora duas a três gerações (entendendo-se que cada geração corresponde a cerca de dez anos). E na viragem do século XIV para o século XV foi bem patente o fenómeno. Grande foi o mérito de D. João I, de João das Regras, e dos seus partidários em terem sabido assentar as bases na criação de novas elites. E passados que foram vinte ou trinta anos, nós vemos as novas classes dirigentes e o novo escol - tanto a nobreza como o alto clero, tanto os legistas como os mercadores - inteiramente à altura das circunstâncias e defensores lúcidos dos altos interesses nacionais. Tinham-se afeito à nação. E foi a epopeia das navegações e descobrimentos: é que o fenómeno ultramarino passava a fazer parte integrante da consciência da nação e da vida portuguesa: e as novas elites, saídas da revolução, cumpriam o imperativo (cf. Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no período henriquino). Temos alguns exemplos que ficaram por símbolos supremos. No topo da pirâmide, como é evidente, está D. João II, talvez o maior génio político de toda a história de Portugal. E outros mais: Albuquerque, Almeida, Castro, mil outros. E depois os cientistas, os letrados, os missionários, os cronistas. E há um episódio em que as elites se sacrificam perante os desígnios da nação. Quando se põe o problema da entrega de Ceuta contra a libertação do Infante D. Fernando do seu cativeiro de Fez, há hesitação entre alguns círculos da Corte e entre alguns procuradores de concelhos. Mas o arcebispo de Braga e o conde de Arraiolos opõem-se tenazmente à entrega da praça de Ceuta: o Infante devia ser imolado aos altos interesses nacionais: e assim acabou por ser deliberado. E Portugal transmite então o "retrato singular e prodigioso de uma nação organizada, em que os diversos grupos sociais figuram por direito próprio à volta do rei" (António José Saraiva, Para a história da cultura em Portugal, II, 263)».

Franco Nogueira («Juízo Final»).










A Perdida Atlântida

Diante das caravelas do Infante desvaneceram-se os monstros do sul. O Mar Tenebroso tornara-se caminho de luz que, ninguém o duvidava, podia prosseguir-se até que o extremo da África se dobrasse finalmente. E que pensar do Ocidente vazio? O oceano alargava-se pelo espaço infinito - abismo que na memória do homem nenhuma voz cruzara ainda. "Vimos da praia ocidental onde o sol se põe e não sabemos da terra mais além - não há senão água!" Assim o tinham afirmado os peregrinos ingleses, Willebald e Wunebald ao califa de Damasco no século VIII. Quando, setecentos anos mais tarde, D. Henrique nasceu junto àquela mesma costa ocidental, os geógrafos nada de útil tinham acrescentado à afirmação dos peregrinos. O Almagesto de Ptolomeu era ainda o oráculo dos estudiosos, e não falava de terra a ocidente da Europa.

A ciência dos Árabes nada contribuiu para esta matéria: "O próprio oceano é o único limite do mesmo oceano", declarou o viajante muçulmano, Ibn Khaldun, e era essa a opinião da maioria. Aristóteles sugeriu, é certo, que poderia haver terras para além do mar, a servirem de equilíbrio ao hemisfério oriental, mas supunha que fossem terras asiáticas. O mundo é pequeno, dissera, e as colunas de Hércules não ficam longe da Índia. Neste ponto Séneca concordava com ele. Bastariam alguns dias - dizia - de vento favorável para um navio atravessar o oceano; e o medieval Gilles de Bouvier escreveu que, se um navio navegasse sempre a direito, acabaria por alcançar a terra do Preste João. Tudo isto não passava de teoria. Nem Aristóteles, nem Séneca, nem os seus discípulos mais modernos admitiam a possibilidade prática de se atravessar o oceano.

Entretanto corriam as lendas - vagos rumores que se repetiam pelos séculos fora - de terras que ficavam muito para ocidente. Era umas vezes um continente perdido - a Atlântida de Platão, submergida nas vagas - ou a ilha encarnada das Sete Cidades, onde sete bispos e os seus rebanhos haviam procurado refúgio perante a invasão muçulmana. A ilha das Sete Cidades nunca pôde ser encontrada, porque o bispo do Porto, necromante, a ocultara nos mares por magia. E ninguém pôde regressar, porque os sete bispos queimaram as embarcações! Além destas, corriam muitas outras histórias, todas mais ou menos miraculosas e fantásticas.

D. Henrique não era homem que se deixasse levar por lendas, nem tão-pouco aceitava cegamente as afirmações dos antigos. Mas fora da fantasia ou das conjecturas havia as viagens históricas dos Vikings, que tinham circum-navegado o círculo árctico, e descido uma costa ocidental até ao país do Vinho em tempos remotos. A sua descoberta perdera-se, mas ficava a tradição - e o rei Erico da Dinamarca casara com a prima de D. Henrique. O infante D. Pedro visitara essa corte setentrional e parece que D. Henrique tinha interesse em manter as relações. Vimos já como ele tomou ao seu serviço o dinamarquês Abelhart, e certamente conversaria com este sobre as tradições geográficas dos países escandinavos.

"O Infante D. Henrique", diz Diogo Gomes, "desejando conhecer as regiões afastadas do oceano ocidental, se acaso haveria ilhas ou terra firme além da descrição de Ptolomeu, enviou caravelas para procurar terras" (11). Na busca tinham achado os Açores - mas seria só isso? O imenso Atlântico não teria a revelar senão aqueles montes perdidos?





Há quem julgue que D. Henrique, como Toscanelli, e Colombo mais tarde, se entretivera com a ideia dum caminho ocidental para a Índia. Embora seja perfeitamente admissível que tenha encarado a teoria - por certo discutida no seu tempo - não parece que a aceitasse como a solução mais prática do problema. E, embora haja indícios de exploração atlântica promovida por ele, tais viagens não foram nunca a sua preocupação principal. O seu primeiro objectivo era circundar o continente africano, do Atlântico ao oceano Índico. Todas as divagações para ocidente eram parentéticas - uma válvula à curiosidade científica que ele não tinha tempo ou meio de satisfazer inteiramente.

Tais viagens fizeram-se, não obstante, umas acidentais, outras premeditadas. Não são registadas pelos cronistas, desinteressados de estéreis apalpadelas em busca de costas nebulosas indistintamente avistadas após fatigantes léguas de mar. Temos conhecimento delas pelos indícios e tradições, referências passageiras de documentos, e porque em meados do século XV todos os mareantes estavam convencidos de que a oeste dos Açores existiam outras terras.

A colonização deste arquipélago em pleno oceano tornou quase inevitável que se tentassem outras viagens mais para ocidente ainda. Desde que foram descobertos, os Açores tinham-se transformado em porto de escala para os navios que regressavam da Guiné, mas em comparação com a Madeira, a população ali estabelecida aumentava devagar. D. Henrique introduziu gado em todas as ilhas desde o início, e, em 1439, Gonçalo Velho foi autorizado a colonizar Santa Maria. O infante D. Pedro povoou S. Miguel de lavradores mouros, e aí, apesar dos terramotos e levantamentos sísmicos, parece que prosperaram. D. Isabel, duquesa de Borgonha, também colaborou na empresa da família. Muitos dos seus súbditos flamengos foram enviados a Portugal para obterem concessões de terreno e irem estabelecer-se nos Açores.

Eram ilhas encantadoras, estes jardins de verdura assentes em fogos vulcânicos. Facilmente se transformaram num celeiro de exportação de trigo, e o gado gordo e os laticínios que produziam em breve se tornaram justamente afamados. Não havia vacas que desse tanto leite como as açorianas, nem leite tão rico em manteiga; não havia carneiros tão saborosos como os que se criavam nas pastagens das ilhas, ou que produzissem melhor lã.

Estas grandes vantagens naturais era contrabalançadas pelo seu isolamento insuportável. Poucos se dariam ao incómodo de se estabelecerem numa ilha isolada do resto do mundo por perto de mil milhas de mar. A população humana dos Açores continuou, por isso, reduzida e, durante algumas décadas, limitou-se a Santa Maria e S. Miguel. O Pico, a Graciosa e S. Jorge, durante muitos anos, tiveram poucos habitantes, assim como a Terceira, embora esta fosse porto de escala frequentado pelos navios que regressavam da África.

O Faial era janela voltada a ocidente. Foi daí que Diogo Teive, escudeiro de D. Henrique, embarcou um dia em busca da ilha das Sete Cidades. Acompanhado por seu filho João e pelo piloto galego, Pero de La Frontera, navegou cento e cinquenta léguas para sudoeste sobre o mar deserto.

Não encontrando sinal de terra, os navegantes mudaram de rumo para nordeste até que viram grandes bandos de aves. Eram aves terrestres, segundo parece - seguiram-nas, e acharam assim as duas ilhas extremas dos Açores - Flores e Corvo - que ficavam tão isoladas das restantes, que ainda não eram conhecidas. Era uma descoberta, evidentemente, mas não a que eles procuravam. Diogo de Teive e a sua tripulação deixaram as ilhas das Flores e do Corvo para trás e fizeram rumo a noroeste.







Aeroporto na ilha do Corvo



A ilha do Corvo vista do Miradouro do Caimbro, costa nordeste da ilha das Flores.



Ilha das Flores (Açores).


Atingiram a latitude de 50º norte, onde os furiosos ventos do ocidente bramiam, embora o mar fosse calmo. Todos os sinais pareciam indicar que a terra não ficava longe - mas o ar tornara-se estranhamente frio, apesar de se estar em Agosto, e recearam que o inverno setentrional não tardasse a surpreendê-los. Mal preparados como estavam, não ousaram continuar para ocidente em busca da terra desconhecida. E Diogo de Teive regressou assim aos Açores e a Portugal, deixando por um triz de descobrir a Terra Nova. Isto deve ter sido em 1450 ou 1451. Em 1453, sabemos que o rei cedeu a ilha do Corvo a seu tio de Bragança.

Um outro explorador do Atlântico foi Vicente Dias de Tavira - o homem que pilotou Cadamosto na sua primeira viagem à África. Vicente Dias, voltando da Guiné a Portugal pelos Açores, descreveu um grande círculo pelo largo, muito a ocidente da Madeira. Julgou ver terra ainda mais a ocidente - ilha ou continente, fosse o que fosse. Posteriormente, embarcou de novo a procurá-la, mas, fosse continente ou miragem, a terra desaparecera.

Seria a mesma terra que Gonçalo Gonçalves vira ao regressar das pescarias do rio do Ouro? Avistara-a no alto mar, segundo consta, a oeste-noroeste das Canárias e da Madeira. Procurou governar para ela, mas o vento era contrário, e, embora um navio fosse depois enviado em exploração, a ilha não se encontrou.

Tais narrativas são provavelmente muito verídicas - são pouco emocionantes para serem inventadas - mas há outras histórias de ilhas do tempo de D. Henrique, baseadas talvez em factos, mas enfeitadas de pormenores fantásticos que ultrapassam toda a verosimilhança. Como ordinariamente acontece com as lendas desta natureza, é a escritores de data posterior que devemos a sua conservação. Assim, o historiador do século XVI, António Galvão, narra que em 1447 um navio do Porto foi levado pelo vento para longe da sua rota. Alcançou uma ilha de habitantes cristãos. Estes chegaram a levar os marinheiros à sua igreja. Pediram-lhes que se demorassem até que o seu príncipe, então ausente, regressasse, mas os portugueses, com receio de traição, fugiram furtivamente de noite. Ansiosos por darem a notícia, chegaram ao reino contando com que o Infante os recompensasse; mas ele ficou irado, segundo consta, por terem regressado com informações tão escassas. Reenviou-os imediatamente à sua ilha, e desta vez não regressaram.

Não é narrativa convincente sob muitos aspectos, mas a atitude do Infante está-lhe perfeitamente a carácter. Ninguém podia conseguir dele recompensas impingindo-lhe invenções de viajantes; o mais que se podia obter pelo trabalho seria receber ordem de voltar a verificar os factos!

Talvez seja outra versão da mesma história que narra as aventuras dum navio colhido pela tempestade ao sair do estreito de Gibraltar. Os ventos arremessaram-no para a ilha das Sete Cidades, sobre uma praia cujas areias continham ouro em pó. Regressando a Portugal, o contramestre vendeu uma porção desta areia por bom preço a um ourives de Lisboa e o infante D. Pedro mandou que a maravilha se registasse no arquivo nacional. Se alguém viu já este documento não se nos diz!

Estas histórias podem arredar-se para o lado como lendárias - embora uma lenda persistente e repetida quase nunca se forme senão em volta dum facto verdadeiro - mas o testemunho dos mapas não é fácil de pôr de parte.

Aí temos a ilha vagabunda de Antília. Em todas as cartas traçadas depois de 1462, encontra-se a ocidente dos Açores. A latitude é variável, mas ela geralmente paira no paralelo de Lisboa ou do cabo de S. Vicente, e às vezes onde as Índias de Colombo se descobriram mais tarde. Conjectura? Coincidência? Descobrimento autêntico? Os historiadores discutem e não se apresentam provas a favor de qualquer hipótese. Toscanelli, escrevendo para Portugal em 1474, faz menção da "ilha de Antília que vós conheceis", e quando Colombo voltou da sua famosa viagem, imaginando que alcançara as ilhas externas do Japão, em Portugal apenas se disse: - Esteve na Antília!

Localização da Antília na Inscrição de Johannes Ruysch, 1508.


Além de Antília há a "Ilha Autêntica", a sudoeste de Cabo Verde, traçada por Andrea Bianco num mapa de 1448. Andrea Bianco estivera em Lisboa precisamente antes dessa data e seguira daqui para Londres, onde elaborou este mapa. A "Ilha Autêntica" ali representada é um trecho de costa que se insere como se estivesse a mil e quinhentas milhas a ocidente da África, o que nos leva ao Brasil!

O mistério da costa transatlântica seduzia a imaginação romântica do infante D. Fernando, filho adoptivo de D. Henrique. De toda a variada herança que seu padrinho lhe legou, foram as ilhas do ocidente que mais o alvoraçaram. A costa de África pouca importância tinha para D. Fernando. Pouco fez para promover a sua exploração, mas o continente desaparecido procurou-o ele com zelo persistente durante os restantes anos da sua curta existência.

Nunca o encontrou, pelo que sabemos, e aos contemporâneos talvez parecesse empreendimento estéril. Desse lado não se esperavam riquezas - especiarias e escravos e ouro já se tinham encontrado abundantemente na África. Os mareantes que navegassem para o nebuloso Ocidente não eram atraídos senão pela sedução do desconhecido.

Os seus esforços não se perderam. Pouco se descobriu das terras transoceânicas em tempo de D. Henrique ou de D. Fernando, além da certeza de que existiam, mas entretanto para os mareantes portugueses o oceano tornou-se livro familiar. Navegando desde o cabo de Finisterra até ao mar de Sargaço - desde os bancos frios da Terra Nova até ao golfo fumegante da Guiné - vieram a conhecer as calmarias e os alisados, as estações, as correntes e os ventos dominantes, aprenderam a governar as suas pequenas embarcações ao longo da latitude ou do meridiano, a navegar em curvas, a bordejar contra o vento e a não perderem o rumo certo.

As gerações seguintes descobriram mais terras que os navegadores de D. Henrique, mas o conhecimento do mar a estes o deviam. Outros viajantes podiam explorar a terra firme - os navegantes mais antigos fizeram o mais difícil: exploraram o oceano Atlântico. Quase obscuramente, abriram caminho àqueles grandes nomes que mais tarde colheram os louros. Colombo, como marinheiro, nada sabia que eles lhe não tivessem ensinado - talvez nada fizesse que eles não tivessem já feito.

E a perícia e tenacidade deste preparou o caminho àquele feito sublime com que Vasco da Gama coroou o fecho do século. Aquela espantosa viagem em volta do Cabo - navegando noventa dias longe de terra e percorrendo sessenta graus em pleno oceano - só podia ter sido possível com experiência alcançada em inúmeras viagens anteriores, mas que ninguém registou.


Última Cruzada

Enquanto a cruz avançava para sul nas caravelas de D. Henrique, Constantinopla caía nas mãos dos Turcos e Maomet II punha cerco a Belgrado. Num espanto de terror, a Europa estremeceu de leste a oeste, e o papa convocou uma cruzada geral.






Durante algum tempo pareceu que o seu apelo seria de certo modo correspondido. Os príncipes de todas as cortes advogaram a cruzada, e Filipe de Borgonha, pelo menos, tomou solenemente a cruz no meio de grandes festejos e comezainas. Foi coisa emocionante e espectaculosa, mas sem qualquer consequência. Cada um dos monarcas esperava que o seu vizinho desse o primeiro passo. Entretanto, os Turcos não tinham ultrapassado os Balcãs e, enquanto ali permanecessem, os príncipes ocidentais não se assustavam a sério.

A situação na Itália era menos tranquilizadora. O papa Calisto, olhando ansiosamente para as terras da outra margem do mar Adriático, continuou a bradar por auxílio.

D. Afonso V, cavalheiresco e jovem, vibrou ao ouvir ao apelo. Não lhe importava que Portugal não estivesse nada ameaçado. Aspirava a desembainhar a espada em defesa da cristandade. Prometeu servir além-mar durante um ano inteiro com um exército de doze mil homens, e mandou convites aos reis seus irmãos para que viessem reunir-se-lhe. Cheio de entusiasmo e sem olhar a despesas, lançou-se nos preparativos, "não sem grandes lamentações do reino" (12).

Os seus súbditos não partilhavam o fervor de cruzado do monarca. Constantinopla estava tão longe, que ninguém se sentia instigado ao sacrifício.

Friamente o povo observava o rei a construir os seus navios, a reunir e a comprar armamentos e - visto que receava que a sua moeda depreciada não tivesse aceitação no estrangeiro - a cunhar novas e lindas moedas de ouro que foram conhecidas por "cruzados".

Se os seus súbditos manifestavam apatia nada louvável, os reis seus irmãos não lhe deram maior satisfação. "Nunca d'algum por verdadeira obra nem somente fyngida mostrança", diz Rui de Pina, "pode entender que em seu piadoso trabalho e perigo conhecido o teria por parceiro nem ajudador [...] (13). Os mais práticos dos conselheiros de D. Afonso lembraram que antes de prosseguir neste trabalho e despesa, seria bem saber-se se poderia contar com qualquer auxílio. A Itália, por exemplo, devia estar mais interessada do que Portugal em derrotar o inimigo do Levante. Que se mandasse um embaixador ao rei de Nápoles a saber o que tencionavam fazer os príncipes italianos.

Absolutamente nada, ao que parecia! O embaixador português "nom achou em Napoles nem Italia aquele percebimento nem desejo que para tal empresa compria" (14).

Os conselheiros de D. Afonso disseram-lhe que isto não podia ser. Por que razão havia ele de ir tão longe defender o Mediterrâneo dos Turcos, quando aqueles cristãos que moravam nas suas costas não queriam esforçar-se? Ele não podia acalentar a esperança de tomar Constantinopla com doze mil homens! O melhor que o rei tinha a fazer, disseram, era ficar tranquilamente em casa a governar o seu reino em paz e justiça. Quando Portugal fosse ameaçado por um poder estrangeiro, então seria ocasião de ir para a guerra!








Assinatura de D. Afonso V, o Africano





Cruzados



Bons conselhos mas falhas de interesse para um jovem ardente. Não era apenas pelas artes da paz que D. Afonso esperava notabilizar o seu reinado. Tendo reunido o seu exército e a sua armada, não iria agora mandá-los pacatamente para casa! Precisava de fazer alguma coisa, ainda que não fosse mais do que castigar os piratas franceses que lhe perseguiam constantemente os navios mercantes. Mas havia outras possibilidades mais atraentes. Em vez duma cruzada em socorro de reis que ficavam a centenas de léguas de distância - porque não se realizaria uma mais perto de casa, que pudesse combinar o proveito espiritual com alguma vantagem material para a coroa? Embarcaria na sua esquadra para África, e faria novas conquistas aos mouros!

Este plano entusiasmou o idoso tio de D. Afonso. O Infante D. Henrique, que ia já nos sessenta e quatro anos, observara, sem grande interesse pessoal, os preparativos da armada destinada ao Levante. Nunca sentira qualquer inclinação para uma cruzada contra os Turcos, mas durante toda a sua vida, para bem ou para mal, Marrocos não lhe saiu da ideia. A conquista de Ceuta fora o sonho da sua juventude, o glorioso feito da sua espada virgem. Tânger fora a presa ambicionada e causadora da tragédia que lhe arruinara a meia-idade.

Os paraísos insulares do mar, os esplendores da costa da Guiné nunca lhe tinham apagado do espírito as montanhas pardacentas de África onde o sangue de seu irmão clamava ainda por vingança. O punhal revirara-se-lhe na ferida, quando o padre João Álvares foi resgatado do cativeiro, e o Infante ordenou ao seu fiel criado que escrevesse tudo aquilo de que se lembrava relativamente ao martírio do seu amo em Fez. A narrativa constitui leitura arrepiante para nós hoje. Deve ter sido um livro de horrores para o irmão de D. Fernando. Se D. Afonso quisesse castigar os mouros em África, D. Henrique morreria feliz.

Lançou-se de alma e coração nos preparativos. Organizou a esquadra do Algarve, enquanto o rei e seus primos reuniram as suas nos portos mais setentrionais. Quando D. Afonso navegou para o sul, encontrou seu tio já pronto, a esperá-lo em Sagres. O Infante saudou o rei e seus sequazes com o que o cronista diz ser um discurso perfeito.

Momento solene foi esse que o impeliu à oratória. Via por fim o que tanto desejara ver desde 1438 - uma força expedicionária fortemente armada, pronta a embarcar contra o rei de Fez. A armada constava de duzentos navios, que transportavam vinte e cinco mil homens. Era o dobro do que D. Afonso tencionava levar para o Levante, mas operando assim mais perto do reino, as despesas reduziam-se a metade.

Fora decidido que o objectivo principal seria Alcácer-Ceguer. O rei D. Afonso tivera maiores ambições. Gostaria de experimentar a sua fortuna em Tânger, mas este desejo foi contrariado, por ser por enquanto demasiadamente ambicioso. O próprio D. Henrique o admitira. Clamara por Tânger havia vinte anos, mas depois disso aprendera a sua lição. Tânger, atrás das suas poderosas muralhas, não podia ser tomada por um grupo de desembarque. A pequena cidade de Alcácer, no estreito de Gibraltar a ocidente de Ceuta, era muito mais fácil de assaltar com êxito, e a sua tomada auxiliaria materialmente a defender a primeira conquista.




Brasão de Armas do Infante D. Henrique



Em 14 de Outubro de 1458, a expedição levantou ferro em Lagos. Como a que se dirigira contra Ceuta havia muitos anos, era empresa da família, mas só D. Henrique restava para representar a geração que embarcara naquela manhã de Julho de 1415. Em vez dos seus irmãos, D. Henrique via à sua roda os filhos deles: D. Afonso e D. Fernando em lugar de D. Duarte, assim como o moço D. Pedro, filho do falecido regente, pouco antes chamado para o reino pelo rei após anos de exílio. O velho duque de Bragança - passando já dos oitenta anos - ficara, mas seu filho, o marquês de Valença - veterano que já ultrapassara a meia-idade - embarcara com os seus jovens primos.

Em 19 de Outubro, D. Henrique mais uma vez avistou Tânger. Durante dois dias a esquadra esteve ancorada sob aquelas muralhas associadas a tanta amargura. O rei D. Afonso contemplou cobiçosamente a esplêndida cidade. Esta seria presa muito mais bela do que a pequena Alcácer! Porque se não havia de assaltar Tânger em vez daquela? Mas o conselho opôs-se. Que experimentasse primeiro forças em Alcácer-Ceguer - Tânger não podia tomar-se sem luta demorada e custosa.

O cerco de Alcácer foi breve, embora os mouros se batessem bem. D. Henrique conduziu as tropas ao assalto com uns restos do seu entusiasmo juvenil, e, incitados pelas suas palavras inflamadas, todos praticaram feitos de valor à sua vista. À meia-noite o Infante mandou buscar uma pesada bombarda para a colocar de encontro à muralha e pôs-se a derrubá-la a tiro. As pedras desmoronaram-se à força de pelouros; os defensores em breve pediram condições e D. Afonso encarregou o tio de lhas ditar.

Não eram duras. D. Henrique disse aos muçulmanos que o rei viera apenas para servir a Deus. Ninguém lhes queria o dinheiro ou os bens. Podiam partir livremente, levando mulheres e filhos e tudo quanto possuíam, deixando apenas os prisioneiros cristãos.

Os mouros pediram tréguas para estudar essas condições, mas o Infante recusou-lhas. Tinham de as aceitar ou rejeitar, replicou, mas, se insistissem em combater até final, os cristãos massacrá-los-iam.

Os mouros tentaram, com efeito, resistir mais um ou dois dias, mas, verificando que a defesa era impossível, capitularam. O Infante concedeu-lhes as mesmas condições que já lhes tinha proposto, e enviou o seu afilhado D. Fernando a verificar que eram cumpridas.

D. Fernando viu retirar os mouros em boa ordem com todas as suas famílias e haveres. Nenhum deles, declara o cronista, recebeu injúria de espécie alguma. Ao desfilarem, sem serem molestados, da cidade conquistada, lembrar-se-ia D. Henrique daqueles dias terríveis em que, vinte anos atrás, a situação em frente de Tânger fora o inverso desta: seu irmão afastando-se a cavalo, no crepúsculo, para o martírio, a fé violada pelo vencedor, a luta desesperada para chegar à praia? A vingança por que esperara durante tanto tempo tinha-a nas mãos em Alcácer, mas contentou-se com a vitória. Ao lado do rei ajoelhou na mesquita, agora transformada em igreja cristã, e agradeceu ao Senhor, que lhe dera ver este dia.


Série Conquista de Arzila e Tânger por Afonso V de Portugal em 1471 (Tapeçarias de Pastrana).








O rei D. Afonso, enfatuado pelo êxito, procedeu a conceder recompensas a torto e a direito. Grandes ocasiões estas para os fidalgos precisados. D. Afonso era generoso em qualquer ocasião, mas colhido em maré de entusiasmo como agora, lançaria o património aos ventos. "Não me deixou senão as estradas!", havia de dizer tristemente o filho ao suceder-lhe no trono.

D. Duarte de Meneses, filho do primeiro defensor de Ceuta, foi encarregado da capitania de Alcácer. O Infante D. Henrique insistiu com o sobrinho que deixasse a cidade bem fortificada e abastecida de tudo quanto era necessário, visto ser certo e iminente um cerco. O mancebo ouviu distraidamente os conselhos do tio, pois estava demasiadamente ocupado a distribuir benesses e honras para lhes dar atenção.

Saindo de Alcácer, o exército real chegou a Ceuta, que D. Afonso não vira ainda. Causou-lhe impressão. Era cidade grande e magnífica - muito maior e mais grandiosa do que a sua recente conquista. Seu avô fizera mais do que ele - pensamento humilhante! D. Afonso depressa se consolou, resolvendo praticar maiores feitos do que esse, e um dia tomar Tânger! Entretanto o rei de Fez veio de Tânger a cercar Alcácer, e, como D. Henrique previra, as provisões estavam a esgotar-se.

D. Afonso fez o que pôde para as introduzir na praça, mas sem êxito. Os mouros cercavam a cidade. Desafiou então o rei de Fez a combater em campo. Os astuto mouro não fez caso do desafio, porém, e em vez disso assentou arraial em frente de Alcácer. Os súbditos de D. Afonso disseram-lhe com firmeza que tinha de regressar ao reino. O país não podia sustentar tamanho exército além-mar. A guarnição de Alcácer teria de se aguentar, como a de Ceuta já fizera. Do Algarve seria mais fácil enviar armas e munições.

O rei embarcou, pois, para Portugal, e D. Duarte Meneses, que ficara em Alcácer, aguentou-se. Defendeu a praça durante cinquenta e três dias com grande êxito espectaculoso, e embora o rei de Fez se retirasse apenas para fazer nova tentativa no ano seguinte, D. Duarte, todavia, mostrou que era homem para ele.

A esposa do capitão era tão arrojada como ele. Foi em pleno cerco ter com o marido trazendo as filhas e damas de sua casa. A alegria dos moços cavaleiros da guarnição é fácil de imaginar, tanto mais que estas ousadas meninas eram excelentes enfermeiras para os feridos. Com estes estímulos românticos, fácil tarefa era derrotar o rei de Fez!

Segunda fortaleza de Marrocos estava nas mãos dos Portugueses. A conquista desse reino começara. Quando em Novembro de 1458, D. Henrique pela última vez contemplou aquelas costas, entendeu que o seu trabalho ali findara. Ainda se não tinham liquidado inteiramente as contas com o rei de Fez, mas vivera até ver o dia do ajuste. O sobrinho jurara não descansar enquanto não tomasse Tânger, e podia confiar-se que D. Afonso, o Africano, havia de saldar o débito.



Montante do Infante  D. Henrique




Nas terras escuras a sul do Senegal, D. Henrique tinha mais um dever a cumprir. Quando regressou de Alcácer, Diogo Gomes lembrou-lhe que o chefe Nomymansa esperava ainda um padre que lhe pregasse o Evangelho. O Infante não queria de forma nenhuma faltar ao seu irmão preto. Escolheu um sacerdote sábio e notável "para que ficasse com aquele rei, e o industriasse na Fé" (15). Enviou também o seu jovem escudeiro, João Delgado, a ensinar a Nomymansa os costumes europeus e a levar-lhe aquelas coisas que pedira a Diogo Gomes.

Os navios fizeram-se à vela - D. Henrique ficou em Sagres, na sua Vila do Infante, donde agora raras vezes saía. Ali, na povoação que construíra sobre o promontório agreste, podia passar em revista a obra de toda a sua vida e preparar-se para a legar a outrem. Era empreendimento incompleto, bem o sabia, mas bem começado. "Prouve a Nosso Senhor", escreveu ele, "me dar certa informação e sabedoria daquelas partes desde o dito cabo de Não até passante toda a terra de Berbéria e Núbia. E assim mesmo terra de Guinea bem trezentas leguas" (16). O termo Guiné, como então se usava, era do Cabo Bojador, limitando-se outros àqueles países que ficavam além do Senegal. Não sabemos ao certo em que sentido D. Henrique se serviu da palavra, e o ponto de partida das suas trezentas léguas é objecto de controvérsia. Sabemos, pelo menos, que em vida sua os seus navios chegaram à Serra Leoa, embora haja quem pretenda que foram ainda mais longe.

Uma tira de costa desde o Sara à Serra Leoa, ou talvez até ao golfo da Guiné - resultado insignificante, afirmam alguns críticos, para quarenta anos de labor! É verdade que nas duas décadas seguintes se dobrou essa mesma distância, mas não devemos esquecer de que nos esforços dum pioneiro os primeiros passos são sempre os mais lentos e mais dificultosos. O Infante iniciara os seus trabalhos em condições que nunca mais se repetiram, sem cartas de navegação, e navios apropriados, sem conhecimento dos ventos e correntes do oceano, nem a ciência se aperfeiçoara ainda, a ponto de orientar o mareante fora da vista de terra. Começara com todos estes problemas a resolver, e preconceitos e superstições a superar. Os começos haviam necessariamente se ser meras apalpadelas nas trevas.

Perseverou e abriu caminho para a luz, e nisto consiste a sua glória. Guiou os passos duma nação para um caminho que conduziria ao fim do Mundo. Quando largou a tarefa, as dificuldades e perigos que restavam nada eram que se comparasse com os que tinha já vencido. Do que realizara, sabia isto, pelo menos, embora o triunfo final tardasse ainda meio século.

D. Henrique sonhara grandes coisas e algumas viu realizadas - alegria que nem a todos é dada - mas fora realmente feliz? Durante os últimos vinte anos, não se pode dizer que o fosse. Vira morrer os quatro irmãos, três em circunstâncias trágicas. Efectivamente, a nuvem negra que descera sobre a família com o desastre de Tânger, só se dissipou quando D. Henrique era o único sobrevivente.

D. Fernando, seu filho adoptivo - casado com a sua sobrinha D. Beatriz, filha do infante D. João, morto havia dezassete anos - era o laço mais forte que o prendia. Prendiam-no também os filhos de D. Fernando - "os meus muito amados netos", lhes chama D. Henrique. Esperava deles a continuação da obra a que consagrara toda a sua vida e ficou, por isso, encantado quando, em Agosto de 1460, D. Fernando lhe pediu ilhas para colonizar. O Infante doou então a Terceira e a Graciosa ao seu filho querido, "esguardando eu quanto com grande razão sou theudo, a todo o que em mim seja e bem possa fazer-lhe cumprir seu bom prazer".

A ilha Graciosa vista da ilha de São Jorge



Localização da Graciosa



Em Setembro do mesmo ano achava-se ainda em Sagres - a conceder ilhas também. Desta vez transferiu para o rei o poder temporal que sempre tivera sobre as ilhas de Cabo Verde, reservando à Ordem de Cristo a jurisdição espiritual. Santa Maria e S. Miguel dos Açores pertenceriam inteiramente à Ordem de Cristo, que conservaria também o domínio espiritual sobre a Madeira, Porto Santo e Desertas. Em todos estes arquipélagos, D. Henrique dotara igrejas e tomou agora disposições para que em cada uma delas se dissessem missas por sua alma.

Passavam os dias luminosos de Outono. As ventanias do equinócio começavam a bramir através do oceano. Todavia, o Infante demorava-se no seu rochedo ventoso, fazendo testamento e vendo morrer o Verão. Quem o teria avisado de que o seu próprio fim estava próximo? Não nos informam se tinha a saúde abalada. Sabemos apenas que durante esse Outono esteve a pôr os seus negócios em ordem e em Novembro adoeceu e morreu.

Ninguém fez a descrição dessa última cena. Figura enigmática toda a vida, D. Henrique morreu calado como vivera, de cilício junto ao corpo, e sobre o peito um fragmento da Vera Cruz que sua mãe lhe dera. Foi se desejo ser sepultado na Batalha, junto do túmulo de seus pais, e ser para lá levado simplesmente, sem pompa - "sem doo", determinava ainda, "que mando que por my nom façã, mas chãmente e honestamente seja encomendado a Deos" (17).

Na noite de 13 de Novembro em que morreu, o seu corpo foi transportado para a igreja de Lagos, onde esteve depositado durante um mês, velado pelo seu criado Diogo Gomes, que ordenou as orações e as veladas. Em Dezembro, seu "filho" D. Fernando acompanhou-o até à sua última morada na Batalha, e o rei ali aguardou a chegada do caixão.

Na pedra dum sarcófago ornado com o seu emblema de bolotas e folhas de carrasco, foi esculpida a sua efígie. A folhagem entrelaça-se em três escudos, um dos quais ostenta as armas do Infante, outro o colar da Jarreteira, de que era cavaleiro, e no terceiro vê-se a cruz da Ordem de Cristo. Ao longo do friso lê-se a sua divida: Talant de bien faire.

D. Henrique jaz entre os seus irmãos D. Pedro e D. João - cavaleiro de olhar grave revestido de armadura, que espera na sombra pela ressurreição. E rosto que nada nos diz absolutamente - máscara donde tudo se apagou menos a serenidade da morte.

A alma do Infante tem de procurar-se noutra parte. Um reflexo dela deu no-lo para sempre Nuno Gonçalves no seu tríptico admirável, que representa os cavaleiros e mareantes da corte de D. Afonso V ajoelhados perante S. Vicente. Entre os adoradores vê-se D. Henrique - homem que já não é novo - gravemente vestido de preto. Tem a testa profundamente enrugada, boca triste firmemente fechada e olhos fitos no espaço.

É esse quadro o que mais nos aproxima do Infante de Sagres. De todos os grandes homens que alteraram o curso da História, D. Henrique é o que mais estranhamente se isola. O que ele realizou está escrito em letras de luz - a sua personalidade escapa-nos.


Promontório de Sagres


Em volta da esfíngica figura lavram as controvérsias - argumentam os historiadores e os psicólogos não se entendem. Foi exaltado até aos céus e venenosamente criticado desde o seu tempo até hoje. Podem os téoricos dizer o que quiserem, porque ele nunca falou em defesa própria. Envolto na sua impenetrável reserva, passa indiferente, enquanto uns queimam incenso e outros lhe atiram pedradas.

Nunca homem público algum procurou tão pouco a luz da ribalta. Filho, irmão, e tio de reis, sucessivamente, poderia ter desempenhado papel primacial na política. Propositadamente, afastou-se sempre e levou vida isolada. Ajudou os irmãos, quando o dever o pedia, prestou ao sobrinho o auxílio que lhe requereu, mas as suas aparições na cena pública eram uniformemente breves. Na primeira oportunidade virava costas à corte e concentrava-se na sua tarefa preferida.

Até nesta parecia não procurar glória para si. A sua paixão era puramente objectiva, e, enquanto outros realizavam os feitos, ele contentava-se com ser o seu promotor oculto. Ler a história de D. Henrique é ler o que outros homens fizeram sob a sua inspiração.

Encontra-se sempre na sombra, mas a sua presença adivinha-se. Os seus mareantes sentiam a força impulsora que os não deixava descansar, enquanto não tivessem descoberto. Ano após ano, via partir as suas frotas em busca de terras ocultas para lá do horizonte azul, e, ano após ano, as caravelas de regresso entravam na baía de Lagos, e os marinheiros desembarcavam trazendo narrativas inflamadas e ricos troféus - ou a relação de um fracasso - ao homem silencioso de Sagres. E ele escutava-os serenamente, e nunca deixava de louvar, quando o louvor era merecido, nem tinha jamais uma palavra áspera para os mal-sucedidos. Mas quer voltassem das terras luminosas, quer de inúteis errores no mar salgado, as suas exortações a todos eram sempre as mesmas: "Voltai", dizia, "voltai, e ide ainda mais longe!"

Homem duro, frio e severo, dizem-no alguns autores modernos - mas sê-lo-ia de facto? Não parece que os contemporâneos pensassem assim. "Havia o gesto assossegado e a palavra mansa [...]", diz-nos Zurara, e "nunca em ele foi conhecido o odio nem má vontade contra alguma pessoa, por grave erro que lhe fizesse" (18). - "Nem dizia mal de nenhum, nem cubiçava a nenhum mal", é o testemunho de D. Gonçalo de Sousa, que foi toda a vida da casa de D. Henrique - e "para todos se mostrava afavel", acrescenta o italiano Mateus Pisano que, tendo sido aio do jovem D. Afonso V, deve ter conhecido muito bem o Infante.

Quanto à sua alegada frieza - o francês Antoine de La Salle, que acompanhou os infantes a Ceuta em 1415, parece ter visto D. Henrique a outra luz. Se a história de La Salle se pode tomar a sério, o jovem príncipe chorou, dias e noites seguidos, a morte de Vasco Fernandes de Ataíde, seu preceptor e grande amigo. Deve evidentemente dar-se o devido desconto aos floreios jornalísticos do século XV. La Salle foi escritor popular da sua época, e o gosto do público pedia comoção às carradas. Como "a grande dor fora de toda a medida", a que Malory deixa entregar livremente os seus cavaleiros, as lágrimas de D. Henrique, como no-las descreve La Salle, são, por certo, efeito literário em parte. Mas dêmo-lhes o desconto que quisermos, não se pode negar que o Infante não deu a impressão de insensível ao forasteiro na corte de seu pai.

De todas as narrativas se depreende que aqueles que serviam o Infante lhe eram profundamente afeiçoados e não há entre eles discrepância de opiniões a respeito do seu carácter. Poderemos rejeitar Zurara como panegirista, mas que se há de dizer de D. Gonçalo de Sousa? Quando alguém manda inscrever no próprio túmulo, não as suas virtudes, mas as do senhor que serviu - senhor que morrera muitos anos antes - não podemos atribuir o facto a lisonja ou a oportunismo.


Padrão dos Descobrimentos (Belém).



O embaraço perante a personalidade de D. Henrique provém de se não poder encontrar fórmula que satisfatoriamente a defina. Esta circunstância é aflitiva para os historiadores, que gostam de apresentar as grandes figuras do passado, cada uma com a sua etiqueta, como objectos de museu. Parece não haver dois que concordem sobre a maneira como o Infante D. Henrique se deve definir. Cruzado - homem de ciência - promotor de empreendimentos comerciais - realista - sonhador - reaccionário - moderno - cada um destes atributos tem sido defendido com ardor, como se um excluísse os outros!

D. Henrique foi tudo isto. Nascido numa época de transição, o seu espírito olhava para dois lados. A flama que iluminou o soldado da cruz ascendeu-se-lhe no coração na primeira mocidade, e conquistar Marrocos aos mouros foi ambição da sua vida. Nunca desembainhou a espada em qualquer outra causa. Era, portanto, cruzado e guerreiro medieval também, apaixonado pelos feitos de cavalaria e proezas guerreiras, como as praticavam os heróis do seu tempo. Partilhava os ideais místicos e a fé inabalável da sua época, mas procurava ao mesmo tempo o saber científico - iluminação do espírito e da alma. A sua investigação paciente dos factos era inteiramente antimedieval, como o era o realismo prático que o afastava de todas as ideias fantasistas. D. Henrique era visionário que adivinhava mundos invisíveis, mas não sonhador fantástico. Nunca esperou, como Colombo, encontrar rios que vinham do Paraíso. Não contou com monstros, nem milagres, nem Eldorados. Os seus horizontes, embora vastos, foram sempre limitados por factos positivos. Lentamente, pacientemente, tenazmente, procurou as regiões desconhecidas da terra firme, e, quando as encontrou, lavrou-as e semeou-as, e aproveitou-as bem.

Todavia, esta intuição do valor prático das coisas não excluía um fim superior ao mero lucro material. As novas terras não deviam considerar-se apenas como herdades rendosas. Embora muito se pudesse tirar delas, muito se tinha também de lhes dar. As terras pagãs eram reinos a conquistar para Cristo, e a direcção destas raças atrasadas, dever a que não podia eximir-se. O Infante tomou sobre si esta responsabilidade. Se tinha o espírito do cruzado, tinha igualmente o do missionário. Onde explorou, o seu objectivo foi evangelizar, civilizar e educar os ingénuos selvagens com os quais os seus navegantes entravam em contacto. Enviou mestres e pregadores aos pretos do Senegal. Educou crianças indígenas para virem a ser evangelizadores do seu próprio povo, tratou os chefes africanos, não como vassalos, mas como príncipes irmãos e aliados, e empregou os seus melhores esforços para lhes mostrar um nível de vida superior. É glória da expansão portuguesa de além-mar ter continuado no caminho que D. Henrique lhe traçara.

O mundo nem sempre se lembra do muito que deve ao Infante, que inaugurou uma nova idade. Supõe-se vulgarmente que a época medieval acaba com a queda de Constantinopla. Com muito maior verdade poderia recuar-se trinta anos para a data em que D. Henrique enviou as primeiras caravelas. A descoberta do mundo desconhecido modificou muito mais profundamente a civilização do que o renascimento dos estudos clássicos. Um renascimento, afinal, não é senão o ressurgimento do que já foi - o movimento iniciado por D. Henrique criou inteiramente novas condições sobre a Terra. Em todos os milénios da História da Humanidade, só dentro dos últimos quatrocentos anos tem havido relações entre as raças humanas do orbe terrestre. Nasceram e morreram civilizações, surgiram e desmoronaram-se grandes impérios, e todos passaram sem conhecerem a Terra em que viviam, a não ser numa pequena parte. D. Henrique foi o primeiro a encontrar a chave que abriu ao homem, de par em par, as portas do seu património.



Esfera Armilar



Fizeram-se viagens marítimas antes do seu tempo - por certo às ilhas Canárias, provavelmente à Madeira, e talvez aos Açores, para não falarmos das problemáticas divagações dos Fenícios da antiguidade - mas nada permanente ou útil resultou desses esforços esporádicos, que não foram continuados. As imagens de regiões vistas por viajantes isolados fulguravam na consciência das nações como sonhos experimentados de noite, e não deixavam recordação nítida. Todas as predescobertas tiveram de ser redescobertas, mas as do Infante D. Henrique ficaram para todo o sempre. A partir dele não se deram mais retrocessos. Deliberadamente, com estudo, paciência e método, desencadeou forças que jamais seria possível deter, enquanto sobre o Globo existisse uma terra desconhecida.

O Infante realizou assim a maior transformação que o mundo vira ou viu até hoje. Basta-nos comparar os primeiros anos dos séculos XV e XVI para nos convencermos disso.

Em 1400 temos o quadro dum mundo de civilizações e culturas isoladas, algumas das quais se sobrepõem nas fronteiras, mas que na sua maior parte se ignoram inteiramente. Embora possam negociar e combater na sua orla exterior, a Europa e a Ásia vivem separadas, e para sul do Sara, em florestas abafadiças onde não chegam as caravanas dos Árabes, os africanos nus nem sequer sonham que haja mundo fora da sua solidão. E em roda de tudo isto rola o mar, que nenhum navio atravessa, rodeando as ocultas ilhas desertas, quebrando as suas ondas ocidentais nas costas dum continente desconhecido, onde outras raças vivem tão ignorantes do outro mundo como esse mundo o é delas.

Passada uma centena de anos achamos tudo mudado. O Extremo Oriente foi alcançado pelo longínquo Ocidente, o Norte penetrou profundamente no Sul, abateram-se as barreiras da Terra - a Europa está em toda a parte. Em todo o mundo as nações estão a estabelecer novos contactos e a descobrir coisas novas umas das outras: a Europa está a conhecer níveis de luxo inimagináveis, a Ásia é sacudida no seu isolamento secular, ao passo que o Africano, atónito, vê prodigiosos homens brancos revelar-lhe maravilhas, e deles aprende novos usos, adquire novas necessidades, é instruído numa fé nova e melhor - e adquire alguns vícios novos!

O oceano já não é abismo impassível. Tornou-se a estrada real da Terra, atravessado em todos os sentidos por numerosos navios. As suas ilhas desertas são habitadas e produzem frutos; o continente oculto veio à luz - um novo e vasto campo de possibilidades está achado. Parece terem-se aberto de repente todas as portas da Terra. Foi o Infante D. Henrique que realizou tudo isto.

Para bem ou para mal, apresentou o mundo moderno. Benção ou maldição? Uma das coisas ou ambas? Nada se ganha na vida sem que alguma coisa se perca, e muitas vezes o êxito traz consigo a desilusão. Enquanto se não revelara todo o mundo, a imaginação entreviu sempre um lugar perfeito algures - uma ilha dos bem-aventurados, alguma cidade de ouro - algum reino dos justos, onde a inocência morava ainda. Após cada viagem as utopias retrocediam, e assim, a pouco e pouco, os homens descobriram o mundo, mas perderam o paraíso terreal (in ob. cit., pp. 284-305).


Notas:

(11) Relação de Diogo Gomes, p. 292.

(12) Rui de Pina - Crónica de D. Afonso V, cap. CXXXV.

(13)  Ibid, cap. CXXXVIII.

(14) Ibid.

(15) Diogo Gomes - Relaçam, p. 284.

(16) Carta do Infante D. Henrique publicada por Jaime Cortesão.

(17) Testamento do Infante D. Henrique publicado por Sousa Holstein.

(18) Zurara - Crónica da Guiné, cap. IV.






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