Escrito por Bertrand Solet
Hana wa sakura gi
hito wa bushi.
Entre todas as flores, a flor de cerejeira;
Entre todos os homens, o guerreiro.
«A vida de um bushi é gloriosa e bela, mas mais gloriosa e mais bela é a sua morte em combate. Ela tem a graça e a brevidade de uma libélula expirando no ar fresco de uma manhã de Outono» (Samurai anónimo do século XVII).
«Se alguém pergunta qual é a alma do Yamato: é a Flor da Cerejeira da montanha exalando o seu perfume ao sol da manhã» (Norinaga Motoöri - 1730-1801).
«Coberto de ferro, o bushi caiu em combate com a brancura e a leveza de uma flor de cerejeira» (Yamaga Soto, séc. XVII).
«Os samurai são a incarnação do Bushido, através dos ensinamentos da flor de cerejeira» (Shimazun, 1942).
«Se alguém pergunta qual é a alma do Yamato: é a Flor da Cerejeira da montanha exalando o seu perfume ao sol da manhã» (Norinaga Motoöri - 1730-1801).
«Coberto de ferro, o bushi caiu em combate com a brancura e a leveza de uma flor de cerejeira» (Yamaga Soto, séc. XVII).
«Os samurai são a incarnação do Bushido, através dos ensinamentos da flor de cerejeira» (Shimazun, 1942).
«Nesta época [Era dos Sengoku ("Estados em Guerra")] dominada pelos guerreiros, o budismo zen continuava a ser apelativo para eles. Ideais do zen como a simplicidade, a contenção, a disciplina e a meditação formavam um contraste real com a desordem e a confusão no país. Era uma época de ideais estéticos como o wabi (gosto pela contenção), o kare (com o significado literal de "mirrado" ou "seco", mas com conotações como "severo", sem adorno e natural"), a sabi (simplicidade elegante) e a yugen (espiritualidade elegante e tranquila), ideais que ainda caracterizam grande parte da cultura japonesa actual. Muitos destes ideais, sobretudo a contenção e a yugen, são também características bem conhecidas no teatro no, que se desenvolveu durante este período. As peças no baseavam-se muitas vezes em combates militares trágicos e o seu tema era, frequentemente, a retribuição na vida do além.
O carácter sobrenatural do no tinha paralelos na fuga ao mundo real por parte de alguns poetas e escritores eremitas. Estes manifestavam um cansaço da vida ainda mais profundo do que o de Saigyo, numa época mais recuada. Por exemplo, o monge budista Zekkai (1336-1405) escreveu:
Fechei o portão em mil cumes
Para viver aqui entre nuvens e pássaros.
Durante todo o dia observo os montes
Quando ventos puros passam pela porta de bambu.
Uma ceia de flores de pinheiro,
Tinge o manto monacal de nozes -
Que sonhos contém o mundo
Para me afastar destas sombrias encostas?
Um pássaro com
Um corpo mas
Dois bicos,
Ferindo-se a si mesmo
Até à morte».
Kenneth Henshall («História do Japão»).
«Tal como a espada do cavaleiro da Europa cristã, o sabre do samurai é o objecto fundamental do seu universo guerreiro. Ele exerce sobre os Japoneses, e mais particularmente os bushi, um extraordinário fascínio: objecto de respeito e veneração, é o elemento por excelência, transmitido de geração em geração, carregado de lembranças das batalhas e de glória, mas também de uma mística elaborada. Na mitologia xintoísta, o sabre é um emblema eminentemente sagrado, um dos três objectos sagrados - com o Divino Espelho (yata no kagami) e a Corrente de Jóias (yasaka no magatama ihotsu misumaru no tama) que a deusa solar Amaterasu o mi kami deu ao príncipe Ninigi no mikoto (Sua Alteza florescente protegendo as espigas de arroz). Por seu lado, Susano wo no mikoto (Sua Alteza macho, corajosa, rápida e impetuosa ou devastadora), o irmão da deusa solar, matou a "Serpente octogonalmente chifrada" com um sabre divino chamado Orochi no ara masa (A espada violenta verdadeira que matou a serpente gigante) ou ainda Ama no haye kiri (Celeste cortador volante), espada que foi depois miraculosamente enviada a Jimmu-tenno, o primeiro imperador humano do Japão, para lutar contra os elementos nefastos da Terra; ela "inspirou", desde então, todos os imperadores nipónicos e encontrou na cauda do monstro uma espada sagrada chamada Kusa nagi no tsurugi (A espada celeste que apaga os fogos de erva) ou ainda Ame no murakumo no tsurugi (A espada celeste das nuvens que se amontoam), devendo o seu nome ao facto de que quando Susano wo dela se apoderou, as nuvens amontoaram-se sobre a serpente gigante. Entregue ao príncipe Ninigi por Amaterasu na sua descida à terra, esta espada tornou-se numa das insígnias do poder imperial. Segundo um conto que narra a gesta do herói Yamato takeru (guerreiro do Yamato), foi com esta espada, que lhe confiou uma sacerdotisa do templo de Ise, que este guerreiro venceu as tribos aborígenes dos Ainu. No seu significado sagrado e trazido para um plano guerreiro terrestre, o sabre é definido como sendo a alma do samurai, o símbolo da sua coragem, o depositário da sua dignidade e sobretudo da sua honra. Como tal, ele contém "qualquer coisa" de divino, o "kami do sabre" (tachikami), o que explica que o bushi deve mostrar-se digno de o usar. Ele é o único autorizado a fazê-lo e a conformar-se às origens sagradas da arma: o seu coração deve estar em uníssono com o do aço. Este é, propriamente, o sentido espiritual da expressão: "O sabre é a alma do samurai". O zen levará ao máximo esta identificação, com um outro significado, dizendo que o bushi não deve "utilizar o sabre, mas sim ser o próprio sabre". Tal como o modelo guerreiro tradicional, o samurai considerou sempre o seu sabre como um "ser" completo, dando-lhe muitas vezes um nome - encontra-se o mesmo costume na Idade Média europeia -, tendo o sentimento de lhe comunicar o seu fundo vital, a sua energia, e reciprocamente. Os nomes de sabre mais frequentes foram ka (fogo), tal como o de Nobunaga, a água (m), ta (longevidade), nigi tahe (doce seda), shiro (branco), seki ouakai (vermelho), tsuina (demónio) e shishi koma inu (leão-cão coreano, espécie de animal fantástico parecido com uma Quimera ou um Grifo).
O sabre e o seu portador são então uma só e única entidade, de que um kami pode tomar posse. A alma do samurai e a da arma são uma única coisa (mono) e muitas vezes uma "coisa kamificada" (kamimono). A mística do sabre implicava também todo um conjunto de conveniências sociais, de natureza espiritual, que guiavam toda a vida do samurai, mas obrigavam igualmente os outros a adoptar um comportamento e atitudes bem definidas. Quando nascia um filho de samurai, o sabre era colocado ao lado do recém-nascido e protegia-o das influências demoníacas, os oni, os maus kami (ashiki kami) ou os espíritos malignos (mono no ke). Durante a sua adolescência, o futuro bushi usava um sabre especial, o mamori katana, espécie de talismã contra os acidentes, as doenças e os maus espíritos. O sabre faz então parte do sistema educativo do futuro samurai. Chegado à idade de homem, a assimilação samurai/sabre era total. A arma tornou-se O samurai, a tal ponto que perdê-la era considerado uma falta grave. "O sabre é a alma do samurai. Se alguém o esquece ou perde, isso não lhe será perdoado", indica uma máxima do século XVII. A boa educação impunha também que não desse nenhum encontrão no sabre de um samurai, nem que se lhe tocasse, mito menos um estranho ou uma mulher. Entrar numa casa amiga com um sabre era considerado insultuoso. Desembainhá-lo no interior, sobretudo com o gume virado para fora ou colocá-lo à esquerda - lado maléfico - era um insulto que tinha de ser reparado. Do mesmo modo, possuindo o próprio sabre a sua dignidade, era de mau gosto um samurai desembainhá-lo inutilmente. A tradição japonesa considerava que fora da sua bainha (saya) só podia ter duas utilizações: o corpo do adversário ou o contacto da seda. Finalmente, por morte do samurai, o seu sabre era colocado ao lado do seu leito funerário.
Objecto espitual sagrado, o sabre era forjado segundo regras bem definidas e ritos particulares. A arte do armeiro (katchushi) é, por excelência, sagrada e encontra-se sob a protecção de kami favoráveis, geralmente de kami celestes (Ama tsu kami), do kami de um armeiro célebre já defunto ou ainda de Hachiman (ou Ojin-tenno), o Deus da guerra. Remontando a tempos longínquos, provavelmente na época de Nara, até mesmo de Asuka segundo alguns autores nipónicos, esta arte inscreve-se nos ritos propiciatórios xintoístas, ritos praticados durante muito tempo, dada a sua natureza divina, pelos Tenno. Esses ritos são extremamente formalistas e impregnados de um poderoso simbolismo. Praticar mal uma parte do rito, implica refazer todo o processo ritual. A data propícia para o começo dos ritos era indicada, a pedido do comanditário, por um geomante ou uma profetisa (miko), o mestre armeiro (kaji), ente sagrado, começava a sua obra com ritos preparatórios (jejuns, retiros em templos ou na montanha, etc), seguidos por abluções e oferendas aos kami. Vestido de branco e com um toucado ritual, ele decorava a sua forja, local kamico onde se irão desenrolar as diversas fases da obra ígnea de mestria do elemento telúrico que é o metal em fusão, com cordas sagradas de palha de arroz (shimenama), e acendia ritualmente o fogo, após ter invocado o deus protector da forja. Depois, o trabalho começava com a recitação de orações. O trabalho efectivo, baseado em técnicas específicas, implicava a continuação dos ritos de purificação. O mestre abstinha-se de alimentos impuros e de contactar pessoas estranhas à sua forja. As técnicas de têmpera e de forjadura, também elas sagradas, eram segredos ciosamente guardados. Em última análise, a alma dos samurai, a do mestre forjador e os ritos xintoístas estavam estreitamente ligados numa espécie de "comunhão metafísico-espiritual" saturada, segundo um autor japonês, de uma "forte e invisível substância kamica" a qual só desaparecia quando o trabalho estava totalmente acabado».
Bernard Marillier («Samurai»).
«Kenjutsu é a arte da espada. Apesar de nunca ter sido a arma mais importante utilizada no campo de batalha (tendo esse lugar sido ocupado muitas vezes pelo arco, a lança e mesmo as armas de fogo), a espada ocupava um lugar especial no coração de um guerreiro. Era a sua arma pessoal e a última linha de defesa. Era usada quando os adversários estavam a pouca distância uns dos outros, se todas as outras armas tivessem falhado. Além disso, a espada tinha tradicionalmente sido investida de uma aura divina e os guerreiros que a usavam na luta eram olhados com respeito pela classe dos samurais. A proficiência no uso da espada era vista como uma qualidade desejável para um samurai perfeitamente educado. Centenas de kenjutsu ryuha foram desenvolvidos durante este período, alguns dos quais são ainda praticados actualmente. Kenjutsu era habitualmente ensinado recorrendo a um bokuto [bokken], ou espada de madeira de aproximadamente o mesmo tamanho e peso que uma katana verdadeira. Apesar de menos letal do que a sua irmã de aço, um golpe de bokuto ainda podia mutilar ou mesmo matar uma pessoa. Por isso, a prática era feita com kata, ou sessões de prática pré-estabelecida, nas quais os participantes paravam os golpes antes de atingir o alvo. Teria sido extremamente perigoso conseguir que fossem dados golpes sem qualquer restrição com uma espada de madeira maciça. Estes kata ensinavam a forma correcta de empunhar a espada, assim como os princípios fundamentais da luta com essa arma. Além disso, muitos kata viam-se a braços com situações específicas que poderiam ser encontradas quando da luta com a espada.
(...) Depois da batalha de Sekigahara em 1600, quando Tokugawa Ieyasu tomou o controlo militar do Japão, a paz instalou-se no até aí turbulento país. No século que se seguiu, a arte do campo de batalha foi perdendo a sua importância. A arte da espada, contudo, manteve grande parte da sua popularidade devido à sua ligação com o Budismo Zen.
Libertos das necessidades pragmáticas de uma guerra que era quase constante, e em busca de meios de aperfeiçoar as suas capacidades, os espadachins começaram a examinar a arte que detinham sob o ponto de vista filosófico. Qual o estado mental ideal para que o espadachim conseguisse a vitória? Poderia uma apreciação mais aprofundada do Zen dar-lhe uma percepção mais profunda? Este tipo de perguntas era tratado em inúmeros trabalhos sobre o tema do uso da espada. Alguns dos mais importantes foram escritos pelo monge Zen Rinzai Takuan Soho, conselheiro espiritual de um imperador e de dois shogun. Era também amigo de espadachins proeminentes: Yagyu Munenori, mestre do estilo Yagyu Shinkage; Ono Tadaaki, fundador do ramo Ono dentro do estilo Itto; e, significativamente, de Miyamoto Musashi, um dos espadachins mais famosos do Japão. Em vários trabalhos dirigidos aos espadachins, tais como The Mysterious Record of Immovable Wisdom, Takuan trata do estado mental dos espadachins e do conceito de eu e do outro. O seu trabalho afirma que, para obter êxito, o espadachim deve transcender a mera técnica física, dominando também a própria mente.
Yagyu Munenori e Miyamoto Musashi escreveram ambos tratados sobre o mesmo tema. Yagyu escreveu Hereditary Book of Strategy, ou Heiko Kaden sho, enquanto a sabedoria de Musashi está registada no famoso GoRin no Sho, conhecido no Ocidente como Livro dos Cinco Anéis. Estes tratados são importantes manuais técnicos sobre a arte de lutar com espada, estando, contudo, imbuídos de aconselhamento de índole espiritual que Takuan lhes deu.
Actualmente, o kendo continua a pôr grande ênfase na ligação da técnica e o estádio espiritual e mental do praticante. Este facto é notório de uma forma sucinta na meditação kendo utilizada em muitos dojos no Japão. De notar que a palavra para designar "mente" pode também ser traduzida por "coração".
A espada é o Homem.
Quando a Mente está certa, a Espada está também certa.
Quando a Mente está errada, a Espada também o estará.
Aqueles que desejam estudar kendo
Devem antes estudar a Mente».
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[Tanaka] Ken Takakura (in The Yakuza, 1975). Ver aqui |
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«Takuan Soho para Yagyu Munenori
(...) O termo ignorância significa ausência de Iluminação, isto é, ilusão.
Lugar de repouso significa o lugar onde a mente se fixa.
Diz-se que na prática do Budismo existem 52 estágios e, de entre eles, o lugar onde a mente se fixa é chamado o lugar de permanência. Permanecer significa fixar-se, e este termo indica que a mente está presa por algum tipo de matéria, de qualquer tipo.
Na arte marcial quando percebes que a espada vem sobre ti e pensares enfrentá-la, a tua mente fixar-se-á na espada na posição em que está; então os teus movimentos perder-se-ão e tu serás atingido pelo teu oponente. É isso que significa fixar-se. Quando vires a espada em direcção a ti, se a tua mente não for aplacada por ela e não te ajustares ao ritmo da espada que avança; se não pensares em abater o oponente e eliminares em ti todo o pensamento ou julgamento; se, no instante em que vires o golpe da espada, a tua mente não estiver minimamente aquietada e avançares e arrancares do oponente a espada; então, a espada que vinha atingir-te será a tua própria espada e, ao invés, será essa a espada que atingirá o teu oponente.
No Zen, diz-se que isso é "agarrar a lança e ferir aquele que vinha ferir-te". A lança é uma arma. A essência disso é que a espada que tu arrancas ao teu adversário é a espada que vai atingi-lo. É isso que, no teu estilo, se chama "lutar espada sem espada". Quer pelo golpe do inimigo, quer pelo teu próprio golpe; quer pelo homem que golpeia, quer pela espada que corta; quer pela posição, quer pelo ritmo, se de alguma forma a tua mente se desviar, as tuas acções não serão perfeitas, e isso pode fazer com que sejas atingido.
Se te colocares à frente do teu opositor, a tua mente será capturada por ele. Tu não deves situar a tua mente dentro de ti. Conter a mente dentro do corpo é algo que só é feito no início do treino pelos principiantes. A mente pode ser capturada pela espada. Se manténs a mente no ritmo da luta, também por isso ela pode ser capturada. Se fixas a mente na tua própria espada, a espada pode capturá-la. Quando a mente se fixa em qualquer um desses lugares tornas-te uma casca vazia. Sem dúvida que tu próprio te recordas de tais situações. A mesma coisa se aplica ao Budismo.
No Budismo, chamamos a esse acto fixar a mente da ilusão. Por isso dizemos: "A aflição de permanecer na ignorância"».
Takuan Soho («A Mente Zen. Escritos de um Mestre Zen a um Mestre de Espada»).
OS 47 RONINS
Para os samurai, a prática das artes marciais era a melhor maneira de seguir o bushido, código de honra do guerreiro, do qual uma das leis fundamentais exaltava a fidelidade absoluta do servo ao seu senhor.
Nesse ano de 1701, o imperador Higashiyama vive em Quioto, a cidade imperial, num palácio sumptuoso e gelado. Ele é o "filho do sol", a sua existência desenrola-se numa série infindável de cerimónias requintadas e inúteis.
O verdadeiro senhor do Japão é o xógum, chefe supremo da classe dos guerreiros, os samurais. Vive em Edo, a verdadeira capital do reino, que tem dois milhões de habitantes e se virá a tornar no gigantesco Tóquio dos nossos dias.
Ieyasu Tokugawa |
Trata-se de uma diligência particularmente importante que mostra ao povo a legitimidade do xógum, reconhecendo oficialmente o seu poder. Assim, nesse ano de 1701, o xógum Tokugawa dá ordens para que os emissários do micado sejam recebidos com grande pompa, o mais faustosa possível. E encarrega Asano Nagaroni de organizar a estada deles.
- Senhor - diz o interessado, inclinando-se -, perdoai-me, mas sou um ignorante em matéria de etiqueta. Desconheço completamente os usos da nossa corte e, assim, arrisco-me a cometer erros que prejudiquem a vossa reputação...
- Asano, tu és um dos príncipes que governam esta região, comigo. Faz o que eu te mando e fá-lo o melhor possível. Aliás, podes pedir conselhos a Kira Yoshihisa, o nosso melhor mestre-de-cerimónias.
- Nesse caso tudo irá bem, senhor!
O príncipe Asano tem razão para se inquietar, porque Kira Yoshihisa é um velho corrupto, invejoso e desonesto... e que tem motivos para o detestar. O primeiro é que Asano é vinte vezes mais rico do que ele, senhor do castelo de Ako, guardado por 300 samurais, e governador da província de Iga. O segundo é que está apaixonado pela jovem e bela esposa do príncipe e que esta, evidentemente, recusara todas as suas avançadas, chegando a ameaçá-lo com o punhal que traz sempre consigo, tal como todas as mulheres da alta sociedade. Infelizmente a princesa não achou necessário prevenir o marido das manigâncias de Kira, pois desdenha profundamente esse atrevido.
E, o que não melhora de modo nenhum o caso, o dáimio Asano é honesto e justo. Pensa que os funcionários devem cumprir o melhor possível as suas tarefas, sem necessidade de os "comprar" com presentes, como era uso nesse tempo.
Kira fica enraivecido ao receber os servos de mãos vazias, apenas com presentes simbólicos de simples cortesia. Mas logo a sua raiva se transforma em alegria malévola. Acaba de descobrir o modo de se vingar do rico Asano e, ao mesmo tempo, da sua caríssima esposa.
E que faz? Limita-se a desaparecer. Desse modo não poderá auxiliar Asano com os seus indispensáveis conselhos. Pensa que, mais tarde, descobrirá uma desculpa pública para a sua conduta; mas o mal já estará feito, um mal que o poderoso xógum nunca perdoará ao seu dáimio...
Os enviados do imperador são anunciados. Asano Nagaroni tenta organizar tudo o melhor possível. Os seus homens procuram Kira por todo o lado, mas é fácil, a este último, esconder-se na fortaleza do xógum, tão imponente, que tem, segundo consta, cem mil servidores e guardas.
Os enviados do imperador chegam a 12 de Março. São três, fatigados pela viagem mas impassíveis e solenes. Trazem nas cabeças chapéus de tecido lacado de cor de violeta, sinal da categoria mais elevada. O xógum Tokugawa recebe-os logo em audiência. Aí corre tudo bem. Depois os emissários retiram-se para os aposentos preparados para eles.
Asano está sobre brasas:
- Mas onde estará ele, esse velho demónio do Kira? Foi previsto um banquete para amanhã, uma representação teatral... Ai de mim se acontecer o desaire!
A 13 de Março, a refeição é um autêntico sucesso e os enviados do micado parecem muito satisfeitos com o tradicional espectáculo do Nô [teatro japonês em que se misturam a música, a dança, a prosa e a poesia]. Asano respira fundo, mas sabe que ainda não acabaram os seus tormentos. No dia seguinte há uma recepção de despedida oferecida pelo xógum aos seus hóspedes. Aí, há que respeitar um cerimonial complicado, que Asano ignora quase completamente. Tentou interrogar sobre isso outros senhores, mas cada um explica as coisas de maneira diferente.
Os ilustres enviados estão novamente nos seus aposentos; o próprio Asano acaba de os acompanhar até lá.
- Kira! Até que enfim o encontro!
O homem não está satisfeito, mas é obrigado a parar, com um sorriso mau nos lábios.
- Amanhã, na recepção - pergunta o príncipe - que devo fazer, que devo dizer? Ensina-me, por favor, pois sinto-me perdido...
- Isso devia ter sido tratado com antecedência e segundo as regras - replica o chefe do protocolo. - Hoje não tenho tempo para lhe falar.
E retoma a marcha no corredor, encolhendo os ombros, satisfeito, deixando Asano estupefacto e acabrunhado.
Um pouco mais adiante, volta-se e acrescenta:
- Que isto te sirva de lição!
Desta vez é demasiado: a frase é um insulto! Num abrir e fechar de olhos o sabre do príncipe é desembainhado e, num salto prodigioso, dirige-se ao rosto de Kira:
- Vais responder-me - grita-lhe. - É uma ordem do xógum, teu e meu senhor.
- Nunca!... - responde o outro abanando a cabeça.
Não receia o sabre. Como chefe do protocolo conhece as regras e sabe que o seu interlocutor não tem o direito de se servir da arma nesse local e nessa ocasião.
- Louco! Bandido! Cão maldito! Socorro, socorro! - grita.
- Cala-te imediatamente!
Asano ferve de indignação e a lâmina silva de novo, atingindo o homem na boca com uma longa estocada. O sangue brota... Mas já tinham chegado os guardas do xógum. Intervêm e prendem o príncipe, apesar da sua elevada categoria. A lei é formal: ninguém tem o direito de desembainhar a arma dentro do palácio do chefe supremo dos samurais.
- Vamos prevenir o senhor.
A cólera do xógum é imensa, o seu castigo terrível. Sem sequer ouvir o relato completo dos acontecimentos, ordena o hara-kiri ao seu dáimio que se atreveu a atacar um senhor desarmado dentro da sua própria casa...
Asano Naganori passa a noite em meditação, vestido com roupagens brancas, imaculadas. Escreve, conforme a tradição, um último poema e fala dos seus 36 anos de existência que se vão dispersar como pétalas de flores...
De madrugada despede-se da mulher e enterra calmamente no ventre a lâmina do sabre. Segundo a crença dos samurais é nessa região do corpo que se encontra a nascente da força, a sede da vida.
São 299 os guerreiros alinhados junto do portão do castelo de Ako. Mantêm-se imóveis e nem um músculo do rosto mexe. Escutam... São os 299 samurais da guarda do príncipe Asano. O trecentésimo, Murakami Kiken, está longe a cumprir uma missão. Ignora o drama de que o seu senhor foi vítima.
Em frente dos samurais está o enviado do xógum montado num cavalo nervoso. Com uma leve couraça coberta pela poeira do caminho e armado com os tradicionais sabres, traz nas mãos um longo pergaminho que lê em voz gritante.
Os samurais não o ouvem, continuam a reflectir. Desde a véspera que sabem o que diz o arauto: a morte de Asano Nagaroni, a confiscação das suas casas de Edo, do seu castelo e de todos os seus domínios. Também sabem qual o papel de Kira, o mestre-de-cerimónias, no caso..,. E é sobre isso que os seus sentimentos divergem.
Mas outros reagiram de maneira diferente. O valoroso guerreiro Oishi Kuranosuke foi o primeiro.
- O quê? - resmungara. - Servimos durante anos um mestre digno e nobre, um mestre que confiou em nós e nos tratou como irmãos. E hoje que está morto, vítima de um celerado, devemos inclinar-nos, agradecer e partir cada um para seu lado, esquecendo a ofensa?
Oishi tinha fechado os punhos, sem se deixar convencer:
- Não! Não posso aceitar...
O homem a cavalo termina a leitura. Enrola o pergaminho e anuncia, erguendo a cabeça:
- Em breve virá outro governador. Tem os seus próprios samurais e não vai precisar de vós. Devem abandonar o castelo antes da sua chegada.
Nem a essa notícia os 299 guerreiros têm alguma reacção. O enviado do xógum fita-os um instante, encolhe os ombros, pega as rédeas do seu cavalo mongol, esporeia-o e parte a galope em direcção da capital. Há uma longa caminhada a fazer, sete ou oito dias de viagem. Edo fica a 600 km da província de Iga.
É apenas quando o vulto do cavaleiro desaparece ao longe que Oishi toma a palavra:
- Agora somos uns ronins - diz calmamente. - Que os que aprovam a minha opinião da noite passada me sigam. Veremos o que é conveniente decidir.
Quarenta e seis ronins seguem Oishi e os outros afastam-se.
Então, os 47 ronins redigem em conjunto uma jura sobre um rolo de papel, escrita com o seu próprio sangue. Esse rolo vai ser queimado em frente do altar dos Espíritos e cada um bebe as cinzas dissolvidas em saqué.
Oishi propõe-lhes então um plano. Todos juram não falar a ninguém e respeitarem-se, com os 47 sabres estendidos para o Sol
E depois vão partir um de cada vez, abandonar o castelo do seu falecido senhor... Quando, um mês mais tarde, chega o novo dáimio com os seus soldados, nobres e equipagens, não há um guerreiro na fortaleza de Ako (in 15 Histórias de Artes Marciais, Editorial Verbo, 1981, pp. 89-94).
Continua
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