quinta-feira, 31 de julho de 2025

A filosofia na formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português

 Escrito por Álvaro Ribeiro





«A base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente viva, concentra em si, indistinta e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nela pode reviver. Não somos irmãos, embora possamos ser amigos, dos que falam uma língua diferente, pois com isso mostram que têm uma alma diferente. Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diversas, em que somos iniciados à nascença, e cada um tem, no idioma seu e no que está nele, o seu toque próprio, a sua própria palavra de passe.

(...) A base da sociabilidade, e portanto da relação permanente entre os indivíduos, é a língua, e é a língua com tudo quanto traz em si e consigo que define e forma a Nação

Fernando Pessoa (in António Quadros, «Fernando Pessoa, a Obra e o Homem», II Volume).

 

«De facto os aplausos e a admiração que Leonardo Coimbra colhia (como ele não podia deixar de o perceber) eram puramente espectaculares, dirigidos apenas à sua personalidade exterior de tribuno e homem estranho: na realidade, ninguém o compreendia; e o homem de valor o que deseja é que participem das suas preocupações e não que admirem a sua figura, ou timbre de voz, ou facilidade de palavra; o que ele quer, em suma, é que o compreendam e não que o aplaudam. Leonardo Coimbra sentia com nitidez a sua incomunicabilidade, e sofria como todos os homens superiores a têm sofrido, em todos os tempos e lugares, e sofrerão sempre; sob a máscara do tribuno que frequentemente subia aos estrados para falar, falar, falar, dando-se o ar de homem que tinha a satisfação de transferir as suas ideias, havia o rictus secreto, cheio de amargura, do pensador que sabia que as suas obras somente eram vendidas nas feiras do livro a preços irrisórios, para não serem vendidas a peso. Quantas vezes nos últimos anos, quando os amigos lhe perguntavam de longe a longe se andava a pensar algum livro, ele replicava com rápida mordacidade! - "Mas para quê? Neste país não se pensa: neste país...".




(...) Certo é que alguns dizem que os homens superiores nunca podem falhar; que o que eles realizaram é precisamente o que eles tinham a realizar. Perante a obra de Leonardo Coimbra (como perante a de Antero de Quental) tal teoria afigura-se-nos radicalmente irreflectida. De facto, os homens superiores podem falhar; e falham quase sempre. Em regra, o que eles realizam fica desmedidamente aquém do que lhes era possível. Ora, desde que um desses homens tem a consciência de que as suas melhores virtualidades foram contrariadas e esmagadas pelo que lhes é exterior, natural é que no seu espírito ecluda qualquer forma cancerosa de "desforra": nuns, essa "desforra" é uma simples abominação surda seguida do afastamento; noutros é a reacção colérica conducente à própria perda; noutros é o silêncio seguido de um desaparecimento enigmático, etc. Em Leonardo Coimbra foi a mordacidade implacável. Que é, porém, a mordacidade senão uma reacção ofensiva dos ofendidos? E quem sabe se, sem a intervenção fortuita e trágica do desastre, o seu fim não seria mais nitidamente uma acusação contra o meio?».

Santana Dionísio («Leonardo Coimbra»).

 

«Quem alguma vez ouviu José Marinho interpretar uma frase de Jesus, extraída dos Evangelhos, ou explicar um dos mais belos poemas da língua portuguesa, jamais esqueceu a maravilhosa mestria de quem facilmente abre, desenvolve ou desenrola os textos que foram escritos para transmitir só aos iniciados a verdade das doutrinas sagradas. Transitando do significado exotérico para o sentido esotérico, já não é o professor quem fala, mas talvez o sacerdote inspirado. Desta observação se infere a função que José Marinho pessoalmente atribui à filosofia, deslocando-a para a escolástica, segundo a honrosa tradição medieval.

É, para seus discípulos, evidente que a vocação espiritual de José Marinho se exprime no apelo de transcender a escolástica, a filosofia, o pensamento situado, na inquietação de alcançar a ideia pura. Enquanto outros pensadores, seus contemporâneos, opondo barreiras ou diques ao positivismo invasor – que ameaça anular amanhã as últimas características da cultura portuguesa, e até o idioma nacional, – iam escrevendo ensaios escolásticos sobre as relações da filosofia com a religião, com a pedagogia, com a política, com a literatura, etc., José Marinho, elaborava em segredo a sua obra-prima, que haveria de ser intitulada Teoria do Ser e da Verdade. Publicou-a em 1961, com plena consciência de que praticava uma "intempestiva ousadia" numa sociedade adversa aos livros de pensamento puro.



Traduzida em francês, inglês ou alemão, esta obra seria a demonstração perfeita da superioridade da filosofia portuguesa sobre todas as suas rivais estrangeiras; ela permanece ignorada e esquecida aquém e além fronteiras, por culpa de todos nós, que não sabemos cultivar nem aproveitar as verdadeiras fontes das nossas riquezas espirituais. Síntese poderosa de todas as teses enunciadas na filosofia contemporânea, ela é além disso verificada por uma dinâmica intenção mística. Ela realiza, com a superação da filosofia, a transcensão infinita que ao homem como tal é possível falar, dizer ou escrever».

Álvaro Ribeiro («Homenagem a José Marinho»).



A filosofia na formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português 


De lustro para lustro, ao fim de cinco anos, após a duração de um curso, volta-se a falar em nova reforma, em dar outra forma, ao articulado jurídico de estruturas escolares que parecem já caducas, inoperantes ou improdutivas. Tal resulta de olhar apenas para o que no mundo é efémero, transferível ou relativo, em vez de prestar atenção ao que a experiência tem demonstrado ser constante e improgressivo, tanto no educador como no educando. Quantas vezes se procura imitar o melhor modelo estrangeiro, tantas vezes se esquece o propósito essencial da formação do homem português, do homem que fala português e que pensa em português.

Tal não acontece, porém, em outros povos, e em outros estados, os quais não só cultivam ciosamente as filosofias que criaram ou que importaram, mas também as difundem por livros de apologética adequados à propagação de ideologias propícias ao domínio hegemónico sobre o pensamento estrangeiro. Ocioso será lembrar os exemplos históricos de indução falaciosa na construção de sistemas universais, porque tais factos de intercâmbio cultural demonstraram uma lição que se impõe à memória dos bons entendedores. A subordinação da política à filosofia, implícita ou explícita nos textos jurídicos, vai-se tornando evidente a quem sabe ler com atenção as mais recentes páginas da História, sem confundir as constantes com as variantes de acontecimentos progressivos para um fim remoto ou ignoto.






Durante séculos áureos da Nação Portuguesa, em que se verificou a hegemonia universitária da Escolástica, foi a filosofia predominantemente cultivada em latim e intimamente associada à religião. A disciplina promotora da liberdade de pensamento, enviada em sua forma aristotélico-jesuítica, esteve associada à disciplina seguradora da unidade da fé. Depois de 1772, instaurados o iluminismo liberalista e o sociologismo positivista, haveria o vulgo ignorante, mas bem falante de considerar como anacrónico, retrógrado, ou reaccionário o ensino da filosofia.

Ao longo do século XIX desenvolveu-se contra a Escolástica, não uma crítica minuciosa e certeira, mas uma injusta polémica, tendente a dissolver a relação perene entre a filosofia e a religião. Exaltada foi a liberdade de pensamento, mas tal liberdade deveria ficar subordinada ao determinismo da ciência, formando-se à margem deste círculo vicioso um campo propício às variantes da opinião. Alguns plumitivos chegaram até a doutrinar sobre os conflitos havidos entre a ciência e a religião, encobrindo numa expressão caracterizada pela impropriedade dos termos, intenções precursoras de agitação política e revolução social.

Eliminar a filosofia dos quadros do ensino público foi a aspiração confessada ou inconfessada de muitos reformadores políticos, mas a tal propósito obstavam não só os hábitos didácticos dos professores fiéis à nossa tradição escolástica, mas também o prestígio de que a filosofia gozava nas nações estrangeiras e nos congressos internacionais. Adentro das nossas fronteiras, a filosofia ia sendo também atacada pela licenciosidade dos literatos e parlamentares românticos; mas os escritores realistas, mais prudentes ou mais inteligentes, admitiram uma filosofia esboçada para complemento da enciclopédia científica, imitando o exemplo das celebridades estrangeiras. Ninguém elevou a voz para demonstrar que a exclusão da filosofia escolástica iria dificultar a autêntica e metódica investigação histórica do pensamento artístico, político e religioso do povo português; seria o factor mais profundo da adulteração da fisionomia espiritual da Pátria; aceleraria a dissolução da língua portuguesa no jornalismo escrito e falado para melhor aceitação das expressões de origem internacional.

A palavra «filosofia» permaneceu a designar uma das últimas disciplinas do curso dos liceus, mas tal disciplina, periodicamente reformada nos seus programas ou ministrada por livros estrangeiros, reproduz ainda hoje um método incompatível com uma didáctica vivente, do qual resulta a demissão da inteligência em que se propõe transitar para uma escola universitária. Seria inútil repetir ou resumir as críticas feitas por especialistas autorizados. Nos serviços públicos, desde o Curso Superior de Letras até à última reforma das Faculdades de Letras, nunca houve a intenção de formar filósofos entre os estudantes que para tal demonstrassem vocação ou aptidão, (a exemplo do que se praticou outrora quanto às carreiras eclesiásticas), porque sempre os legisladores atribuíram prioridade às disciplinas de história e à ordenação histórica dos tópicos dos programas, em detrimento das actividades especulativas que se reflectem no julgar, no conceber, no meditar, e que manifestam sua fecundidade pela elaboração de livros originais.




(...) Muitos processos há de excluir a filosofia, ou de fazer passar por filosofia o que é a sua contradição e contrafacção; maior é, porém, o número de artifícios de estilo para significar desdém ou aversão pelos filósofos que não se conformam com o destino injusto do anonimato. Desde o cumprimento insincero, e portanto irónico, mediante palavras lisonjeiras, até às práticas de ofensa, difamação e desonra que os jornais e as revistas acolhem para divertimento dos seus leitores, consolida-se aquela opugnação vulgar ou pública segundo a qual o qualificativo de filósofo é mais ou menos ridículo e, portanto, mais próprio para a comédia do que para a tragédia. Morrem os filósofos nas condições que a História regista para que o castigo social não deixe de recair sobre quantos se dedicam a uma forma de pensamento livre, independente de qualquer ideologia sectária ou partidária, motivados apenas pelo excelso amor da verdade.

(Álvaro Ribeiro, in «Homenagem a José Marinho»).

sábado, 26 de julho de 2025

O homem propriamente dito, na sua singularidade e universalidade

Escrito por Manuel Ferreira Patrício




«(...) disse-me várias vezes Leonardo Coimbra que o nosso sistema escolar faz cessar a evolução mental do português aos quinze anos. É verdade. Basta fazer a análise lógica dos compêndios escolares. Depois dos quinze anos tudo é ensinado a martelo, na intenção de reconduzir as novas e mais complexas noções aos esquemas da mentalidade pueril».

(«O Testemunho de Álvaro Ribeiro», em entrevista apresentada e conduzida por António Quadros).

 

«As minhas reflexões têm uma relação forte com a experiência de professor de filosofia no ensino secundário durante cerca de 10 anos. Não são reflexões abstractas. Vivi por dentro o ensino da filosofia no ensino secundário, entre 1966-67 e 1975-76. Confrontei-me quotidianamente com as dificuldades do ensino da filosofia a jovens adolescentes e posso imaginar as dificuldades que terão hoje os professores de filosofia, com alunos mais novos que os de então, com uma educação qualitativamente degradada e numa sociedade mais desvalorizadora da reflexão.

(...) Há uma menorização geral do ensino da filosofia na Europa, dentro e fora da União Europeia, o que não é grande sinal para o seu futuro».

Manuel Ferreira Patrício («Reflexões sobre o Valor Formativo do Ensino da Filosofia», in Philosophica, 6, 1995).





«(...) talvez induzido por algum popular em Montargil, cheguei a perguntar aos meus queridos Avós se já tinham ouvido falar num eventual filósofo por aquelas bandas. Lá me disseram que sim, que havia um, a caminho das Afonsas. Eu, que sempre fora um experimentalista, lá fui até dar, segundo indicação prévia, com a Travessa das Amendoeiras. Bati à porta e apresentei-me como sendo neto do Manuel Baptista. Entrei e, trocadas algumas breves impressões, dei-me logo conta de que não se tratava propriamente de um filósofo, mas, sim, de um professor universitário. Era o Manuel Patrício».

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa»).

 

«Nas nossas meditações e na nossa modesta docência universitária temos proposto, defendido e utilizado [um termo] que nos parece mais perfeitamente adequado à essência e finalidade da educação: “antropagogia”. Por antropagogia entendemos a teoria e a prática da formação do homem na plenitude da sua humanidade».

Manuel Ferreira Patrício («A Pedagogia de Leonardo Coimbra»).


«Nem todos quando abstraímos temos força suficiente que nos ajude a abstrair, ou seja, a nossa intencionalidade na abstracção tem arcos diferentes – ou seja ainda, não há cavernas iguais nem com os mesmos limites. Podemos afirmar que numa construção da lógica aristotélica, quando pensamos o género, nem todos o compreendemos com a mesma amplitude, porque os arcos de entendimento e os vazios que possamos preencher, em suma, o valor da nossa subjectividade, é sempre variável. O Arco mais profundo é o da intencionalidade».

Luís Furtado («Teoria da Luz e da Palavra»).

 

«O Estado português, fundamentalmente positivista, não tem por missão essencial promover o cultivo da filosofia. Desta afirmação, que merece acordo unânime, inferimos e esclarecemos as consequências observadas naquele ramo de administração pública que até agora tem sido designado por instrução, educação ou escolaridade, o qual pressupõe opção por uma tese definidora da liberdade e do destino do homem em seu trânsito pelo mundo. Outrora referida à finalidade suprema de conhecer e amar a Deus, a vida humana é hoje, programada em obediência às ilusões da prosperidade material e da distribuição das riquezas pelos povos. A falta de uma disciplina ordenadora e coordenadora de todo o saber, a falta de uma filosofia nitidamente caracterizada por seus princípios, meios e fins, tem por consequência a impossibilidade de projectar e concretizar no quadro do ensino público uma instituição que mereça o nome de Universidade.  Um aglomerado de escolas em que falte a unidade, a monarquia, a teologia do saber teorético ou teórico, jamais poderá assegurar ou promover a realização da autêntica e verdadeira cultura. Há escolas superiores umas às outras; há escolas inferiores umas às outras; predomina o relativo sobre o absoluto; mas deste modo a pluralidade dispersiva das ciências, das técnicas e dos ofícios, se torna permeável a todas as contradições que, no tempo como no espaço, ameaçam a continuidade e a segurança do espírito que caracteriza a Nação».

Álvaro Ribeiro («Homenagem a José Marinho»).





O HOMEM PROPRIAMENTE DITO, NA SUA SINGULARIDADE E UNIVERSALIDADE


«Quando nós próprios começámos a pensar o homem e os problemas do homem – escreve Marinho – não tínhamos notícia de outra antropologia senão a científica». Ora esta antropologia considera sempre o homem analiticamente, nas suas «diversas formas de ser ou de saber ou de comunicar e agir». O homem propriamente dito, «na sua singularidade e universalidade, esse não o encontramos ali». Esse homem é o que José Marinho quer captar e por isso se orientou decisivamente para a antropologia filosófica: «A autêntica antropologia é filosófica, quer quando interroga sobre as origens do homem, quer quando interroga sobre a plenitude do homem ou no homem, efémera embora e fugitiva no ser singular que é cada um para si».

A grande interrogação antropológica é, pois, esta: «que é o homem?» Quem interroga? É já, é sempre, inevitavelmente o homem. Todavia, no concretíssimo da interrogação é um homem e um homem numa situação única. Quem interroga realmente sobre o ser do homem sou eu. À interrogação abstracta e insituada prefere Marinho a concreta e situada: «Deixando, pois, o caminho da interrogação primeira, decido interrogar-me a mim próprio e aos que me são mais próximos». É, pois, abandonada uma antropologia geral e assumida «uma antropologia interrogativamente situada aqui e agora, atenta a todo o diverso e divergente, ao que se diferencia ou diferenciou».



José Marinho

Marinho não opõe o universal ao singular. O singular humano – seja um homem, seja um povo, seja uma civilização – não nega o universal humano, pois este é o seu próprio fundamento e razão de ser. Todavia, universalidade não é homogeneidade. O filósofo português é fiel à primeira, mas não cede à ilusão da segunda. Essa foi a ilusão que a Europa viveu com o iluminismo e já antes dele – é hoje, porventura, a ilusão de muitos tecnoconstrutores da Europa comunitária. Diz Marinho: «Essa ilusão radicava na ideia de que o homem provinha de uma forma fixa e dada de uma vez por todas, ou de um género que se subdividisse em espécies, povos e seres singulares». Ilusão impotente perante a análise filosófica, que evidencia que «no homem o género não cobre toda a espécie, a espécie não cobre todo o povo, o povo não cobre toda a riqueza e potencialidade do ser singular».

Uma antropologia para portugueses tem, portanto, de acabar por ser – porque tem de começar por ser – uma antropologia portuguesa. Começa por sê-lo, porque a interrogação radical sobre o ser do homem é feita por portugueses. Acaba por sê-lo, porque a radicalidade da interrogação já envolve a radicalidade da resposta.

(...) Não chegou José Marinho a formular a o problema da antropagogia. E, todavia, é nesta que aquela se cumpre e é sobre a educação que se encerra o opúsculo de que vimos falando [Elementos para uma Antropologia Situada, 1966]. «Aprender tem toda a dimensão humana, permeia toda a vida do homem, desde o primeiro instante» – escreveu. Ora a uma antropologia situada só pode corresponder e só pode seguir-se uma antropagogia situada. O homem que é preciso educar é «o homem concreto aqui e agora» e não «um homem geral que não existe»; o homem que é preciso educar é «um ser concreto em perpétua descoberta de si para si próprio e para os outros».

(In Manuel Patrício, Lições de Axiologia Educacional, Universidade Aberta, Lisboa, 1993, pp. 221-223).



quarta-feira, 16 de julho de 2025

Só o indivíduo vive, só o indivíduo pensa e sente

Escrito por Fernando Pessoa

 



A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que ter automóvel é ser feliz é o sinal distintivo do plebeu.

 

1. A única realidade social é o indivíduo, por isso mesmo que ele é a única realidade. O conceito de sociedade é um puro conceito; o de humanidade uma simples ideia. Só o indivíduo vive, só o indivíduo pensa e sente. Só por metáfora ou em linguagem translata se pode aludir ao pensamento ou ao sentimento de uma colectividade. Dizer que Portugal pensa, ou que a humanidade sente é tão razoável como dizer que Portugal se penteia ou que a humanidade se assoa.

2. Sendo o indivíduo a única realidade social, não é todavia o único elemento social. Esse indivíduo vive em dois meios ou ambientes – um o ambiente físico, outro o ambiente social, ou sociedade. É esse o valor do elemento sociedade – é o meio, um dos meios, em que o indivíduo vive. O sábio realismo de Aristóteles viu isto bem; e assim se assentou a tese política grega – que a sociedade existe para o indivíduo, que não o indivíduo para a sociedade.

Sendo o indivíduo a única realidade social, é o egoísmo a única qualidade real, embora, por disfarces vários e artifícios diversos se construíssem, no decurso da evolução social (não digo do progresso, porque não sei – nem ninguém sabe – se existe progresso) sentimentos altruístas, afinamentos dos instintos.

Para que o indivíduo possa ter uma vida social que lhe seja um elemento de desenvolvimento, ou, em outras palavras, para que a sociedade seja um ambiente favorável ao desenvolvimento do indivíduo, é forçoso que se faça assentar essa sociedade num conceito egoísta. Assim se formam naturalmente nações. A nação é o segundo elemento social primário. Os homens não se agrupam fraternitariamente senão por oposição. Sempre nos unimos para nos opormos. Isto é, aliás, um princípio lógico: definir é limitar.

(In António Quadros, Fernando Pessoa – A Obra e o Homem, II Vol., Arcádia, 1.º edição, 1982, pp. 209-210).