quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Do trívio e do quadrívio em São Tomás de Aquino

Escrito por João Ameal


Bíblia de Gutenberg

«Quando exaltamos o valor prático da revolução aristotélica e a originalidade de Tomás de Aquino em chefiá-la, não queremos dizer que os filósofos escolásticos anteriores a ele não tinham sido filósofos, ou não tinham sido altamente filosóficos, ou não haviam tido contacto com a filosofia da antiguidade. Se alguma vez houve grande quebra na história filosófica, não foi antes de S. Tomás, ou no princípio da história medieval, mas sim depois de S. Tomás e nos princípios da história moderna. A grande tradição intelectual que chegou até nós, desde Pitágoras e Platão, nunca se interrompeu ou perdeu com bagatelas como o saque de Roma, o triunfo de Átila ou todas as invasões bárbaras da idade das trevas. Apenas se perdeu após a introdução da imprensa, o descobrimento da América, a fundação da Sociedade Real e todo o progresso do Renascimento e do mundo moderno. Foi aí, se o foi em qualquer parte, que se perdeu ou se quebrou o longo fio, fino e delicado, que vinha desde a antiguidade remota, o fio dessa rara mania dos homens – o hábito de pensar.»

G. K. Chesterton («S. Tomás de Aquino»).

 

«Articulam-se com os três primeiros elementos (terra, água, ar) as disciplinas do trívio, as quais podem sem desvantagem continuar a ser designadas por gramática, retórica e dialéctica. O quarto elemento, purificador e transformador, é de existência supra-terrestre e transcende a condição humana. Explica-se metodologicamente que as disciplinas do trívio, mais relacionadas com a antropologia, preparem a inevitável transferência da inquietação filosófica para os planos da cosmologia e da teologia. O quadrívio medieval, constituído pelas disciplinas designadas por música, aritmética, geometria e astronomia, não corresponde já às exigências da ciência moderna, mas nem por isso o pensador actual se afastará da verdade dominante nos estudos quadriviais. O movimento ígneo, a princípio mencionado na separação entre as trevas e a luz, foi mais tarde designado por térmico, magnético e eléctrico, sem que a ciência lograsse atingir por sucessivas sínteses a ambicionada unidade substancial. O estudo do quadrívio invade já os domínios da lógica, da gnosiologia e da epistemologia cujos processos superam os triviais, embora o movimento primordial seja susceptível de se configurar nos outros movimentos elementares, para trabalho, arte e jogo dos homens que vivem mais presos à terra.

A criança, o ser em crescimento e criação, aprende a andar e a nadar em planos visíveis no horizonte; dir-se-á também que, mantendo pura a infantil docilidade, segundo a arte de saber ouvir, aprenderá o homem a deslocar-se no ar e no fogo, ainda que invisivelmente. Entre as perturbações e as dificuldades da crise chamada adolescência despontam as primeiras asas pelas quais o homem deixa de ser para sempre um triste bípede implume. Na idade própria em que o estudante se liberta do argumento de autoridade, duvidando do que lhe foi doutrinado por parentes, sacerdotes e professores, para reflectir sobre os ensinamentos previamente adquiridos, impõe-se que o programa escolar prescreva mais profundos estudos triviais.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).

 


«A obra doutrinária de S. Tomás de Aquino é, antes de mais, como um imenso espelho onde se reflecte a cultura do seu tempo. Raro será o nome ilustre nas lides intelectuais, quer da antiguidade, quer da própria época do Santo Doutor, que não tenha algum eco nos seus livros. Manuseia na perfeição as fontes cristãs, tanto escriturárias como patrísticas, gregas e latinas, e cita amplamente BOÉCIO e o pseudo-DIONÍSIO AREOPAGITA; SANTO AGOSTINHO, em particular, para ele não tem segredos. Dos filósofos mais recentes conhece o filão já mencionado dos judio-arábigos – AVICEBRÃO e MAIMÓNIDES, entre os judeus; AVICENA, AVERRÓIS, AVEMPACE, ALGAZEL, entre os árabes –, os neoplatónicos BOÉCIO e DIONÍSIO, cristãos, e os pagãos PORFÍRIO, TEMÍSTIO e SIMPLÍCIO, e imperfeitamente o próprio PLOTINO. Quanto aos da antiguidade clássica, cita CÍCERO e SÉNECA, ZENÃO e EPICURO e conhece a fundo ARISTÓTELES, e através dele tem notícia de PLATÃO e dos PRÉ-SOCRÁTICOS. Fora da filosofia não há campo do saber humano que lhe seja totalmente alheio. Há nas suas obras referências a polígrafos como SANTO ISIDORO DE SEVILHA; a cultivadores da ciência jurídica, tais como GRACIANO e os jurisconsultos imperiais; a homens de ciência como GALENO e HIPÓCRATES; a geógrafos como ESTRABÃO; a historiadores como TITO LÍVIO e SALÚSTIO; e até a poetas como OVÍDIO e HORÁCIO. Dos seus imediatos predecessores são-lhe familiares SANTO ANSELMO e SÃO BERNARDO, e menciona a cada passo GILBERTO PORRETANO, ABELARDO, os VITORINOS, PEDRO LOMBARDO, DAVIDE DE DINANI, ALMARICO DE BENES, etc. Quanto aos seus contemporâneos, amigos ou adversários, alude de preferência a eles sob a anónima designação de “quidam”, própria da época, mas é fácil descobrir as suas referências. Pode dizer-se que no espírito de S. Tomás, acolhedor e hospitaleiro, encontra guarida tudo quanto de nome e digno tinha germinado o pensamento universal e que a sua alma se sentia herdeira do racionalismo harmónico dos gregos, da ponderação jurídica dos romanos e da profunda especulação dos árabes, enquanto vibrava com o ardor próprio dos jovens no anseio religioso e místico da espiritualidade judaico-cristã exaltado na tradição platónica da própria Grécia.»

João Zaragüeta («S. Tomás de Aquino no seu tempo e agora»).

 

«Desde logo, a imagem que hoje temos do esplendor escolástico é construída com base nuns quantos poucos nomes, especialmente Sto. Alberto, Sto. Tomás, S. Boaventura e Duns Scot. Se os apagâssemos dos registros, o escolasticismo não teria passado de um episódio curioso na história da educação. E esses não são nomes só de filósofos, mas de Doutores da Igreja: três santos canonizados e um bem-aventurado. Não existe o menor motivo para supor que na vida pessoal esses homens tivessem uma conduta mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do “modelo pronto” que os anjos invejavam. Não vejo em que a dissolução do modelo pela “discussão racional” poderia ter contribuído nem para a sua santidade, nem para o fortalecimento do tipo especial de inteligência ao mesmo tempo filosófica e mística que os caracteriza, o qual não cresce fora e independentemente da graça santificante, mas decorre dela como um dom especial do Espírito.

Também é ingenuidade supor que essas encarnações máximas do gênio escolástico fossem produtos típicos do novo meio acadêmico, no qual, bem ao contrário, não se ajustaram confortavelmente jamais. Sua inteligência, sua rígida idoneidade, sua compreensão superior dos mistérios da fé e, last not least, sua coragem intelectual faziam desses quatro mestres os alvos preferenciais das invejas, mesquinharias e maledicências de seus colegas.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).





Do trívio e do quadrívio em São Tomás de Aquino

 

De facto, após um longo colapso, a cultura científica e filosófica progredia, com renovado resplendor, em todo o mundo cristão. Dois concílios realizados em Latrão, e as diligências constantes de três Papas – Inocêncio III, Honório III e Gregório IX – impulsionavam o clero para os estudos superiores.

Tudo isto determinou, como era de esperar, o envio do jovem oblato beneditino para a Universidade de Nápoles.

Segundo a orientação pedagógica de então, consagrou-se Tomás de Aquino ao estudo das chamadas artes liberales, divididas em dois grupos: as artes triviales, sermonicales, rationales, que constituíam o trivium: gramática, retórica e dialéctica; as artes quadriviales, reales, physica, mathemática, que constituíam o quadrivium: aritmética, geometria, astronomia e música.

No primeiro grupo, foi seu mestre em Nápoles Pedro Martinus, que lhe ministrou uma ampla cultura humanista e o pôs em contacto com os velhos poetas e oradores greco-latinos: Virgílio e Horácio, Ovídio e Terêncio, Juvenal e Séneca, César e Quintiliano, Cícero e Marius Vitorinus, e também com alguns escritores dos inícios da Idade-Média: Oroso, Boécio, Gregório de Tours. Ao mesmo tempo, Martinus industriava-o no conhecimento íntimo da dialéctica, logo admiravelmente apreendida e que mais tarde Tomás utilizaria com mestria inexcedível.

No segundo grupo (quadrivium), ensinou-o Pedro de Irlanda – notablizado pelos seus comentários sobre Porfírio, sobre o Perihermeneias e o De longitudine et brevitate vitae de Aristóteles – que seria chamado gemma magistrorum et laurea morum. A influência exercida por este professor no espírito do seu discípulo adivinha-se profunda – não tanto pelos vagos e incompletos dados enciclopédicos de autores antigos que lhe forneceu: os tratados de Boécio, o Astrolabio de Gerbert, as teorias euclidianas – mas porque deve ter chamado pela primeira vez a sua atenção para o nome e a obra de Aristóteles. Este simples facto marca um lugar a Pedro de Irlanda na história do pensamento humano: ter sido, porventura, o instrumento do encontro inicial de Tomás de Aquino e do Estagirita.

(In João Ameal, São Tomás de Aquino, Livraria Tavares Martins, Porto, 1937, pp. 17-18).



Scuola di Atene, por Raffaello Sanzio (1483-1520)


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