Escrito por Franco Nogueira
|
Catedral de Santiago de Compostela
|
|
Imagem de Santiago Mata-Mouros no cimo da capela-mor.
|
|
Urna de prata onde se encontram as relíquias de Santiago.
|
«Em meados do século X havia já (...) o esboço duma nacionalidade
abrangendo toda a vertente ocidental, prova de que a separação política entre a
Galiza e Portugal não tem que basear-se na geografia. A nosso ver a causa da
desintegração da Galiza do Estado do Ocidente da Península reside num fenómeno
de carácter religioso: a importância excepcional que Santiago de Compostela
assumiu, em toda a Europa, como centro de peregrinação. Desde o século IX que
esta cidade adquire uma intensa prosperidade económica mercê das turbas que
todos os anos e de toda a Europa acorrem a visitar o túmulo do Apóstolo. A cidade
galela não só arranca a Braga a hegemonia sobre o Noroeste da Península, como
se torna uma espécie de Roma do Ocidente, foco de riqueza e centro de cultura
intensa. Colocada, todavia, num dos extremos da faixa ocidental, formada mais
por concentração passiva que activa, é na criação dessa metrópole aberrante que
devemos buscar a causa da despolarização política ocidental da Galiza. Ao
período da formação da nacionalidade pertence, pois, a história da Galiza até o
século XIII. Ali se acusa a diferenciação da língua que virá a ser a
portuguesa. Ali se forma o primeiro centro de cultura literária em
galaico-português. Dali irradia igualmente em território português a
civilização artística, sob outros aspectos. Ali se realizam os primeiros
ensaios de organização duma marinha de guerra entre os cristãos do Ocidente da
Península, e actuam as primeiras excitações dum comércio marítimo com o Norte,
que um pouco mais tarde haviam de assumir tão grande importância na formação de
Portugal. Eis as primeiras razões que nos levaram a chamar a este período
galaico-moçárabe. Resta justificar o segundo termo dessa designação.
Dissemos
anteriormente que não podia compreender-se a formação da nacionalidade, sem
ponderar a influência que nela teve a civilização muçulmana, quer directamente,
quer através de Moçárabes e Judeus. Um dos caracteres que mais distinguiu a
civilização dos Árabes provém de que eles foram um povo de mercadores e
marinheiros, que durante a Idade Média estenderam o tráfico aos três
continentes então conhecidos. Muito antes que as Cruzadas tivessem posto em contacto
o Ocidente com o Oriente, já a Península beneficiara desse fecundo influxo.
Desde os primeiros tempos do domínio muçulmano que as relações entre a Espanha
e o Oriente foram contínuas. E temos razões (...) para antepor esse facto aos
demais factores externos que é costume apontar como tendo influído na formação
da nacionalidade. Os primeiros portos portugueses que abriram ao comércio
estrangeiro limitaram-se a continuar ou reatar um tráfico de origem muçulmana
e anteriormente existente sob o domínio dos Árabes. Outro dos aspectos da civilização árabe que havia mais tarde de influir
na civilização nacional, foi a sua preocupação da posição geográfica, ciência
que desenvolveram tanto no cultivo da astrologia como movidos pelas
necessidades religiosas.»
Jaime Cortesão («Os Factores Democráticos na Formação de Portugal»).
«O espírito de sujeição
não é senão sageza realista, meio de se libertar. Este fito pertinazmente
procurado é o que vale; a rebeldia, que atrasa e compromete, não passa de
recurso desesperado quando a corveia se torna de todo insuportável: “o surdo
mugir do toiro do Minho”, no dizer de Camilo.
De humilde labor, paciência, habilidade, e
cega quanto oportuna decisão precisam os pequenos para saírem da cepa torta. Assim
se fez Portugal, a partir dos rudes caboucos da “monarquia agrária”, imaginoso
em negociar e explorar o momento, e contudo predisposto sempre a combater.
Não coube Portugal
no berço “onde o corpo nasceu”, ainda que então lhe sobrasse mantimento dentro
dele. Se não caber foi “destino”, uma das causas partiu do próprio instinto vital,
pois não conseguiria que o deixassem sobreviver em tão reduzido torrão; e esta
causa, este risco, acicatou uma outra, – a tendência expansionista, congénita,
prestes desperta, que afinal o salvou.
Um povo bem
amarrado ao agro aliava paradoxalmente a este amor, a “cobiça do longe”, uma
infrenada curiosidade pelo restante mundo. Aproveitou em tempo os caminhos
livres do Oceano. Por isso, em 1361, o burgo portugalês possuía no dizer do Rei
“mais naves e navios que em todo o meu senhorio”, precedendo no apetrechamento
naval os entrepostos “semitizados” do Sul. A sua frota foi “descercar Lisboa”
no tempo do Mestre de Aviz e tornou-se decisiva para os primeiros arranques da
nossa expansão ultramarina.»
Francisco da Cunha Leão («Ensaio de Psicologia Portuguesa»).
|
Brasão de Armas de D. João I |
«Dissemos que os
elementos decisivos de germinação política na formação do Estado português se
deviam procurar na costa e no fundo dos estuários; e que os sucessivos
movimentos de massa que preparara o advento da Nação se caracterizaram pelo
progresso contínuo numa tendência – a aproximação do mar e a sua utilização.
Ao tempo em que o
conde D. Henrique inicia o governo do condado portugalense, já o actual
território português, conforme se depreende das referências de Edrisi e de bom
número de documentos coevos, era ocupado por uma população relativamente densa,
e de concentração urbana predominante ao sul do Tejo e no fundo dos estuários
navegáveis. Sem este facto, cremos que seria impossível explicarem-se os que
vão seguir-se. Desde o século XII até o fim do século XIII dá-se um novo
movimento de massa: a população ocupa todo o litoral utilizável e forma-se o
género de vida nacional – o comércio marítimo com base na agricultura. A seguir
e até 1383, ou seja até o fim da primeira dinastia, com o desenvolvimento do
comércio marítimo e das classes populares, aparecem as primeiras tendências
para uma política de expansão ultramarina, e o povo, cônscio da sua força e das
suas virtudes, mostra-se capaz de tomar parte na direcção da vida nacional. Na
história económica e social, ou simplesmente na história destes primeiros
séculos, são esses, a nosso ver, os factos culminantes. Eles representam o
nervo dos grandes desenvolvimentos durante a dinastia de Avis.
Antes que
historiemos, convém dizer que o desenho das costas e dos estuários se apresentava
nessa época ligeiramente diverso do que é hoje. Diferença ligeira, é certo, sob
o ponto de vista do traçado geral, mas duma importância enorme, ousamos dizê-lo,
pelas suas consequências na transformação do povoamento e da actividade
económica. Desde o século XVII que vários autores, Fr. António Brandão, Quintela, Loureiro, Alberto Sampaio, Costa Lobo e Gama Barros, parcial e acidentalmente
se referiram a modificações na costa e no curso dos rios, que deram como
resultado quer o desaparecimento dalguns portos, quer o assoreamento dos
estuários. Mas fomos nós, segundo cremos, os primeiros a apontar esse facto em
toda a extensão e a salientar a grande importância que os portos, o número muito
maior deles e a profundidade dos estuários, haviam assumido nas origens da
Nação. Seremos também os primeiros a documentá-lo.»
Jaime Cortesão («Os Factores Democráticos na Formação de
Portugal»).
«Participaram do
espírito e do projecto templários D. Afonso Henriques, Cavaleiro do Templo, bem
como os seus sucessores, no reinado dos quais, até D. Afonso III, se fez a
conquista e a consolidação do território, expulsando os islamitas e defendendo-o
das suas investidas, bem como das ambições territoriais vizinhas, sempre com a
ajuda fiel dos templários, a quem foram concedidos constantemente novos
privilégios e que a partir de 1288, sob D. Dinis, com o Mestre D. João Fernandes,
se separaram de Leão e de Castela, passando a ter total autonomia.
Ora tal espírito e
projecto não se resumiram, nem só à defesa dos lugares santos da Palestina, nem
apenas, mais tarde, à conquista dos territórios ibéricos sob domínio muçulmano.
A Cavalaria do Templo, mesmo depois de abandonado aquele e de atingido este
objectivo (pelo menos em Portugal), perseverou num combate que agora já não tinha
adversários tão facilmente visíveis e nomeáveis. Nesse combate por assim dizer
invisível, travado na frente de toda a Europa e para além dela, tomou parte,
como um dos principais protagonistas, o templarismo português, ou seja, o
núcleo cavalheiresco mais poderoso e idealista que trabalhava no interior da
nossa sociedade, junto às elites e à coroa, em colaboração decerto com a Igreja,
mas com uma missão específica.
O essencial da missão ecuménica templária,
transcendendo os objectivos imediatos e até os interesses nacionalistas das
suas sedes nos cristãos, foi a nosso ver a preparação no temporal para a Jerusalém Celeste, cuja descida sobre a
terra foi profetizada por S. João no Apocalipse e cuja teologia escatológica foi teorizada por Santo Agostinho (inspirador da sua primeira regra, em Jerusalém) na Cidade de Deus.
O selo do Grão-Mestre
da Ordem do Templo representava o Templo de Salomão, o que significava muito
provavelmente uma alusão ao Templo material destruído pelos romanos, mas antes [e sobretudo] ao Templo ideal, o da luz e o do
Espírito, destruído pelos filhos das Trevas e da Matéria, que os templários
estavam missionados para reconstruir.
Ordem da Cavalaria do Templo de Salomão, também chamada Milícia de Cristo. O Templo
de Salomão reconstruído simbolizava a futura Jerusalém Celeste, cujo
advento se tornara possível depois da Encarnação e da Paixão de Cristo, quando
os povos se lhe convertessem ou, como tudo parece indicar, quando as grandes
religiões do mundo, nomeadamente as monoteístas, a cristã, a judaica e a
islâmica, estabelecessem entre si a Novíssima
Aliança, unindo no futuro escatológico profetizado por S. João, os seus universalismos separados, as suas
teleologias, as suas escatologias. Seria o tempo do Espírito Santo, anunciado no Evangelho
de S. João.»
António Quadros («Portugal, Razão e Mistério», I).
DO BERÇO À CONSTRUÇÃO DA NACIONALIDADE
|
Mapa da Lusitânia sob o domínio romano, indicando rios e povoações e a rede conjectural de vias de comunicação, segundo Hübner. |
Não há
acordo sobre os elementos de que irrompeu a nacionalidade portuguesa. Não nos
apontam os cronistas uma directriz. Nos textos não tem sido viável basear
conclusões indiscutíveis. Nem a historiografia moderna, independente de
critérios políticos e firmada na crítica das fontes, tem conseguido elucidar as
origens. Herculano defendeu a tese
românica ou municipalista. No âmbito das autarquias locais, decalcadas na
lei romana, teria florescido a liberdade pública. Alargada aos vizinhos com
interesses afins, haveria criado o ânimo de independência. Mas Herculano deixa
pairar uma dúvida. Insatisfeito com a sua verdade, acrescenta algures, como
explicação última, que somos independentes porque o quisemos ser. No meio das
divisões, soubemos logo de início manter unidade moral; fosse qual fosse o seu
partido, os barões portugueses mostravam-se conformes, ao menos passivamente,
com o sistema que já então se podia classificar de política externa do país; e
os actos dos príncipes eram mais o reflexo de um espírito colectivo do que a
expressão de desígnios próprios .
Mas é outro o caminho sugerido por Oliveira Martins. Este fundamenta a
independência na vontade enérgica e na capacidade dos príncipes e barões . É a ambição individual destes que conduz à separação de Portugal da monarquia
leonesa: os condes defendiam o que julgavam sua propriedade .
Todavia, a esta tese simplista opõe Jaime Cortezão a tese geopolítica ou marítima. Nem a príncipes estrangeiros
ou a impulsos individuais deve Portugal a sua nacionalidade . É
a diferenciação geográfica, aliada à tipicidade do litoral, que dá uma feição
de povo ao agregado ali estabelecido. Clima diverso do do resto da Península;
abundância de largos estuários; funda penetração do oceano; existência de
portos fluviais muito no interior do território; apoio marítimo estimulando o
comércio transoceânico – constituem alguns dos factores fundamentais .
Ainda antes do Conde D. Henrique, foi-se estruturando um núcleo social,
unificado pela língua, e pronto a adquirir, pela sua arrumação através do
território, o carácter atlântico essencial à definição suprema da Nação: era a
marcha de um novo Estado no Ocidente da Península .
Desde o século XII, verifica-se um movimento de massa. Ocupa a população o
litoral utilizável. Desponta um género de vida nacional. Desenvolve-se a
actividade agrícola, e esta é a base do comércio marítimo. Ao fim do século
XIII, aparecem as primeiras tendências de expansão ultramarina; e o povo,
ciente da sua força e das suas virtudes, mostra-se capaz de participar na
direcção da vida colectiva . É
a actividade marítima e são os impulsos transoceânicos a darem vigor e unidade à história portuguesa. Esboçado um agregado nacional, acentua-se a tendência
para diferenciação .
Forma-se uma burguesia que se opõe à cisão no interior e a forças inimigas no
exterior; social, económica e culturalmente, vinca-se a individualização de um povo; a passagem dos Cruzados deu ímpeto irreprimível à expansão comercial na
direcção da Ásia e da África; e mais cedo do que muitos europeus, e como
elemento significativo, definiram os portugueses as noções de direito e seguro
marítimo, e outras normas jurídicas indispensáveis à actividade comercial e
navegação por mar .
De todos estes factores, aliás, mostrara já a administração romana uma presciência
misteriosa: organizara a atlantização
do povoamento e a sua unificação por uma linha dorsal no sentido do meridiano .
Se observarmos uma carta das estradas romanas, torna-se patente que a via
principal começava nas margens do Minho, perto do litoral; passava por Bracara
(Braga); cruzava o Douro em Gaia, a par do Porto; inflectia para Seminium
(Coimbra) e Conimbriga (Condeixa-a-velha); dirigia-se depois para Scalabis
(Santarém); e progredia para Olissipo (Lisboa), onde encontrava o seu termo.
Para o sul, projectava-se outra estrada de comunicação. Verifica-se, todavia,
profunda mudança no critério que presidira ao traçado da via do norte: esta
seguia próximo do litoral e corria paralelamente ao mar: mas a via ao sul do
Tejo abandonava por completo o mar e o litoral: penetrava para o interior da
terra: procurava as regiões do Guadiana: e atingia a costa meridional num ponto
muito para leste. Na verdade, os romanos fizeram de Setúbal o local de partida
da estrada do sul; e daquela povoação atravessava obliquamente para Pax Julia
(Beja) e continuava na mesma orientação até Mirtiles (Mértola); e só então
ganhava o mar junto a Vila Real de Santo António .
Este traçado não pode ter tido origem em singelo acaso: examinando-o,
impõe-se-nos uma conclusão: os romanos compreenderam que o povo situado entre o
Minho e o Tejo era diverso dos que habitavam o interior da Península: e que,
para a sua sobrevivência autónoma, lhe era indispensável alcançar o oceano na
costa sul, e isso ao longo de uma fronteira terrestre tão a oriente quanto
viável. Mas ainda uma outra circunstância deve prender a nossa atenção.
Daqueles núcleos populacionais irradiavam sistemas de estradas secundárias:
algumas destas tinham ligação para o interior: mas não existia qualquer via
principal no sentido leste-oeste e que se internasse na Península: e isto
significa que a rede de estradas, construída pelos romanos no território que seria
Portugal, estava praticamente desligada das regiões centrais: e decerto quererá
ainda dizer que aqueles entendiam dever o sistema rodoviário servir a população
localizada na faixa atlântica, e só essa, e em particular estabelecer a
intercomunicação entre os lugares marítimos. Sabe-se como em todos os tempos
foram as comunicações a base do progresso e da segurança de uma comunidade: e
esta concepção constituiu mesmo um dos grandes alicerces em que o Império
Romano firmou o seu poderio. E por aquela forma se definiram as virtualidades
de uma massa de terra diferenciada, e de características inerentes. Desta
maneira foram lançados os fundamentos de um agregado nacional autónomo, e
garantido o seu florescimento, cujo surto se iniciaria a partir do século XII.
Mas aquelas três teses não esgotam o problema das origens. Dois outros ângulos
de visão têm sido encarados. Temos, antes de mais, a tese internacionalista. A independência portuguesa seria produto de
uma equação internacional, de uma necessidade de equilíbrio europeu, que já
então se começava a sentir; e a ligação entre o Conde D. Henrique e algumas
ordens religiosas teria actuado naquele sentido, como um elemento impulsionador .
E temos por último a tese lusitana.
Funda-se sobretudo na tradição. Desde tempos remotos, mas sobretudo a partir do
século XVI, foram os lusitanos havidos como os mais próximos ascendentes dos
portugueses. Segundo Estrabão, eram «amigos
da liberdade». Ocupando a região entre Douro e Tejo, descendentes de celtas
ou autóctones, foram romanizados; mas não teriam perdido pelo facto a
individualidade de grande tribo, nem a autonomia como agregado social. Embora
se afigure que permanece nebulosa, estudos modernos vieram dar alguma
consistência para vincar a nossa diferenciação do resto da Península .
Mas todas as investigações comprovam sem dúvida um facto: a existência, desde o
século XII, de uma comunidade delimitada, com autonomia e unidade moral, e
apresentando tipicidade perante os demais povos da Península. Poderá dizer-se,
todavia, que o desenrolar da vida dessa comunidade empresta, talvez mais do que
a outras, algum fundamento à tese exposta e documentada por Cortezão.
|
Hispânia Visigótica |
Ao sentido de
comunidade nacional e às condições geográficas naturais – o mar, as vias
fluviais de penetração profunda, os portos numerosos, os largos estuários –
tinha de corresponder a criação de uma base territorial que assegurasse a
autonomia do agregado e o aproveitamento da sua localização, e permitisse ainda
o eventual surto transoceânico. De início por instinto talvez, e depois com
lúcida consciência, houve a percepção de que essa base territorial tinha de ser
protegida no leste e prolongada para o sul. Daqui as lutas com os vizinhos
peninsulares e, durante quase dois séculos, as guerras contra o Islão. Com
efeito, tratava-se de marcar a fronteira com os reinos cristãos ao norte e a
leste, e de procurar que o seu traçado fosse quanto possível favorável à
defesa; e ainda de ampliar a área política da comunidade até ao seu extremo
limite meridional. Por meados do século XII, quando D. Afonso I começa a sua
empresa político-militar, a provável fronteira terrestre do reino partia da foz
do Minho, e adoptava o curso deste até um ponto além de Melgaço; descia depois
obliquamente para o sul, até próximo do que é hoje a povoação de Lindoso;
inflectia então para leste, ao longo de um traçado irregular que corria ao
norte de Bragança, e ia encontrar o Douro na região em que este faz um ângulo
muito fechado, acima de Miranda; singrava pelo curso deste rio até à
confluência do Coa; daí prolongava-se para sul, passando ao largo de Trancoso e
Celorico da Beira; e em linha oblíqua para ocidente vinha findar de novo no
Atlântico, um pouco ao sul de Leiria. Deste perímetro partiu o príncipe
fundador. À parte incursões pela Galiza, e além da duvidosa posse temporária do
senhorio de Astorga e de um recontro em Cidade Rodrigo com o rei leonês, D. Afonso
I preocupou-se sobretudo, no plano da expansão territorial, com a marcha para o
sul. Não importa o pormenor, nem as vicissitudes dessa luta quase constante.
Alguns marcos, contudo, são de assinalar porque significativos: demonstram que
Afonso I e seus sucessores não se entregavam a uma aventura de guerrilheiros:
eram guiados, ao contrário, por um pensamento político-estratégico. As
primeiras avançadas para o sul fizeram-se ao longo da faixa marítima:
impunha-se conquistar posições que, pela sua localização e importância
populacional, representavam objectivos prioritários. Neste quadro, e
fortificada Leiria, surgia Santarém como essencial. Era «povoação principalíssima» ,
a que já os romanos atribuíram grande relevância; tinha em um «lugar alto e superior mui dilatados campos»;
era estimada pelos mouros «como força
principal e importante»; e possuía «fortificação da arte, multidão de
moradores e mais coisas notáveis» .
Em meados de Março de 1147, Afonso I assenhoreava-se de Santarém, que não mais
pertenceria aos sarracenos. Apresentava-se logo a seguir Lisboa, como alvo
precioso: pelo número de habitantes, pelo seu porto fluvial e marítimo, pela
sua posição central, pelo seu papel político, económico e militar no mundo
muçulmano. Era «sítio mui forte por
natureza, e cercado de firmes muros», e por isso «grandes dificuldades tiveram os nossos que vencer nesta empresa, e
houve nela grandes feitos de guerra» .
Não surpreende, portanto, que D. Afonso I considerasse escassos para o
cometimento os homens de armas que possuía, tanto mais que os mouros, decerto
cientes dos desígnios dos portugueses, deveriam estar acautelados; por isso tem
de considerar-se hábil golpe a utilização das armadas de Cruzados então nas águas do reino; e atendendo aos costumes da
época, ao estado de necessidade e ao valor do objectivo, não será lícito
censurar o infante pela ambiguidade com que conduziu as negociações com os
chefes cruzados, nem pelos massacres, assolação e saques que consentiu.
Recusada pelo bispo moçárabe e pelo alcaide mouro a capitulação pacífica, em
nome do rei proposta por D. João Peculiar, arcebispo de Braga, e por D. Pedro,
bispo do Porto, foi investida a cidade. Em fins de Outubro de 1147, no topo da
alcáçova do castelo, era erguida a cruz: pouco mais de sete meses haviam
decorrido desde a tomada de Santarém. À posse de Lisboa sucederam-se as de
Sintra, Palmela, Coruche; entretanto D. Afonso I fazia campanha para leste, ao
longo do vale do Tejo; e a fronteira fora empurrada muito para lá da povoação
da Idanha. Produz-se então uma viragem
profunda no pensamento político e na concepção estratégica do príncipe
português. Na verdade, se analisarmos as suas campanhas, vemos que abandona
por completo a orla marítima e que se entranha para o interior: torna-se
evidente que deseja chegar ao mar do sul: não na extremidade de Sagres, mas num ponto quanto possível para leste.
Aparece-nos assim nítida a sua intenção de conseguir três objectivos: isolar os
mouros do litoral; lançar-se para o sul ao longo de uma linha interior que,
alcançando o mar num ponto muito para oriente, permitisse ulteriormente o
domínio da costa meridional até Sagres; e, por último, prevenir qualquer avanço
de Castela para oeste, na suspeita justificada de que os castelhanos não
poderiam deixar de querer aproximar-se do Atlântico ao sul. Se acaso
conseguissem atingir esse alvo, os castelhanos teriam então cercado contra uma
única fronteira marítima – a do oeste – a comunidade que habitava entre Minho e
Tejo. Por isso, mais do que bater os mouros, à concepção estratégica de Afonso
I interessava evitar uma incursão de Castela para ocidente, em direcção ao
Atlântico pelo Algarve .
Na verdade, se empenhasse as suas forças ao longo da costa atlântica, nada
poderia opor à penetração dos castelhanos; e esta é que lhe importava acima de
tudo prevenir, embora deixando os mouros no oeste do Algarve para serem
reduzidos mais tarde. A esta concepção terão obedecido as suas incursões para o
interior; e por 1168, vinte anos depois de haver tomado Lisboa, Afonso I
dominava para além de Cáceres, Juromenha e Évora; e Alconchel, Moura e Serpa
estavam dentro do reino; mas o desastre de Badajoz significou o termo da sua
campanha para leste. Começavam os anos, por outro lado, a pesar sobre Afonso I;
os muçulmanos não se sentiam ainda vencidos e pelo sul eram constantes os
recontros e as incursões; e à morte do velho rei, puído por mil combates, a
fronteira de novo refluíra para o norte e quase tocava Alcácer e Évora. Com
oscilações episódicas, ao sabor da sorte vária, mantém-se a raia sensivelmente
por aquela linha até cerca do ano 1223. D. Sancho I, com a mesma visão de seu
pai, e idêntica concepção estratégica, fez uma incursão até Silves em 1189; mas
logo perdeu a cidade em 1191; e neste ano também os mouros reocuparam Alcácer e
Palmela. D. Afonso II, afadigado por negócios civis e sem ânimo militar,
limitou-se a mandar a sua peonagem a Navas de Tolosa, onde se cobriu de glória;
e cingiu-se à reconquista de Alcácer. Mas em D. Sancho II teve a marcha para o
sul um executante decisivo. A partir de 1226, e sem prejuízo da defesa perante
Leão e Castela, aquela é prosseguida sistematicamente; e, sempre dentro da
concepção político-estratégica que já norteara Afonso I, o rei Sancho II vai
procurar no sul um ponto tão a leste quanto lhe foi viável. Não segue a orla
atlântica; abandona aos mouros todo o triângulo compreendido entre uma linha
que vai de Alcácer a Faro e o mar; procura a região do Guadiana; e descendo por
Moura, Beja, Serpa, Mértola e Ayamonte cai sobre Tavira, que conquista em 1238.
Neste passo, importa fazer uma observação. Os romanos haviam lançado a estrada
lusitana no sentido norte-sul, de Braga a Lisboa; e, como se viu, recomeçava em
Setúbal e atingia Alcácer; e depois, abandonando a orla marítima, inflectia
para o interior, seguindo por Beja e Mértola até um local perto de Vila Real de
Santo António. Essa via era autónoma; e, embora se lhe fossem juntar vias
subsidiárias, não estava ligada ao interior da Península por qualquer outra de importância. Era a independência do sistema rodoviário lusitano, que pretendia corresponder
às necessidades do agregado da faixa oceânica, e a nenhum outro. Pois bem: os reis de Portugal, no seu progresso para o
sul, e embora decerto desconhecessem a concepção romana de séculos atrás,
orientaram-se exactamente na mesma direcção escolhida pelos romanos e, como
estes, procuraram atingir as regiões do Guadiana e integrá-las na província
lusitana. Esta coincidência de concepções geopolíticas e estratégicas, decerto
ignorando os dos séculos XII e XIII o que neste particular fora pensado e feito
mil anos antes, não pode ter existido por acaso ou milagre: foi o resultado de
factores que se impuseram, num tempo e noutro, com igual força. E havendo por
aquele modo assegurado a fronteira leste, ocuparam-se os monarcas portugueses
na eliminação da bolsa triangular ainda em poder dos sarracenos no extremo
sudoeste do território. Deve-se a D. Afonso III o fulgor com que realizou a
avançada. Apoiado no povo e nos seus homens de armas, e sem concurso de prelados ou nobres, o príncipe lança
a sua operação nos começos de 1249. Rapidamente toma Faro, Albufeira, Silves e
outras cidades; e por 1250 o rei estaciona pelo Algarve e reparte as
conquistas pelos seus capitães e pelas ordens religiosas. Estava firmado o
senhorio português. Mas foi contestado por Castela, que rompeu hostilidades:
cessaram pelo ajuste de uma trégua de quarenta anos que foi quebrada ao cabo de
escassos dezoito meses. Prolongou-se uma luta indecisa, e por intervenção
pontifícia foi negociado entre Portugal e Castela um pacto: este reconhecia a
D. Afonso III e sucessores o domínio do Algarve; reservava para Castela o
usufruto; e do acordo fazia parte o casamento da infanta Beatriz, filha do rei
castelhano, com o rei português. Mas Afonso X de Castela, por meados de 1253, nomeou um bispo para a diocese de
Silves, e deste fez outorga ao prelado em doação perpétua; e no facto viu D.
Afonso III uma usurpação do senhorio. Reagiu o príncipe português, que reclamou
perante Castela e tratou deste particular em Roma. Prolongou-se o debate, e por
1263 Afonso X resolveu fazer pazes com o genro; e no ano seguinte era assinada
uma convenção que transferiu para Portugal todos os direitos sobre o Algarve.
Duas ressalvas limitavam ainda a soberania plena: o compromisso de fornecer
cinquenta homens de lança quando o castelhano solicitasse, e o direito de este
ocupar dois fortes no Algarve. Era a paz; mas D. Afonso III não perdeu de vista
a necessidade de se libertar daquelas duas servidões. Entretanto, o infante
Dinis, filho de Afonso III e Beatriz, atingiu os sete anos; e acompanhado de
sua mãe passou a Sevilha para conhecer o avô e ser por este armado cavaleiro.
Afonso X acolheu o neto com brilho e pompa, e teve um rasgo de galhardia: deu
por findo o compromisso de cinquenta homens de lança, abandonou os dois
castelos algarvios, reafirmou o ajuste anterior quanto à delimitação dos dois
reinos. Do mesmo passo, desiste o rei português dos direitos a território além do
Guadiana. O título de Rei do Algarve foi abolido na coroa castelhana, e
inscreveu-o na coroa portuguesa. Mas foram precisas mais três décadas para se
chegar à demarcação territorial definitiva. Por 1295, D. Dinis declarou guerra
a Castela: pretendia com bom fundamento reivindicar alguns direitos: e também,
se viável e em concerto com outras monarquias peninsulares, provocar o
desmembramento de Leão e Castela. Dois anos depois, concluía-se a paz, por
iniciativa desta: eram entregues a Portugal as vilas de Serpa e Moura e seus termos;
eram-lhe cedidas Olivença, Campo Maior e outros lugares; e o rei castelhano desistia
das suas ambições sobre Vila Maior, Almeida, Monforte, Castelo Melhor e outras
povoações, e seus termos. Foi o tratado de Alcanises, de 12 de Setembro de
1297. Desde esse ano remoto, tem a nação portuguesa, na Europa, ocupado sempre
o mesmo espaço territorial; e «das nações
europeias, nenhuma outra poderá ufanar-se desse título de glória» .
Durante cinco
décadas, dominou a personalidade de D. Afonso I a vida e o pensamento do novo
reino; e durante mais um século impuseram-se aos sucessores as tradições
guerreiras, o pensamento político, a concepção estratégica deixada pelo
primeiro rei. Parece que este aspecto nem sempre tem sido vincado: pelo menos é
desprezado por alguns. Se nos fiarmos em Oliveira Martins, Afonso I aparece-nos
como guerrilheiro audaz e bravio, astuto nas emboscadas, bárbaro nos sentimentos,
sem nobreza e sem brio, e de estreita visão. O infante foi com efeito impiedoso
para sua mãe; ardiloso no combate; fugidio e ambíguo nas negociações com
amigos, aliados e inimigos; e sinistra e friamente sangrento quando prostrava perante
si o sarraceno. Mas será severo o retrato se desprendido da rispidez da vida,
do tosco dos costumes, da rudeza da época. Porque o príncipe transcendeu-se a
si próprio e ao seu tempo. Soube ter consciência de que existia um sentimento
colectivo português, de que era depositário responsável, e que o
apoiava na sua empresa; compreendeu que servia um espírito nacional; e que
cumpria dar a este um conteúdo e uma missão .
Teve a percepção lúcida dos limites geográficos que eram indispensáveis se o
reino houvesse de manter-se independente e constituir base de outros desígnios;
e por isso, em todo o seu duradouro reinado, sofreu obcecado com a marcha para
o sul, de harmonia com um pensamento político-estratégico realista. Sentiu-se bem
só e bem autónomo. Contra os árabes, nunca pediu socorro ou ajuda a outros
príncipes peninsulares. A estes considerou-os, além de inimigos intermitentes,
estranhos também; jamais frequentou a corte do imperador ;
esteve sempre devoluto o seu lugar nas assembleias políticas das monarquias
peninsulares; e os pendões de Portugal batiam-se isoladamente e não eram desfraldados
contra o mouro a par dos de Leão, Astúrias, Toledo ou Castela .
Possuía D. Afonso I a noção de que se impunha, para que vingasse a sua obra,
firmar um Estado permanente, e unificado. Tinha, com o seu chanceler Alberto,
suficiente entendimento do direito visigótico e do direito público leonês: e um
e outro estatuíam que o rei, na pureza dos princípios, emergia de eleição
nacional .
O infante português tinha a certeza íntima de que fundara uma nação; usava com
aplauso dos seus homens de armas e do povo o título de rei; mas nunca houvera
eleição formal; e não tinha por isso a segurança de que a sua legitimidade se
transmitisse sem sobressaltos e sem lutas, que poderiam ameaçar, se não destruir, a fragilidade da nova
monarquia. Afonso I moldara um reino e erguera um Estado: compreendeu que tinha
de fundar uma dinastia também. Precisava de encontrar um amparo que o defendesse dos perigos que adivinhava. Apelou para a Sé
Apostólica: o Papa era, pelos meados do século XII, a mais alta autoridade de
âmbito internacional: e a jurisprudência política dos pontificados superava a
do direito público visigótico ou leonês. Entregou o príncipe o seu trono à
protecção de Roma: e contra o reconhecimento do reino de Portugal, do Estado
português e de uma dinastia nacional prometeu à Sé romana, além do acatamento
da sua eminente soberania espiritual, um censo anual de quatro onças de ouro. Era
Papa Inocêncio II: e era o ano de 1143. Mas a Santa Sé, sem embargo dos
esforços do Cardeal Guido e de D. João Peculiar ,
não soube ver nem sentir a raiz de um fenómeno político-sociológico que se
produzira na faixa atlântica da Península; não compreendeu que uma massa
popular se organizara e aglutinara para formar um povo; e não se apercebeu de
que as suas condições geográficas, climáticas, atlânticas, davam consistência a
esse povo e lhe consentiriam no futuro missões mais largas. Ao príncipe
responderam os pontífices louvando a homenagem, desculpando-o de não ir
pessoalmente a Roma e enviando as suas bênçãos; e insistiam em que continuasse
no seu zelo contra o Islão e com sacrifícios conquistasse mais e mais infiéis; mas
abstinham-se de o tratar por rei; e ao reino davam o qualificativo de terra .
Durante trinta e seis anos, e perante leoneses e castelhanos e perante sarracenos,
permaneceu só, isolado e sem amparo o infante português. Ao longo dessas quase
quatro décadas, e com firme apoio das classes populares, sustentou aquele os
interesses puramente portugueses, sem curar se lhe faltava o que na altura se
considerava como constituindo a legitimação internacional desses interesses,
nem permitir que essa omissão lhe entibiasse o ânimo para sua defesa. Apenas em
1179 reconheceu o Papa Alexandre III que os portugueses eram um povo, e que
estava independente o seu reino, e que se deviam haver por seus legítimos reis
o príncipe e seus sucessores. Obter este reconhecimento foi acto de grande
política, e de muita valia: mas sentiram-lhe o alto preço os herdeiros de
Afonso I .
(In Franco Nogueira, As Crises e os Homens, Livraria
Civilização Editora, 2.ª edição, 2000, pp. 21-31).