Escrito por Olavo de Carvalho
«Desde suas primeiras experiências de
cooptação de intelectuais, Willi Münzenberg, o executivo principal do plano
Stalin-Radek, ficou impressionado com a facilidade com que suas
palavras-de-ordem se disseminavam entre os intelectuais - uma docilidade
espontânea e inconsciente que jamais a propaganda comunista havia encontrado
entre os proletários. Entre os letrados a ação comunista era tão fértil que
Münzenberg a chamava “criação de coelhos”. Pode parecer estranho que logo as
camadas “mais esclarecidas” sejam assim fáceis de manipular, mas o fenômeno tem
uma explicação bem simples. Se as pessoas menos cultas resistem à manipulação
porque são desconfiadas da novidade e apegadas a costumes tradicionais, os
intelectuais capazes de iniciativa pessoal originária, de resposta direta e
criativa aos dados da experiência real são muito raros: à maioria, que já não
conta com a tradição para guiá-la nem tem forças para uma reação personalizada,
só resta seguir a moda do dia. Nove décimos da atividade mental das classes
letradas são imitação, macaquice, eco passivo de palavras-de-ordem que ninguém
sabe de onde vieram nem para onde levam.
Essa proporção tende a aumentar na
medida mesma da ampliação das oportunidades de acesso às profissões
intelectuais, cada vez mais abertas a multidões de incompetentes - o
“proletariado intelectual” como o chamava Otto Maria Carpeaux - cujo único
teste para a admissão no grêmio é, justamente, a facilidade de impregnação dos cacoetes
mentais mais típicos desse grupo social. Daí a proliferação de tantas modas
intelectuais, artísticas e políticas cuja absurdidade grotesca é claramente
percebida pelo homem das ruas, mas que aos de dentro do círculo parecem a
encarnação mais pura do elevado e do sublime.»
Olavo
de Carvalho («O guia genial dos povos»).
«Espero o livro em que o marxismo de
Estaline apareça inserido na história da Rússia. O que em Estaline é
verdadeiramente russo é o que nele é verdadeiramente forte, e não o que nele é
marxista.»
Ortega
y Gasset («A Revolta das Massas»).
«Das várias formas de escravidão a que o
homem se sujeita pelo culto dos sentimentos, a pior é a escravidão às palavras.
Por meio do falatório em torno o homem pode ser adestrado para ter certos
sentimentos e emoções à simples audição de determinadas palavras,
independentemente dos fatos e do contexto. Paz e guerra, por exemplo, suscitam
reações automáticas. Por isso as massas imaturas aceitam com a maior
credulidade os novos regimes de governo que prometem acabar com as guerras e
instaurar a paz. Mas é só nominalmente que guerra significa morticínio e paz
significa tranqüilidade e segurança. As guerras, no século XX, mataram 70
milhões de pessoas. É muita gente. Mas 180 milhões, mais que o dobro disso,
foram mortos por seus próprios governos, em tempo de paz e em nome da paz. O
homem maduro sabe que as relações entre guerra e paz são ambíguas, que só um
exame criterioso da situação concreta permite discernir a dosagem do bem e do
mal misturados em cada uma delas a cada momento. Ele sabe que a Pomba da Paz,
oferecida à adoração infantil nas escolas, foi um desenho encomendado a Pablo
Picasso por Josef Stalin com o intuito de fazer com que o símbolo da Pax
soviética - a ordem social totalitária construída sobre trabalho escravo,
prisões em massa e genocídio - se sobrepusesse, na imaginação dos povos, ao
símbolo cristão do Espírito Santo. O homem maduro sabe que, tanto quanto a
Pomba da Paz, também manifestos pela paz, discursos pela paz e até missas pela
paz são, muitas vezes, blasfêmias e armas de guerra. No dicionário, os sentidos
da guerra e da paz estão nitidamente distintos, mas o homem maduro não se
refugia da complexidade das coisas no apelo pueril a absolutos verbais.
Igualdade,
liberdade, direito, ordem, segurança e milhares de outras palavras foram também
incutidas na mente das massas como programas de computador para acionar nelas
automaticamente as emoções desejadas pelo programador, fazendo com que amem o
que deveriam odiar e odeiem o que deveriam amar. Até a esperança, chave da fé e
da caridade, se torna aí uma arma contra o espírito, quando se coisifica na
expectativa de um mundo melhor, de uma sociedade mais justa ou, no fim das
contas, de ganhar mais dinheiro. Jesus deixou claro que não era nenhuma dessas
esperanças a que Ele trazia. Era a esperança de fazer de cada um de nós um novo
Cristo, encarnação e testemunha do espírito. Quem aceitar menos que isso só
ganhará, em vez da paz de Cristo, uma bandeirinha da ONU com a pomba de Stalin.»
Olavo
de Carvalho («Jesus e a Pomba de Stalin»).
«Olavo foi um gigante na luta pela
liberdade e um farol para milhões de brasileiros. Seu exemplo e seus
ensinamentos nos marcarão para sempre. Que Deus o receba na sua infinita bondade
e misericórdia, bem como conforte sua família.»
Jair Bolsonaro
«O
niilismo apareceu entre nós porque todos
nós somos niilistas! Nada mais cómico do que os cuidados dos nossos sábios
perdendo tempo a pesquisar as origens dos niilistas! Os niilistas não nos
vieram de parte alguma – estiveram sempre connosco, em nós e entre nós.»
Fiódor Dostoiévski
«O
bolchevismo, como realidade, nada tem que ver com o marxismo.»
Hermann von Keyserling
«Lenine
gostava de citar a sentença de Heráclito, fazendo-a sua: “Não esqueceis que a
guerra é a rainha do universo!”»
Henri Massis
«Se fosse
possível meter um desejo russo debaixo de uma fortaleza, a fortaleza iria
pelos ares.»
Joseph de
Maistre
«Todos
os homens devem tornar-se russos, antes de mais nada. Já que o cosmopolitismo é
uma ideia nacional russa, importa em primeiro lugar que cada homem venha a ser
russo.»
Fiódor
Dostoiévski
«Desconhecemos o silogismo do Ocidente.
As melhores ideias, por falta de ligação ou de sequência, paralisam os nossos
cérebros, deslumbrantemente estéreis… Nas nossas cabeças absolutamente nada
existe que tenha carácter geral – nelas tudo é individual, flutuante e
incompleto.»
Piotr Tchaadaïev
«Consciente da sua originalidade
própria de que, como dissemos, tem uma noção messiânica, a Rússia bolchevista
julga-se anunciadora da regeneração do mundo. Para melhor anular as
contradições que a minam, começa por querer destruir todos os valores que
fizeram aquilo que somos. A cultura helénica, o mundo latino, a civilização
cristã nunca tiveram inimigo mais lúcido nem mais implacável do que o que se
apoia nos contrafortes dos Urais. E é por isso, em primeiro lugar, que o
bolchevismo constitui um perigo – na medida, exactamente, em que assenta sobre
um princípio anti-ocidental, anti-humano, na medida em que é o lógico e
resoluto antagonista da grande tradição espiritual de que somos os mantenedores.
Bolchevista ou eslavófila, pois – “há
no bolchevismo integral grande número de ideias eslavófilas” [Ustrialoff] – é
no velho citismo que continua a alimentar-se essa ideologia em que se exalta o
ardor virgem de um povo que afirma a superioridade da sua frescura intacta
sobre o esgotamento imputado a todas as raças instruídas, cultas, formadas. “Sim,
somos citas” – apregoou A. Block - "sim, somos asiáticos, de olhos turvos e
ávidos!” É esse citismo que constitui o fundo de todas as aspirações nacionais
russas e que alicerça a inimizade irredutível, o antagonismo filosófico e histórico
da Rússia e da Europa. “Entre ela e nós” – diz Tiucheff – “não pode haver
negociações nem armistício. A vida de uma é a morte da outra". E afirma
seguidamente que “o citismo russo reduzirá a cinzas o universo, arrancará a
máscara a Atlante, esse burguesote do mundo; porque, num furação de chamas, por
entre a tormenta, a boa nova vai alastrar” – isto é, a nova verdade revolucionária
dos citas, única “verdade cósmica” destinada a destruir “a Europa estatista e
materialista”
Por toda a parte se topam ao serviço da
violência as mesmas declamações contra “o Ocidente apodrecido” – lugar-comum
dos intelectuais russos -, o mesmo desejo de regeneração universal baseado na
convicção de que o povo russo é o corpo de Deus, o povo deífico, e também
aquela forma de messianismo que Karl Marx ironicamente definia “a fé na
renovação da Europa por meio do cnute e da mistura do sangue europeu com o sangue
calmuco.”»
Henri
Massis
«Em contacto pelas suas fronteiras com
os muçulmanos da Turquia, da Ásia Menor, da Pérsia, do Afeganistão, em contacto
com os caminhos da Índia, com a Mongólia, o Tibete e a China, a Rússia dos
Sovietes, depois do malogro do seu assalto contra a Europa, bateu em retirada
para a Ásia onde preparou nova ofensiva contra a Europa: a ofensiva do mundo
asiático.»
Albert
Sarraut
«Nunca marchámos com os outros povos, não pertencemos a nenhuma das
outras famílias do género humano. Não somos nem do Oriente nem do Ocidente, nem
nos dizem respeito as tradições de um ou do outro.»
Piotr
Tchaadaïev
«Não nos considereis filhos da Europa.
A Europa não é a nossa mãe… A senda do nosso evidente destino dirige-se para o
Oriente… A Rússia cometeu o pecado de menosprezar o seu orientalismo e de se
deixar ludibriar por ilusões ocidentais».
Príncipe
Trubetzkoy
«Ainda nos encontramos no período gaseiforme.»
Ivan
Turgueniev
«Vindos ao mundo como filhos
ilegítimos, sem herança e sem ligação com os homens que nos precederam à face
da terra, nada temos nos nossos corações dos ensinamentos anteriores às nossas
próprias experiências. O que é hábito e instinto nos outros povos, temos nós de
meter às marteladas nas nossas cabeças. Somos a bem dizer, estrangeiros a nós
próprios. Marchamos no tempo por forma tão singular que, à medida do nosso
avanço, a véspera foge-nos para sempre – consequência natural duma cultura de
importação e de imitação. Entre nós não há desenvolvimento íntimo, progressão
natural; as ideias novas varrem as antigas, porque não provêm delas: surgem não
se sabe donde. Porque não acolhemos senão ideias feitas, não marca as nossas
inteligências o sulco inapagável que todo o movimento progressivo grava nos
espíritos e que faz a sua força. Crescemos, mas não amadurecemos.»
Piotr
Tchaadaïev
«(...) os Russos tinham sido levados
para o cristianismo pela mão de Bizâncio: é natural, pois, que fiquem
desconfiando da autoridade do cristianismo ocidental.
As relações da Rússia com o Ocidente
continuam, porém, durante algum tempo, e só a queda de Bizâncio e a ideia da “Terceira
Roma”, marcam à Rússia o papel e o dever de porta-estandarte da verdade
ortodoxa.
(...) É com o czares de Moscovo que a
Rússia proclama a autocefalia da sua Igreja e refaz, como “Terceira Roma” o
centro da verdadeira fé ortodoxa.
Roma traiu; Bizâncio, segunda Roma,
tombou por castigo de Deus; fica de pé a “Terceira Roma”, cidade guerreira e
mística da pureza da Fé.»
Leonardo Coimbra
«Quando o ensino público, de estrutura positivista, parece organizado no propósito de oposição ao catecismo – la vacine de la réligion, no dizer de Napoleão I – para que de sucessivos contrastes entre a razão e a fé o estudante escolha livremente um dos caminhos, é sempre instrutivo verificar o drama intelectual e sentimental dos pensadores que finalmente ingressam na zona visível da Igreja Católica, ou que a ela regressam depois de muitos desvarios. Exemplos como os de Newman, Soloviev e Leonardo Coimbra deveriam advertir as autoridades eclesiásticas de quantos erros vigoram ainda na preparação intelectual do nosso clero e na doutrina esquematizada para instrução dos fiéis. Nunca será demais estudar as características do pensamento português, antes de propor no ensino eclesiástico uma sistematização teológica elaborada Além-Pirenéus, ou, por assim dizer, ultramontana.»
Álvaro Ribeiro («Soloviev»).
«Há uma cultura que não temos
necessidade de ir buscar à nascente ocidental, porque é de raiz russa… Afirmo
que o nosso povo se cultivou há muito, desde que assimilou a essência da
doutrina cristã. Objectar-me-ão: o povo russo não conhece a doutrina cristã e
não ouve qualquer prédica. Trata-se, porém, de uma objecção vazia de sentido: o
povo russo sabe tudo, tudo o que é preciso saber, embora lhe possa acontecer
ficar reprovado num exame de catecismo. Instruiu-se nas igrejas onde, durante
séculos, ouviu orações e hinos que valem mais do que os sermões.»
Fiódor
Dostoiévski
«Nem pela originalidade do seu carácter
ou da sua obra, e ainda menos pela sua influência na história ou na
civilização, podem os santos russos igualar-se aos santos da Igreja latina ou
sequer aos de uma só nação católica como a Itália, a França, a Espanha. Em vão
se procuraria entre eles qualquer figura para opor a um Gregório VII ou a São Bernardo, a um Tomás de Aquino, a um Francisco de Assis, a Francisco de Sales
ou a um Vicente de Paula.»
A. A. Leroy-Beaulieu
«O clero russo tem sempre os olhos
postos no Oriente e nunca quis aceitar a sua europeização.»
Georgi Plekhanov
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Grigori Yefimovich Rasputin
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«O camponês russo está mais próximo
do chinês, do anacoreta tibetano, do pária hindu, do que do camponês europeu.»
Brian-Chaninov
«Não foi a necessidade de se unirem para
melhor enfrentarem a luta, mas o amor da solidão, a renúncia ao mundo e aos
seus combates que povoaram outrora os inumeráveis mosteiros da Rússia. Muitos,
talvez a maior parte dos monges russos não tinham em vista a actividade
intelectual, nem o trabalho manual, nem a caridade, nem o apostolado; pareciam
muito mais próximos dos lamas tibetanos do que dos filhos de São Domingos ou de
São Bento. Por isso a Rússia não produziu nada que se possa comparar às grandes
figuras de monges pacíficos ou guerreiros, homens de acção, escritores e até
governantes, que tanto influíram no mundo latino. A Rússia teve monges mas não
teve ordens religiosas.»
A.
Leroy-Beaulieu
«Os eremitas iam em ascese até
mortificações inverosímeis; mas, em regra, esta ascese era simples
mortificação, sem o destino de procurar a verdadeira mística.
A ascética por si, a penitência por si,
podem até ser formas sádicas da sensibilidade – só terão um sentido superior,
quando são meios, por vezes até necessários, para a mística.
A ascética russa é essencialmente
mortificação, remorso penitente, remédio de desespero até; raras vezes poderá
ser catarse, via purgativa, caminho de via unitiva, porque esta, sem graça
especial, exige uma doutrina, uma exploração das riquezas dogmáticas, que faltou
quase sempre no cristianismo russo.»
Leonardo Coimbra
«Diz-se que o povo russo conhece mal o
Evangelho, ignora as regras fundamentais da fé! Sem dúvida; mas conhece Cristo
e trá-lo no seu coração desde sempre… Será possível conhecer o verdadeiro
Cristo sem conhecer a doutrina? Essa é outra questão. O conhecimento de Cristo
pelo coração está patente, porém, no nosso povo que se orgulha das suas crenças
ortodoxas, isto é, de ser o que pratica a religião de Cristo com mais verdade,
com mais ortodoxia. Repito: pode salvar-se muita coisa inconscientemente.»
Fiódor
Dostoiévski
«Soloviev discute a situação da espécie
humana na escala zoológica, demonstra a relativa infecundidade dos animais
superiores, e anula a tese de Schopenhauer sobre a astúcia do génio da espécie.
O erro materialista consiste em pretender subsumir o amor no instinto de
produção. A atracção sexual – de um sexo pelo outro – há-de ser digna de mais
alto grau de inteligibilidade. Demonstra depois Soloviev que o amor humano se
caracteriza pela eleição de uma pessoa de outro sexo, por uma fidelidade de
pensamento, de sentimento e de comportamento que chega a parecer obsessiva e
até patológica, enfim por uma série de atributos reconhecidos pelos literatos
mas por vezes negados pelos cientistas. Nos lúcidos comentários aos estudos de
Kraft Ebbing e Binet sobre as aberrações do instinto sexual, que contrariam e
desmentem a astúcia do génio da espécie, o arguto filósofo eslavo de certo modo
antecede a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria do século XX. A medicina
psicossomática veio comprovar que a fenomenologia do amor, mais afectiva do que
instintiva, apela por uma ontologia do amor, e quem diz ontologia está prestes
a dizer teologia.
O amor humano caracteriza-se pela
predilecção e pela fidelidade, e ainda quando tais características não se
apresentem com inteira pureza ou não se realizem na totalidade – conforme se
pode alegar com a variedade das observações empíricas e com as variantes das
narrativas literárias –, certo é que há no amor uma inegável tendência para a
monogamia virtual. Soloviev nos seus termos diz que a verdade do amor está na
realização da individualidade infinita, da imortalidade da carne redimida, da
primitiva santidade de Adão à imagem e semelhança de Deus.
Não discutiremos a teologia do
matrimónio, nem a liturgia do matrimónio, que estariam em coerência com a
doutrina de Soloviev. Elas adoptam por outro ponto de partida um texto do Novo Testamento para glosar o paralelismo
simbólico da relação de Deus com o Universo, de Cristo com a Igreja, e do Homem
com a Mulher. Estas três relações correlacionam-se numa só analogia cuja
encarnação doutrinal floresceu ao calor da Igreja Ortodoxa; mas é ainda difícil
determinar em que medida será lícito expandi-la nos quadros mais lógicos da
Igreja Católica.»
Álvaro Ribeiro («Soloviev»).
Três
projetos de poder global em disputa
Palavras mudam de
sentido, de peso e de valor conforme as situações de discurso. Ao entrar neste
debate, devo esclarecer antes de tudo que não se trata de um debate de maneira
alguma. A idéia mesma de debate pressupõe tanto uma simetria oposta entre os contendores,
do ponto de vista das suas convicções, quanto alguma simetria direta dos seus
respectivos estatutos sócio-profissionais: intelectuais discutem com
intelectuais, políticos com políticos, educadores com educadores, pregadores da
religião com pregadores do ateísmo, e assim por diante.
Quanto às convicções,
se por esse termo entendemos tão-somente afirmações gerais sobre a estrutura da
realidade, as minhas não diferem das do Prof. Dugin em muitos pontos
essenciais. Ele crê em Deus? Eu também. Ele acha viável uma metafísica do
absoluto? Eu também. Ele aposta num sentido da vida? Eu também. Ele entende as
tradições, a pátria, a família como valores que devem ser preservados acima de
supostas conveniências econômico-administrativas? Eu também. Ele vê com horror
o projeto globalista dos Rockefellers e Soros? Eu também. Não há como articular
um debate entre pessoas que estão de acordo.
Do ponto-de-vista das
posições reais que ocupamos na sociedade, ao contrário, nossas diferenças são
tantas, tão abissais e tão irredutíveis que a proposta mesma de colocar-nos
face a face é de uma incongruência um tanto cômica. Eu sou apenas um filósofo,
escritor e professor empenhado na busca do que me parece ser a verdade e na
educação de um círculo de pessoas que têm a amabilidade de prestar atenção ao
que digo. Nem essas pessoas nem eu mesmo exercemos qualquer cargo público. Não
temos nenhuma influência na política nacional, menos ainda mundial. Não temos
sequer a ambição – muito menos um projeto explícito – de mudar o curso da
História, seja ele qual for. Nossa única esperança é conhecer a realidade até a
medida máxima das nossas forças e um dia deixar esta vida cientes de que não
vivemos de ilusões e auto-enganos, não nos deixamos enganar e corromper pelo
Príncipe deste Mundo nem pelas promessas dos ideólogos, servos dele.
Na hierarquia do poder
vigente no meu país, minha opinião não conta para nada, exceto talvez como
anti-exemplo e encarnação do mal absoluto, o que muito me satisfaz. No meu país
de residência, o governo me considera, na mais hiperbólica das hipóteses, um
excêntrico inofensivo. Nenhum partido político, movimento de massas,
instituição governamental, igreja ou seita religiosa me tem na conta de seu
mentor, de modo que posso opinar à vontade, e mudar de opinião quantas vezes
bem me pareça, sem que isto tenha conseqüências práticas devastadoras para além
da minha modesta esfera de existência pessoal.
Já o Prof. Dugin, filho
de um oficial da KGB e mentor político de um homem que é a própria KGB
encarnada, é o criador e orientador de um dos planos geopolíticos mais
abrangentes e ambiciosos de todos os tempos – plano adotado e seguido o mais
fielmente possível por uma nação que tem o maior exército do mundo, o mais
eficiente e ousado serviço secreto e uma rede de alianças que se estende por
quatro continentes. Dizer que o Prof. Dugin está no centro e no topo do poder é
uma simples questão de realismo. Para realizar seus planos, ele conta com o
braço armado de Vladimir Putin, os exércitos da Rússia e da China e todas as
organizações terroristas do Oriente Médio, além de praticamente todos os
movimentos esquerdistas, fascistas e neonazistas que hoje se colocam sob a
bandeira do seu projeto “Eurasiano”. Eu, além de não ter plano nenhum nem mesmo
para a minha própria aposentadoria, conto apenas, em matéria de recursos
bélicos, com o meu cachorro Big Mac e uma velha espingarda de caça.
Essa tremenda diferença
existencial, que as fotos anexas ilustram, faz com que nossas opiniões, mesmo
quando suas expressões verbais coincidem letra por letra, acabem significando
coisas totalmente diversas no quadro de nossas metas respectivas. As respostas
às perguntas que inspiram este debate mostrarão isso, espero, tão claramente
quanto as fotos.
As perguntas são duas:
quais são os atores em cena e qual a posição dos EUA no cenário?
Quanto à primeira
pergunta: descontado o cristianismo católico e protestante, do qual falarei
mais tarde, as forças históricas que hoje disputam o poder no mundo
articulam-se em três projetos de dominação global, que vou denominar provisoriamente
“russo-chinês”, “ocidental” (às vezes chamado erroneamente “anglo-americano”) e
“islâmico”.
Cada um tem uma
história bem documentada, mostrando suas origens remotas, as transformações que
sofreu ao longo do tempo e o estado atual da sua implementação.
Os agentes que hoje os
personificam são respectivamente:
1. A elite governante
da Rússia e da China, especialmente os serviços secretos desses dois países.
2. A elite financeira
ocidental, tal como representada especialmente no Clube Bilderberg, no Council
on Foreign Relations (CFR) e na Comissão Trilateral.
3. A Fraternidade
Islâmica, as lideranças religiosas de vários países islâmicos e também alguns governos
de países muçulmanos.
Desses três agentes, só
o primeiro pode ser concebido em termos estritamente geopolíticos, já que seus
planos e ações correspondem a interesses nacionais e regionais bem definidos. O
segundo, que está mais avançado na consecução de seus planos de governo
mundial, coloca-se explicitamente acima de quaisquer interesses nacionais,
inclusive os dos países onde se originou e que lhe servem de base de operações.
No terceiro, eventuais conflitos de interesses entre os governos nacionais e o
objetivo maior do Califado Universal acabam sempre resolvidos em favor deste último,
que embora só exista atualmente como ideal tem sua autoridade simbólica fundada
em mandamentos corânicos que nenhum governo islâmico ousaria contrariar de
frente.
As concepções de poder
global que esses três agentes se esforçam para realizar são muito diferentes
entre si porque brotam de inspirações ideológicas heterogêneas e às vezes
incompatíveis.
Não se trata, portanto,
de forças similares, de espécies do mesmo gênero. Não lutam pelos mesmos
objetivos e, quando ocasionalmente recorrem às mesmas armas (por exemplo, a
guerra econômica), fazem-no em contextos estratégicos diferentes, onde o
emprego dessas armas não atende necessariamente aos mesmos objetivos.
Embora nominalmente as
relações entre eles sejam de competição e disputa, às vezes até militar,
existem imensas zonas de fusão e colaboração, ainda que móveis e cambiantes.
Este fenômeno desorienta os observadores, produzindo toda sorte de
interpretações deslocadas e fantasiosas, algumas sob a forma de “teorias da
conspiração”, outras como contestações soi disant “realistas” e “científicas”
dessas teorias.
Boa parte da
nebulosidade do quadro mundial é produzida por um fator mais ou menos
constante: cada um dos três agentes tende a interpretar nos seus próprios
termos os planos e ações dos outros dois, em parte para fins de propaganda, em
parte por genuína incompreensão.
As análises
estratégicas de parte a parte refletem, cada uma, o viés ideológico que lhe é
próprio. Ainda que tentando levar em conta a totalidade dos fatores
disponíveis, o esquema russo-chinês privilegia o ponto de vista geopolítico e
militar, o ocidental o ponto de vista econômico, o islâmico a disputa de
religiões.
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Alexandre Dugin
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Essa diferença reflete,
por sua vez, a composição sociológica das classes dominantes nas áreas
geográficas respectivas:
1) Oriunda da
Nomenklatura comunista, a classe dominante russo-chinesa compõe-se
essencialmente de burocratas, agentes dos serviços de inteligência e oficiais
militares.
2) O predomínio dos
financistas e banqueiros internacionais no establishment ocidental é demasiado
conhecido para que seja necessário insistir sobre isso.
3) Nos vários países do
complexo islâmico, a autoridade do governante depende substancialmente da
aprovação da umma – a comunidade multitudinária dos intérpretes categorizados
da religião tradicional. Embora haja ali uma grande variedade de situações
internas, não é exagerado descrever como teocrática a estrutura do poder
dominante. Assim, pela primeira vez na história do mundo, as três modalidades
essenciais do poder – político-militar, econômico e religioso – se encontram
personificadas em blocos supranacionais distintos, cada qual com seus planos de
dominação mundial e seus modos de ação peculiares. Isso não quer dizer que cada
um deles não atue em todos os fronts, mas apenas que suas respectivas visões
históricas e estratégicas são delimitadas, em última instância, pela modalidade
de poder que representam. Não é exagero dizer que o mundo de hoje é objeto de
uma disputa entre militares, banqueiros e pregadores.
Embora nas discussões
correntes esses três blocos sejam quase que invariavelmente designados pelos
nomes de nações, Estados e governos, descrever a relação entre eles em termos
de uma disputa entre nações ou interesses nacionais é um hábito residual da
antiga geopolítica que não ajuda em nada a compreender a situação de hoje.
Só no caso russo-chinês
o projeto globalista corresponde simetricamente aos interesses nacionais e os
agentes principais são os respectivos Estados e governos. Isso acontece pela
simples razão de que o regime comunista, vigorando ali por décadas, dissolveu
ou eliminou todos os demais agentes possíveis. A elite globalista da Rússia e
da China são os governos desses dois países.
Já a elite globalista do Ocidente não
representa nenhum interesse nacional e não se identifica com nenhum Estado ou
governo em particular, embora domine muitos deles. Ao contrário: quando seus
interesses colidem com os das suas nações de origem (e isso acontece
necessariamente), ela não hesita em voltar-se contra a própria pátria,
subjugá-la e, se preciso, destruí-la.
Os globalistas
islâmicos atendem, em princípio, a interesses gerais de todos os Estados
muçulmanos, unidos no grande projeto do Califado Universal. Divergências
produzidas por choques de interesses nacionais (como por exemplo entre o Irã e
a Arábia Saudita) não têm sido suficientes para abrir feridas insanáveis na
unidade do projeto islâmico de longo prazo. A Fraternidade Islâmica, condutora
maior do processo, é uma organização transnacional: ela governa alguns países,
em outros está na oposição, mas sua influência é onipresente no mundo islâmico.
A heterogeneidade e
assimetria dos três blocos reflete-se na imagem que fazem uns dos outros, tal
como transparece nos seus discursos de propaganda – um sistema de erros do qual
se depreende a forte sugestão de que os destinos do mundo estão nas mãos de
loucos delirantes:
1. A perspectiva
russo-chinesa (hoje ampliada sob a forma do eurasismo, que será um dos tópicos
deste debate) descreve o bloco ocidental como (a) uma expansão mundial do poder
nacional americano; (b) a expressão materializada da ideologia liberal da
“sociedade aberta” tal como propugnada eminentemente por Sir Karl Popper; (c) a
encarnação viva da mentalidade materialista, cientificista e racionalista do
Iluminismo e, portanto, a inimiga por excelência de toda espiritualidade tradicional.
2. O globalismo
ocidental declara não ter outros inimigos senão “o terrorismo”, que ele não
identifica de maneira alguma com o bloco islâmico, mas descreve como resíduo de
crenças bárbaras em vias de extinção, e “o fundamentalismo”, noção em que se
misturam indistintamente os porta-vozes ideológicos do terrorismo islâmico e a
“direita cristã”, como se esta fosse aliada daquele e não uma de suas
principais vítimas (de modo que o medo do terrorismo islâmico é usado como
pretexto para justificar o boicote oficial à religião cristã na Europa e nos
EUA!). A Rússia e a China não são apresentadas jamais como possíveis
agressoras, mas como aliadas do Ocidente, a China na pior das hipóteses como
concorrente comercial. Em suma: a ideologia do globalismo ocidental fala como
se já personificasse um consenso universal estabelecido, só hostilizado por
grupos marginais e religiosos um tanto insanos.
3. O bloco islâmico
descreve o seu inimigo ocidental em termos que só revelam sua disposição de
odiá-lo per fas et per nefas, já que ora o apresenta como herdeiro dos antigos
cruzados, ora como personificação do materialismo e do hedonismo modernos. A generosa
colaboração da Rússia e da China com os grupos terroristas é decerto a razão
pela qual esses dois países são como que inexistentes no discurso ideológico
islâmico. Contornam-se com isso incompatibilidades teóricas insanáveis. Alguns
teóricos do Califado alegam que o socialismo, uma vez vitorioso no mundo,
precisará de uma alma, e o Islam lhe dará uma.
Na mesma medida em que
cultiva uma imagem falsa de seus concorrentes, cada um dos blocos projeta
também uma imagem falsa de si mesmo. Deixando de lado, por enquanto, as
fantasias projetivas islâmicas e ocidentais, vejamos as russo-chinesas.
O bloco russo-chinês
apresenta-se como aliado dos EUA na “luta contra o terrorismo”, ao mesmo tempo
que fornece armas e toda sorte de ajuda a praticamente todas as organizações
terroristas do mundo e aos regimes anti-americanos do Irã, da Venezuela, etc.,
e espalha, até por meio de altos funcionários, a lenda de que o atentado ao
World Trade Center foi obra do governo americano. (1)
A Rússia queixa-se de
ter sido “corrompida” pelas reformas liberais de Boris Yeltsin, de inspiração
americana, como se antes delas vivesse num templo de pureza e não na podridão
sem fim do regime comunista. O governo soviético, convém lembrar, viveu
essencialmente do roubo e da extorsão por sessenta anos, sem jamais ter de
prestar contas, e corrompeu a população mediante o hábito institucionalizado
das propinas, das trocas de favores, do tráfico de influência, sem os quais a
máquina estatal simplesmente não funcionava. (2) Quando seus bens foram
rateados após a dissolução oficial do regime, os beneficiados foram os próprios
membros da nomenklatura, que se transformaram em bilionários da noite para o
dia, sem cortar os laços que os uniam ao velho aparato estatal, especialmente à
KGB (“não existe isso de ex-KGB”, confessou Vladimir Putin).
Imaginem o que teria
acontecido na Alemanha após a Segunda Guerra se os vencedores, em vez de
perseguir e castigar os próceres do antigo regime, os tivessem premiado com o
acesso aos bens do Estado nazista. Foi exatamente o que aconteceu na Rússia:
tão logo dissolvida oficialmente a URSS, seus agentes de influência na Europa e
nos EUA se mobilizaram numa bem sucedida operação para bloquear toda
investigação dos crimes soviéticos. (3) Ninguém foi punido pelo assassinato de
pelo menos dezenas de milhões de civis e pela criação da mais eficiente máquina
de terror estatal que a humanidade já conheceu. Ao contrário: o caos e a
corrupção que se seguiram ao desmantelamento do Estado soviético não foram
causados pelo novo sistema de livre empresa, mas pelo fato de que os primeiros
a beneficiar-se dele foram os senhores do antigo regime, uma horda de ladrões e
assassinos como jamais se viu em qualquer país civilizado.
Mais ainda. Ao
choramingar que foi corrompida pelo capitalismo americano, a Rússia esquece que
foi ela que o corrompeu. Desde a década de 30, o governo Stálin, consciente de
que a força da América residia “no seu patriotismo, na sua consciência ética e
na sua religião” (sic), desencadeou uma gigantesca operação destinada, nas
palavras do seu executor principal, Willi Münzenberg, a “corromper o Ocidente
de tal modo que ele vai acabar fedendo”. Compra de consciências, envolvimento
de altos funcionários em espionagem e negócios escusos, intensas campanhas de
propaganda para debilitar as crenças morais da população e infiltração
generalizada no sistema educacional acabaram por dar resultados sobretudo a
partir da década de 60, modificando radicalmente a sociedade americana ao ponto
de torná-la irreconhecível.
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Alena V. Ledeneva
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Foi também a ação
soviética que deu dimensões planetárias ao tráfico de drogas, desde os anos 50.
A história está bem documentada em Red Cocaine: The Drugging of America and the
West, de Joseph D. Douglass. Quando a Rússia choraminga que após a queda do
comunismo foi invadida pela cultura das drogas, ela colhe apenas o que semeou.
Nada dessa vasta ação
corruptora é coisa do passado. Hoje em dia há mais agentes russos nos EUA do que
no tempo da Guerra Fria. (4)
A China, bem alimentada
por investimentos americanos, dá provas de que a aparente liberalização da sua
economia foi apenas uma fachada para a manutenção do regime totalitário, cada
vez mais sólido e aparentemente indestrutível.
Quanto à posição dos
EUA no quadro mundial, vejamos primeiro como o Prof. Dugin a descreve e depois
como ela é na realidade.
Segundo a doutrina
eurasiana, os EUA definem-se como a encarnação por excelência do globalismo
liberal. (5) O liberalismo tal como o Prof. Dugin o enxerga no rosto da América
é, em essência, o da “sociedade aberta” propugnada por Sir Karl Popper.
Eis como o Prof. Dugin
resume a idéia liberal:
Para compreender a
coerência filosófica da ideologia nacional-bolchevique… é absolutamente
necessário ler o livro fundamental de Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus
Inimigos…
Popper desenvolveu uma tipologia fundamental para o nosso assunto. Segundo ele, a história da humanidade e a história das idéias se dividem em duas metades (desiguais, aliás). De um lado, há os partidários da ‘sociedade aberta’, que representa a seu ver a forma de existência normal dos indivíduos racionais (assim são para ele todos os homens) que baseiam sua conduta no cálculo e na vontade pessoal supostamente livre. O conjunto de tais indivíduos deve logicamente formar a ‘sociedade aberta’, essencialmente ‘não totalitária’, dado que nela falta qualquer idéia unificadora ou sistema de valores de caráter coletivista, supra-individual ou não-individual. A ‘sociedade aberta’ é aberta precisamente pela razão de que ela ignora todas as ‘teleologias’, todos os ‘absolutos’, todas as diferenças tipológicas estabelecidas, portanto ignora todos os limites que emanam do domínio não-individual e não-racional (supra-racional, a-racional ou irracional, este último termo sendo mais freqüente em Popper).
Do outro lado há o
campo ideológico dos ‘inimigos da sociedade aberta’, onde Popper inclui
Heráclito, Platão, Aristóteles, os escolásticos, assim como a filosofia alemã
de Schlegel, de Fichte e sobretudo de Hegel e Marx. Karl Popper… mostra a unidade
essencial de suas abordagens e discerne a estrutura da sua Weltanschauung
comum, cujos traços característicos são a negação do valor intrínseco do
indivíduo, donde decorre o desprezo pelo racionalismo autônomo, e a tendência à
submissão do indivíduo e de sua razão aos valores ‘não-individuais e
não-racionais’, o que desemboca sempre e fatalmente, segundo Popper, na
apologia da ditadura e do totalitarismo políticos. (…)
Os
nacional-bolcheviques… aceitam absolutamente e sem reservas a visão dualista de
Popper e estão totalmente de acordo com a sua classificação. Mas, em
contrapartida, consideram-se eles próprios os inimigos convictos da ‘sociedade
aberta’… Eles rejeitam de uma maneira absoluta a ‘sociedade aberta’ e seus
fundamentos filosóficos, isto é, o primado do indivíduo, o valor do pensamento
racional, o liberalismo social progressivo, a democracia igualitarista numérica
atômica, a crítica livre, a Weltanschauung cartesiano-kantiana…(6)
Agora, o globalismo:
Hoje em dia, é evidente
que o Estado Mundial concebido como um Mercado Mundial não é uma perspectiva
longínqua ou quimérica, porque aquela doutrina liberal [de Karl Popper] vem se
tornando pouco a pouco a idéia governante da nossa civilização. E isso
pressupõe a destruição final das nações enquanto vestígios da época passada,
enquanto último obstáculo à expansão irresistível do mundialismo… A doutrina
mundialista é a expressão perfeita e acabada do modelo da ‘sociedade aberta’.
(7)
Globalismo liberal é,
portanto, o projeto em curso que visa a implantar em todo o mundo o modelo da
“sociedade aberta” popperiana, destruindo no caminho, necessariamente, as
soberanias nacionais e todo princípio metafísico ou moral que se pretenda
superior à racionalidade individual. É o fim das nações e de toda
espiritualidade tradicional, as primeiras substituídas por uma administração
mundial científico-tecnocrática, a segunda pela mescla de cientificismo,
materialismo e subjetivismo relativista que inspira as elites globalistas do
Ocidente.
Sendo os EUA o
principal foco irradiador desse projeto, e a Rússia o principal foco de
resistência (por motivos que veremos mais tarde), o choque é inevitável:
The main thesis of the neo-Eurasianism is that the
struggle between Russia and the United States is inevitable, since the United
States is the engine of globalization seeking to destroy Russia, the fortress
of spirituality and tradition. (8)
Fiz questão de
reproduzir com certo detalhe a opinião do meu oponente porque, embora não a
considere falsa no que diz respeito à mentalidade das elites globalistas,
realmente inspiradas em ideais popperianos, posso provar sem grande margem de
erro que:
1) A descrição não se
aplica de maneira alguma aos EUA, nação onde o popperianismo é um enxerto
recente, sem raízes locais e totalmente hostil às tradições americanas.
2) Os EUA não são o
centro de comando do projeto globalista, mas, ao contrário, sua vítima prioritária,
marcada para morrer.
3) A elite globalista
não é inimiga da Rússia, da China ou dos países islâmicos virtualmente
associados ao projeto eurasiano, mas, ao contrário, sua colaboradora e cúmplice
no empenho de destruir a soberania, o poderio político-militar e a economia dos
EUA.
4) Longe de favorecer o
capitalismo de livre-empresa, o projeto globalista tem dado mão forte a
políticas estatistas e controladoras por toda parte, não diferindo, nisso, do
intervencionismo propugnado pelos eurasianos. O globalismo só é “liberal” no
sentido local que o termo tem nos EUA como sinônimo de “esquerdista”. O projeto
globalista é herdeiro direto e continuador do socialismo fabiano, tradicional
aliado dos comunistas. A própria ideologia popperiana não é
liberal-capitalista, no sentido do liberalismo clássico, mas, antes de tudo,
“uma abordagem experimental da engenharia social”. (9)
5) O eurasismo se volta
contra a “sociedade aberta” popperiana enquanto modelo ideológico abstrato, mas
como ao mesmo tempo o eurasismo por seu lado não é só um modelo ideológico
abstrato e sim uma estratégia geopolítica, é claro que ele atira na ideologia
popperiana para acertar, por trás dela, um poder nacional determinado, o dos
EUA, que nada têm a ver com a ideologia popperiana e dela só pode esperar o
mal. Pior: o nacionalismo americano é uma poderosa resistência cristã às
ambições globalistas que vêm tentando se apossar do país para destruí-lo como
potência autônoma e usá-lo como instrumento de seus próprios planos
essencialmente antinacionais. A destruição do poder americano removerá do
caminho o último obstáculo ponderável à instauração do governo mundial. Aí só
restará a partilha dos despojos entre os três esquemas globalistas: ocidental,
russo-chinês e islâmico.
6) A Rússia não é de
maneira alguma a “fortaleza da espiritualidade e da tradição”, incumbida por
mandato celeste de castigar, na pele dos EUA, os pecados do Ocidente
materialista e imoral. É, hoje como no tempo de Stálin, um antro de corrupção e
maldade como jamais se viu, empenhado, como anunciou a profecia de Fátima, em
espalhar os seus erros pelo mundo. Observe-se que essa profecia nunca se
referiu ao comunismo em especial, mas aos “erros da Rússia” de modo genérico, e
anunciou que a disseminação desses erros, com todo o cortejo de desgraças e sofrimentos
que acarretava, só cessaria caso o Papa e todos os bispos católicos do mundo
realizassem o rito de consagração da Rússia. Como esse rito jamais foi realizado, não existe a menor razão para não enxergar no projeto eurasiano uma
segunda onda e um upgrade dos “erros da Rússia”, o anúncio de uma catástrofe de
proporções incalculáveis.
7) Se hoje a Rússia,
pela boca do Prof. Dugin, se apresenta ao mundo como portadora da grande
mensagem espiritual salvadora, é preciso lembrar que ela já o fez duas vezes:
(a) No século XIX todos
os pensadores da linha eslavófila, como Dostoiévski, Soloviev e Leontiev,
enxergavam o Ocidente como a fonte de todos os males, e anunciavam que no
século seguinte a Rússia iria ensinar ao mundo “o verdadeiro cristianismo”. O
que se viu foi que toda essa arrogância espiritual foi impotente para deter o
avanço do materialismo comunista na própria Rússia.
(b) O comunismo russo
prometeu trazer ao mundo uma era de paz, prosperidade e liberdade acima dos
mais belos sonhos das gerações passadas. Tudo o que conseguiu fazer foi criar
um inferno totalitário que nem Átila ou Gengis-Khan poderiam ter vislumbrado em
pesadelo.
Seria ótimo se cada
país aprendesse a curar seus próprios males antes de se fazer de salvador da
humanidade. A Rússia de Alexandre Dugin parece ter tirado de seus crimes e
fracassos a lição oposta.
(In Olavo de Carvalho, Os EUA e a Nova Ordem Mundial. Um debate
entre Alexandre Dugin e Olavo de Carvalho, VIDE Editorial, 2012, pp. 43-56).
Notas:
(1) V. meu artigo
“Sugestão aos bem-pensantes: internem-se”, Diário do Comércio, 30 de janeiro de
2002, http://www.olavodecarvalho.org/semana/060130dc.htm.
(2) V. Konstantin Simis, URSS: The Corrupt Society:
The Secret World of Soviet Capitalism, New York, Simon & Schuster, 1982, e
Alena V. Ledeneva, Russia`s Economy of Favours, Cambridge University Press,
1998.
(3) V. Vladimir
Boukovski, Jugement à Moscou.
(4) V.
http://www.foxnews.com/us/2010/07/04/painting-town-red-russian-spiesreport-says/
(5) Os dois elementos
que essa definição funde numa unidade não têm a mesma origem, nem nasceram
solidários um com o outro. Os primeiros movimentos liberais do século XIX,
vindo no bojo dos movimentos de independência voltados contra as potências
coloniais, eram acentuadamente nacionalistas, e os primeiros projetos de
governo global que apareceram no começo do século XX inspiravam-se em idéias
notoriamente intervencionistas e estatistas.
(6) Alexandre Douguine,
“La métaphysique du national-bolchevisme”, em Le Prophète de l’Eurasisme,
Paris, Avatar Éditions, 2006, pp. 131-133.
(7) Id., p. 138.
(8) Vadim Volovoj, “Will the prediction of A. Dugin
come true?”, em Geopolitika, 11 ou. 2008, http://www.geopolitika.lt/?artc=2825.
(9) Ed Evans, “Do you really know this person?”, em
http://itmakessenseblog.com/tag/karl-popper/