terça-feira, 30 de abril de 2019

Da bicorporeidade e da transfiguração

Escrito por Allan Kardec



«Aristóteles diz que Pitágoras foi chamado de Apolo Hiperbóreo pelo povo de Crotona. O filho de Nicómaco acrescenta que Pitágoras foi visto certa vez por muita gente, no mesmo dia e à mesma hora, tanto no Metaponto como em Crotona; e que em Olímpia, durante os jogos, ele se pôs de pé em pleno teatro e mostrou que uma das suas coxas era de ouro. O mesmo escritor diz que Pitágoras, ao atravessar o rio Cosas, foi saudado por este, e que muita gente ouviu essa saudação.»

Eliano



DA BICORPOREIDADE E DA TRANSFIGURAÇÃO


Isolado do corpo, o Espírito de um vivo pode, como o de um morto, mostrar-se com todas as aparências da realidade. Além disso, pelas mesmas causas que temos exposto, pode adquirir uma momentânea tangibilidade. Este fenómeno, conhecido pelo nome bicorporeidade, foi o que deu azo às histórias de homens duplos, isto é, de indivíduos cuja presença simultânea em dois lugares diferentes chegou a comprovar-se. Aqui ficam dois exemplos, tirados, não das lendas populares, mas da história eclesiástica.

Santo Afonso de Liguori foi canonizado antes do tempo prescrito, por se ter mostrado simultaneamente em dois sítios diversos, o que passou por milagre.

Santo António de Pádua estava a pregar em Itália (1) quando o seu pai, em Lisboa, ia ser supliciado, sob a acusação de ter cometido um assassínio. No momento da execução, Santo António aparece e demonstra a inocência do acusado. Comprovou-se que, naquele instante, Santo António pregava em Itália, na cidade de Pádua.

(…) Tácito refere um facto análogo:

Durante os meses que Vespasiano passou em Alexandria, aguardando a volta dos ventos estivais e da estação em que o mar oferece segurança, muitos prodígios ocorreram, pelos quais se manifestaram a protecção do céu e o interesse que os deuses votavam àquele príncipe…

Estes prodígios redobraram o desejo, que Vespasiano alimentava, de visitar a sagrada morada do deus, para consultá-lo sobre as coisas do império. Ordenou que o templo se conservasse fechado para quem quer que fosse e, tendo nele entrado, estava concentrado no que ia dizer o oráculo quando percebeu, por detrás de si, um dos mais eminentes egípcios, chamado Basílide, que ele sabia estar doente, num lugar muitos dias distante de Alexandria. Perguntou aos sacerdotes se Basílide fora naquele dia ao templo; perguntou aos transeuntes se o tinham visto na cidade; por fim, despachou alguns homens a cavalo, para saberem de Basílide e veio a certificar-se de que, no momento em que este lhe aparecera, estava a 80 milhas de distância. Desde então, não voltou a duvidar de que tivesse sido sobrenatural a visão e o nome de Basílide passou a ter para ele um valor idêntico ao de um oráculo. (Tácito: Histórias, livro IV, capítulos LXXXI e LXXXII. Tradução de Burnouf.)

(…) Tem, pois, dois corpos o indivíduo que se mostra simultaneamente em dois lugares diferentes. Mas, desses dois corpos, apenas um é real, o outro é simples aparência. Pode-se dizer que o primeiro tem a vida orgânica e que o segundo tem a vida da alma. Ao despertar o indivíduo, os dois corpos reúnem-se e a vida da alma volta ao corpo material. Não parece possível - pelo menos não conhecemos disso exemplo algum e a razão, ao nosso ver, demonstra-o - que, no estado de separação, possam os dois corpos gozar, simultaneamente e no mesmo grau, da vida activa e inteligente. Além disso, no que acabamos de dizer ressalta que o corpo real não poderia morrer enquanto o corpo aparente se conservasse visível, visto que a aproximação da morte atrai sempre o Espírito para o corpo, ainda que apenas por um instante. Daí resulta igualmente que o corpo aparente não poderia ser morto porque não é orgânico, não é formado de carne e osso. Desapareceria no momento em que o quisessem matar.



Mosaico da Transfiguração do século VI (Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai).



Igreja da Transfiguração, no Monte Tabor (Israel).


(…) A transfiguração, em certos casos, pode originar-se a partir de uma simples contracção muscular, capaz de dar à fisionomia uma expressão muito diferente da habitual, ao ponto de tornar quase irreconhecível a pessoa. Temo-lo observado frequentemente com alguns sonâmbulos; mas, nesses casos, a transformação não é radical. Uma mulher poderá parecer jovem ou velha, bela ou feia, mas será sempre uma mulher e, sobretudo, o seu peso não aumentará nem diminuirá. No fenómeno com que nos ocupamos, há mais alguma teoria. A teoria do perispírito vai esclarecer-nos.

Está, em princípio, admitido que o Espírito pode dar ao seu perispírito todas as aparências; que, mediante uma modificação na disposição molecular, pode dar-lhe visibilidade, a tangibilidade e, consequentemente, a opacidade; que o perispírito de uma pessoa viva, isolado do corpo, é passível das mesmas transformações; que essa mudança de estado opera pela combinação dos fluidos. Imaginemos agora o perispírito de uma pessoa viva, não isolado, mas irradiando-se em volta do corpo, de maneira a envolvê-lo numa espécie de vapor. Nesse estado, torna-se passível das mesmas modificações de que seria se o corpo estivesse separado. Perdendo ele a sua transparência, o corpo pode desaparecer, tornar-se invisível, ficar velado, como se mergulhado numa bruma. Poderá então o perispírito mudar de aspecto, fazer-se brilhante, se essa for a vontade do Espírito e se este dispuser de poder para tanto. Outro Espírito, combinando os seus fluidos com os do primeiro, poderá, a essa combinação de fluidos, imprimir a aparência que lhe é própria, de tal sorte que o corpo real desapareça sob o envoltório fluídico exterior, cuja aparência pode variar à vontade do Espírito. Esta parece ser a verdadeira causa do estranho e, é preciso que se diga, raro fenómeno da transfiguração. (in O Livro dos Médiuns, Nascente, 2015, pp. 142-146).


(1) No original francês, este facto foi narrado por Kardec sob a seguinte versão: «Santo António de Pádua achava-se em Espanha e, no instante em que predicava, o seu pai, que estava em Pádua, era levado ao suplício sob a acusação de homicídio. Nesse momento, Santo António aparece, demonstra a inocência do seu pai e revela o verdadeiro criminoso, mais tarde punido. Comprovou-se que nesse momento Santo António não havia deixado Espanha.» Kardec justificou-se em compêndio de autor que evidentemente se equivocou, como aconteceu a outros escritores da época relativamente a este facto. [N. da E.]



Igreja de Santo António em Lisboa, erguida sobre a casa onde segundo a tradição nasceu o Santo português.



Local onde, segundo a tradição, nasceu Santo António, em Lisboa, situado na cripta da igreja a si dedicada.


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