Escrito por Fernando Pessoa
1. A única realidade social é o indivíduo, por isso mesmo ele é a única realidade. O conceito de sociedade é um puro conceito; o de humanidade uma simples ideia. Só o indivíduo vive, só o indivíduo pensa e sente. Só por metáfora ou em liguagem translata se pode aludir ao pensamento ou ao sentimento de uma colectividade. Dizer que Portugal pensa, ou que a humanidade sente é tão razoável como dizer que Portugal se penteia ou que a humanidade se assoa.
2. Sendo o indivíduo a única realidade social, não é todavia o único elemento social. Esse indivíduo vive em dois meios ou ambientes - um o ambiente físico, outro o ambiente social, ou sociedade. É esse o valor do elemento sociedade - é o meio, um dos meios, em que o indivíduo vive. O sábio realismo de Aristóteles viu isto bem; e assim se assentou a tese política grega - que a sociedade existe para o indivíduo, que não o indivíduo para a sociedade.
Sendo o indivíduo a única realidade social, é o egoísmo a única qualidade real, embora, por disfarces vários e artifícios diversos se construíssem, no decurso da evolução social (não digo do progresso, porque não sei - nem ninguém sabe - se existe progresso) sentimentos altruístas, afinamentos dos instintos.
Para que o indivíduo possa ter uma vida social que lhe seja um elemento de desenvolvimento, ou, em outras palavras, para que a sociedade seja um ambiente favorável ao desenvolvimento do indivíduo, é forçoso que se faça assentar essa sociedade num conceito egoísta. Assim se formam naturalmente nações. A nação é o segundo elemento social primário. Os homens não se agrupam fraternitariamente senão por oposição. Sempre nos unimos para nos opormos. Isto é, aliás, um princípio lógico: definir é limitar.
Assim como o egoísmo e a vaidade são as qualidades determinantes da vida humana - pois o homem só deveras age para seu proveito ou para suplantar os outros, sendo a guerra a essência de toda a vida (o que já Heraclito havia dito) - assim o egoísmo e a vaidade são as qualidades determinantes dos egoísmos espontâneos chamados nações.
1. Composta de homens, a sociedade, seja ela em sua essência o que for, manifestará forçosamente as mesmas qualidades que esses homens. Em outras palavras, os homens em conjunto manifestarão as mesmas qualidades que manifestam individualmente, tirantes aquelas qualidades que estão ligadas à existência de um organismo físico - o instinto da conservação, o de reprodução, e, em derivação deste segundo, o instinto de família (directa ou indirecta).
2. As qualidades puramente sociais que governam os homens são o egoísmo, a socialidade e a vaidade. Por socialidade entendo o instinto gregário; é ela que ameniza e limita, sem nunca o eliminar nem essencialmente o alterar, o egoísmo, qualidade primária, que se deriva da própria circunstância de haver ego. A vaidade é a consequência do egoísmo na sua limitação pela socialidade; é a qualidade social humana mais evidente. Todo o homem quer ser mais que outro, todo homem quer brilhar. Variam, com as índoles e as aptidões, as maneiras em que o homem quer destacar-se, mas cada um tem a sua vaidade.
3. Seria impossível a existência da sociedade se nela se não reproduzissem estes fenómenos da vida do indivíduo. Por isso a sociedade se divide em nações, e não é possível «humanidade» em matéria social. Assim como tem que haver um egoísmo individual, tem que haver um egoísmo colectivo - é o que se chama o instinto patriótico. Assim como há uma vaidade individual - tem que haver uma vaidade colectiva - é o que se chama imperialismo. Só não há uma socialidade colectiva... (in Textos Filosóficos, I, Editorial Nova Ática, 2006, pp. 198-200).
quarta-feira, 31 de março de 2010
terça-feira, 30 de março de 2010
Aforismos (i)
Escrito por Teixeira de Pascoaes
O Universo é um cérebro infinito povoado de inúmeras imagens.
A economia terrestre, como a mecânica, depende da celeste.
A sociedade é uma colecção de cidadãos ou fantasmas, criaturas expulsas da Existência natural, por interesse colectivo. Que são os homens, diante do Homem?
O homem é o espaço e o tempo (os outros animais são apenas espaço).
O homem, antes de tudo, é poeta, por mais gordo ou adaptado à rotundidade planetária; e depois é pedagogo, aferidor de pesos e medidas, engenheiro, deputado e outras deformidades sociais.
segunda-feira, 29 de março de 2010
O conflito na economia contemporânea (iv)
Escrito por Orlando Vitorino
Hayek e a refutação da doutrina keynesiana do crescimento económico
A primeira refutação foi feita, ainda antes da publicação da «Teoria Geral», por Frederico Hayek, numa polémica histórica que o tornou «nos anos 30, o adversário mais atacado por Keynes».
O essencial da argumentação de Hayek incide sobre a inflação, em paralelo com a dedução keynesiana que também tem na inflação o seu ponto de partida. Trata-se, no fundo, da argumentação que Von Mises havia utilizado quando demonstrou a inviabilidade de uma economia socialista.
Hayek começa por demonstrar que a inflação perturba sempre o funcionamento do mercado. Quando acompanhada de medidas como a emissão, sem prévios limites, da moeda, o abandono do padrão-ouro ou de garantia equivalente e o câmbio flutuante, não perturba apenas o mercado, como ainda o destrói, impedindo o funcionamento do princípio da oferta e da procura e das regras que dele derivam. Sem o mercado, o investimento deixa de dispor das indicações que só ele pode fornecer, e torna-se irrealizável pelos particulares. Substituídos estes pelo Estado, o investimento realiza-se sem as mínimas condições imprescindíveis para que se aplique em empreendimentos cujas produções satisfaçam carências reais, as que só as indicações do mercado, ou a procura mercantil, podem fazer conhecer. Nestas circunstâncias, a oferta de tais produtos não encontra a correspondente procura e as empresas criadas pelos investimentos do Estado ficam condenadas à inevitável falência, mais ou menos tardia consoante possam ir sendo sustentadas por maiores ou menores investimentos posteriores. Uma vez estabelecida tal situação, a inflação, que está na origem da destruição do mercado, irá ser, não travada mas acelerada, porque é ela inerente à contínua emissão de moeda destinada a fornecer novos investimentos às empresas ameaçadas de inevitável falência. Este processo torna-se inexorável, embora as suas últimas e mais dramáticas consequências possam ir sendo retardadas enquanto se puder ir mantendo a inflação e a emissão de moeda. Mas tal possibilidade não é inesgotável e sem fim. Incessantemente emitida, a moeda falsa acabará por não ter qualquer correspondência em produtos nem, portanto, qualquer aceitação, e o já perdido mercado será substituído pela troca directa. Uma existência social civilizada torna-se, então, impossível (1).
Ao mesmo tempo, as empresas criadas pelo investimento do Estado fazem deslocar para elas, que oferecem salários mais elevados e mais rapidamente «actualizados, os trabalhadores que se encontram noutras empresas. Mas quando elas entram no inexorável processo de falência, os empregos deixam de ser seguros, acabam por desaparecer e o desemprego generalizado instala-se.
Claro que F. Hayek não deixava de reconhecer que, periodicamente, também nos regimes de economia livre se verificam fenómenos de inflação. Trata-se, porém, de uma inflação demarcada num breve tempo e suportável, e o desemprego que provoca é, como ela, transitório e moderado. Mas com uma inflação permanente e que, em vez de combatida, antes tem de ser acelerada, o consequente desemprego, embora retardado, acabará inevitavelmente por surgir e será tanto mais duradouro, amplo e dramático quanto mais tempo tiver sido retardado.
A demonstração mereceu a Keynes uma resposta equivalente ao sinistro desabafo de Luís XIV: «Depois de mim, o dilúvio!». Disse ele: «A longo prazo, já eu terei morrido». Mas «em 1975, o formidável professor Hayek voltou à carga para se vingar, ele que foi, nos anos 30, o adversário mais atacado por Keynes» (2).
Não se tratou, naturalmente, de uma vingança pessoal, mas de aproveitar a confirmação dos factos para fazer reconhecer que a economia nunca deve deixar de estar entregue à ciência que dela se formou e à liberdade que lhe é própria. Fora em nome da ciência e da liberdade económica que Hayek condenara o keynesianismo, cuja evolução se veio a dar como ele descrevera e cujos resultados vieram a ser os que ele previra. Numa conferência pronunciada em 1975, na Suiça, pôde traçar o epitáfio de Keynes nestes termos: «Lord Keynes era um homem de grande inteligência mas diminuto conhecimento da ciência económica» e «ignorava que os economistas haviam combatido com certo êxito a velha superstição de que, aumentando os gastos monetários, se assegura do modo mais duradouro a prosperidade e o pleno emprego (3).
Milton Friedman é, como Frederico Hayek, um rigoroso cientista, em certos aspectos mais intransigente do que ele como acontece quando incita o Governo do seu país, os EUA, a seguir o exemplo da Inglaterra que, em 1846, adoptou o livre-cambismo sem atender aos interesses das outras nações. Mas admite, e até preconiza, um sistema de concessões, mesmo quando cientificamente irregulares, às sucessivas conjunturas de que é feita a movente realidade económica. A mais importante e característica dessas concessões é a que se refere à inflação. Ao contrário de Hayek, admite que a inflação não é incondicionalmente insuportável. Ao contrário de Keynes, admite que a inflação não é incondicionalmente suportável. O que entende é que a inflação se tornará suportável, e até habitual, desde que compensada com a indexação dos preços, dos salários, dos juros e outras variáveis económicas. Se a taxa de inflação - diz ele - for acompanhada de equivalente taxa de indexação, as correspondências dos valores mantêm-se as mesmas e, por conseguinte, as regras do mercado permanecem imperturbadas. Hayek objectará que tal resultado não é possível porque a taxa de inflação nunca é simultaneamente universal, quer dizer, nunca incide ao mesmo tempo sobre todas as variáveis económicas como foi há muito e definitivamente demonstrado pelos marginalistas da «escola austríaca de Viena». Os factores de perturbação do mercado não se manifestam todos de uma só vez, mas vão-se acumulando, e a indexação apenas conseguirá retardar os inevitáveis resultados.
Sobre isso, a indexação, bem como a inflação quando a ela referida, consiste numa determinação puramente quantitativa e F. Hayek não se cansa de repetir, como Von Mises, que os fenómenos económicos são intradutíveis em termos quantitativos ou matemáticos. Diz ele: «É preciso abandonar os preconceitos cientistas quantitativos, incapazes, por sua mesma natureza, de conhecer os factos concretos» (4).
E logo acrescenta: «Esses preconceitos limitam-se à descrição estatística de modelos e consistem numa tentativa para submeter o nosso ambiente natural e humano ao controlo da vontade» (5), concluindo, em termos que correspondem aos utilizados por Keynes quando fala do padrão-ouro como de uma velha superstição, que «é uma moderna superstição, que apenas tem servido para desorientar os economistas e o público em geral, essa de que só tem importância aquilo que é mensurável (6).
Também quanto ao desemprego F. Hayek e M. Friedman discordam igualmente de Keynes e das opiniões ou convicções a partir dele dominantes. Nem o desemprego é inerente à ordenação económica das sociedades modernas nem estas têm qualquer singularidade que as isente de obedecerem à ciência económica. O pleno emprego, que Keynes anunciava e a demagogia dos poderes políticos não se cansa de prometer, não passa de um mito, na expressão de Friedman ou, na expressão de Hayek, de um canto de sereia. Segundo este, como já vimos, o desemprego é sempre uma consequência da inflação, e porque há sempre perturbações inflacionárias, cuja normal brevidade e inoquidade só é prolongada e envenenada pelos poderes políticos do Estado, sempre haverá uma margem de desemprego. O desemprego combate-se combatendo a inflação. Para a margem de desempregados que continuará a haver, e que Hayek parece supor composta de «desempregados voluntários», propõe ele um subsídio regular cuja receita provirá de um imposto periodicamente sujeito a referendo popular.
M. Friedman estuda com mais minúcia a margem permanente de desempregados. Explica ele que o desemprego é composto por uma parte de «desemprego voluntário» e outra parte a que chama «a taxa natural de desemprego». A primeira resulta do desacerto entre as «previsões» que cada um faz da evolução futura dos preços e a evolução que efectivamente se vem a dar. Ou seja: as pessoas prevêem uma situação futura que lhes oferecerá melhores condições de emprego e decidem esperar, desempregados, que ela se efective. Caso isto não aconteça, ou enquanto não acontece, tais pessoas são «desempregados voluntários» e Friedman observa que certas características das sociedades actuais - as pensões de desemprego, a segurança social, o emprego dos jovens e das mulheres - facilitam a decisão de aguardar a oportunidade de melhores condições, aumentando o número de «desempregados voluntários». Caso as previsões saiam certas ou, melhor, caso todas as previsões saíssem certas, o desemprego voluntário desapareceria e só haveria «a taxa natural de desemprego», isto é, aquela margem permanente e inevitável de desempregados que sempre existe em qualquer regime de economia, seja porque nessa margem se manifestam certos caracteres inapagáveis da natureza humana, seja porque, como diz um escritor português (7), «nunca é possível abolir o direito de ser pobre».
Apreciando a situação no seu país, os EUA, M. Friedman pôde avaliar que dois terços dos desempregados existentes são voluntários, isto é, que nos 9% da população activa que constituem o total dos desempregados, apenas 3% constituem «a taxa natural de desemprego». O desemprego não é, portanto, um problema crucial, sobre o qual se deva construir a organização da economia, e o pleno emprego não passa de um mito (in ob. cit., pp. 54-60).
Notas:
(1) As consequências da inflação prolongada e da moeda falsa, emitida pelo Estado, são apresentadas pelos teorizadores da economia, com relevo, mais uma vez, para F. Hayek, como as mais temíveis e trágicas. Os keynesianos, como todos os intervencionistas, fingiram rir-se de tão sinistras previsões. No entanto, podem elas encontrar adequada ilustração num dos acontecimentos mais importantes da História Universal: a queda do Império Romano.
É certo que não há instituição, Estado ou Império a que a História não ponha um dia termo. Torna-se, por isso, compreensível que os historiadores, sempre empenhados em descobrir as causas dos eventos, não encontrem causa nem explicação para a queda do mais perfeito Império que existiu, arrastando consigo a dissolução da civilização clássica de cujos restos ainda hoje vivemos. A inflação e a falsificação da moeda não serão, porventura, a indeterminada causa desse crucial acontecimento histórico, mas certo é que o acompanharam. A inflação foi então, como está parecendo a de hoje, imparável, e o dinheiro sofreu tal falsificação que uma moeda de prata, o antoninianus, chegou a ter 98,5% de cobre e chumbo revestido de uma ínfima película do metal precioso (ver Gabriel Ardant, «Histoire Financière de l'Antiquité à nos jours», ed. Gallimard, Paris, 1976). Os impostos, tal como acontece agora, multiplicaram-se, complicaram-se e aumentaram continuamente. E tal como hoje é programado nos regimes do intervencionismo socialista, a sociedade descentralizou-se, repartindo-se em comunidades fechadas e isoladas que procuravam sobreviver pela auto-subsistência e foram os embriões da dispersão que viria a caracterizar as populações medievais. No entanto, o poder político, militar, administrativo e cultural dos romanos não tinha na época, nem talvez jamais venham a ter tido, outro que se lhe comparasse, as invasões dos bárbaros eram movidas, mais do que pela ambição violenta da conquista, pelo desejo de submissão que os fizesse partilhar os benefícios da sociedade civilizada, a a organização do Império atingira uma perfeição que em nenhum outro período Roma tivera, tal como acontece com a organização dos Estados contemporâneos graças aos meios de controlo fornecidos pela tecnologia contemporânea.
(2) J. Trevithik, «Inflation», ed. Penguin Books Ltd., Londres, 1977. Trad. portuguesa com o título «Como Viver em inflação», Pub. Dom Quixote, Lisboa, 1981, pág. 174).
(3) A conferência intitula-se «Um meio para acabar com a inflação: a livre escolha da moeda», e foi publicada numa colectânea de escritos do autor com o título «Inflacion o Pleno Empleo?», trad. cast., Union Editorial, S.A., Madrid, 1976.
(4) F. Hayek, «Inflacion o Pleno Empleo?», ed. cit., pág. 28.
(5) Ib., pág. 31.
(6) Ib., págs. 41/42.
(7) António Lopes Ribeiro.
A primeira refutação foi feita, ainda antes da publicação da «Teoria Geral», por Frederico Hayek, numa polémica histórica que o tornou «nos anos 30, o adversário mais atacado por Keynes».
O essencial da argumentação de Hayek incide sobre a inflação, em paralelo com a dedução keynesiana que também tem na inflação o seu ponto de partida. Trata-se, no fundo, da argumentação que Von Mises havia utilizado quando demonstrou a inviabilidade de uma economia socialista.
Hayek começa por demonstrar que a inflação perturba sempre o funcionamento do mercado. Quando acompanhada de medidas como a emissão, sem prévios limites, da moeda, o abandono do padrão-ouro ou de garantia equivalente e o câmbio flutuante, não perturba apenas o mercado, como ainda o destrói, impedindo o funcionamento do princípio da oferta e da procura e das regras que dele derivam. Sem o mercado, o investimento deixa de dispor das indicações que só ele pode fornecer, e torna-se irrealizável pelos particulares. Substituídos estes pelo Estado, o investimento realiza-se sem as mínimas condições imprescindíveis para que se aplique em empreendimentos cujas produções satisfaçam carências reais, as que só as indicações do mercado, ou a procura mercantil, podem fazer conhecer. Nestas circunstâncias, a oferta de tais produtos não encontra a correspondente procura e as empresas criadas pelos investimentos do Estado ficam condenadas à inevitável falência, mais ou menos tardia consoante possam ir sendo sustentadas por maiores ou menores investimentos posteriores. Uma vez estabelecida tal situação, a inflação, que está na origem da destruição do mercado, irá ser, não travada mas acelerada, porque é ela inerente à contínua emissão de moeda destinada a fornecer novos investimentos às empresas ameaçadas de inevitável falência. Este processo torna-se inexorável, embora as suas últimas e mais dramáticas consequências possam ir sendo retardadas enquanto se puder ir mantendo a inflação e a emissão de moeda. Mas tal possibilidade não é inesgotável e sem fim. Incessantemente emitida, a moeda falsa acabará por não ter qualquer correspondência em produtos nem, portanto, qualquer aceitação, e o já perdido mercado será substituído pela troca directa. Uma existência social civilizada torna-se, então, impossível (1).
Ao mesmo tempo, as empresas criadas pelo investimento do Estado fazem deslocar para elas, que oferecem salários mais elevados e mais rapidamente «actualizados, os trabalhadores que se encontram noutras empresas. Mas quando elas entram no inexorável processo de falência, os empregos deixam de ser seguros, acabam por desaparecer e o desemprego generalizado instala-se.
Claro que F. Hayek não deixava de reconhecer que, periodicamente, também nos regimes de economia livre se verificam fenómenos de inflação. Trata-se, porém, de uma inflação demarcada num breve tempo e suportável, e o desemprego que provoca é, como ela, transitório e moderado. Mas com uma inflação permanente e que, em vez de combatida, antes tem de ser acelerada, o consequente desemprego, embora retardado, acabará inevitavelmente por surgir e será tanto mais duradouro, amplo e dramático quanto mais tempo tiver sido retardado.
A demonstração mereceu a Keynes uma resposta equivalente ao sinistro desabafo de Luís XIV: «Depois de mim, o dilúvio!». Disse ele: «A longo prazo, já eu terei morrido». Mas «em 1975, o formidável professor Hayek voltou à carga para se vingar, ele que foi, nos anos 30, o adversário mais atacado por Keynes» (2).
Não se tratou, naturalmente, de uma vingança pessoal, mas de aproveitar a confirmação dos factos para fazer reconhecer que a economia nunca deve deixar de estar entregue à ciência que dela se formou e à liberdade que lhe é própria. Fora em nome da ciência e da liberdade económica que Hayek condenara o keynesianismo, cuja evolução se veio a dar como ele descrevera e cujos resultados vieram a ser os que ele previra. Numa conferência pronunciada em 1975, na Suiça, pôde traçar o epitáfio de Keynes nestes termos: «Lord Keynes era um homem de grande inteligência mas diminuto conhecimento da ciência económica» e «ignorava que os economistas haviam combatido com certo êxito a velha superstição de que, aumentando os gastos monetários, se assegura do modo mais duradouro a prosperidade e o pleno emprego (3).
Friedman e a refutação da doutrina keynesiana do pleno emprego
Sobre isso, a indexação, bem como a inflação quando a ela referida, consiste numa determinação puramente quantitativa e F. Hayek não se cansa de repetir, como Von Mises, que os fenómenos económicos são intradutíveis em termos quantitativos ou matemáticos. Diz ele: «É preciso abandonar os preconceitos cientistas quantitativos, incapazes, por sua mesma natureza, de conhecer os factos concretos» (4).
E logo acrescenta: «Esses preconceitos limitam-se à descrição estatística de modelos e consistem numa tentativa para submeter o nosso ambiente natural e humano ao controlo da vontade» (5), concluindo, em termos que correspondem aos utilizados por Keynes quando fala do padrão-ouro como de uma velha superstição, que «é uma moderna superstição, que apenas tem servido para desorientar os economistas e o público em geral, essa de que só tem importância aquilo que é mensurável (6).
Também quanto ao desemprego F. Hayek e M. Friedman discordam igualmente de Keynes e das opiniões ou convicções a partir dele dominantes. Nem o desemprego é inerente à ordenação económica das sociedades modernas nem estas têm qualquer singularidade que as isente de obedecerem à ciência económica. O pleno emprego, que Keynes anunciava e a demagogia dos poderes políticos não se cansa de prometer, não passa de um mito, na expressão de Friedman ou, na expressão de Hayek, de um canto de sereia. Segundo este, como já vimos, o desemprego é sempre uma consequência da inflação, e porque há sempre perturbações inflacionárias, cuja normal brevidade e inoquidade só é prolongada e envenenada pelos poderes políticos do Estado, sempre haverá uma margem de desemprego. O desemprego combate-se combatendo a inflação. Para a margem de desempregados que continuará a haver, e que Hayek parece supor composta de «desempregados voluntários», propõe ele um subsídio regular cuja receita provirá de um imposto periodicamente sujeito a referendo popular.
M. Friedman estuda com mais minúcia a margem permanente de desempregados. Explica ele que o desemprego é composto por uma parte de «desemprego voluntário» e outra parte a que chama «a taxa natural de desemprego». A primeira resulta do desacerto entre as «previsões» que cada um faz da evolução futura dos preços e a evolução que efectivamente se vem a dar. Ou seja: as pessoas prevêem uma situação futura que lhes oferecerá melhores condições de emprego e decidem esperar, desempregados, que ela se efective. Caso isto não aconteça, ou enquanto não acontece, tais pessoas são «desempregados voluntários» e Friedman observa que certas características das sociedades actuais - as pensões de desemprego, a segurança social, o emprego dos jovens e das mulheres - facilitam a decisão de aguardar a oportunidade de melhores condições, aumentando o número de «desempregados voluntários». Caso as previsões saiam certas ou, melhor, caso todas as previsões saíssem certas, o desemprego voluntário desapareceria e só haveria «a taxa natural de desemprego», isto é, aquela margem permanente e inevitável de desempregados que sempre existe em qualquer regime de economia, seja porque nessa margem se manifestam certos caracteres inapagáveis da natureza humana, seja porque, como diz um escritor português (7), «nunca é possível abolir o direito de ser pobre».
Apreciando a situação no seu país, os EUA, M. Friedman pôde avaliar que dois terços dos desempregados existentes são voluntários, isto é, que nos 9% da população activa que constituem o total dos desempregados, apenas 3% constituem «a taxa natural de desemprego». O desemprego não é, portanto, um problema crucial, sobre o qual se deva construir a organização da economia, e o pleno emprego não passa de um mito (in ob. cit., pp. 54-60).
Notas:
(1) As consequências da inflação prolongada e da moeda falsa, emitida pelo Estado, são apresentadas pelos teorizadores da economia, com relevo, mais uma vez, para F. Hayek, como as mais temíveis e trágicas. Os keynesianos, como todos os intervencionistas, fingiram rir-se de tão sinistras previsões. No entanto, podem elas encontrar adequada ilustração num dos acontecimentos mais importantes da História Universal: a queda do Império Romano.
É certo que não há instituição, Estado ou Império a que a História não ponha um dia termo. Torna-se, por isso, compreensível que os historiadores, sempre empenhados em descobrir as causas dos eventos, não encontrem causa nem explicação para a queda do mais perfeito Império que existiu, arrastando consigo a dissolução da civilização clássica de cujos restos ainda hoje vivemos. A inflação e a falsificação da moeda não serão, porventura, a indeterminada causa desse crucial acontecimento histórico, mas certo é que o acompanharam. A inflação foi então, como está parecendo a de hoje, imparável, e o dinheiro sofreu tal falsificação que uma moeda de prata, o antoninianus, chegou a ter 98,5% de cobre e chumbo revestido de uma ínfima película do metal precioso (ver Gabriel Ardant, «Histoire Financière de l'Antiquité à nos jours», ed. Gallimard, Paris, 1976). Os impostos, tal como acontece agora, multiplicaram-se, complicaram-se e aumentaram continuamente. E tal como hoje é programado nos regimes do intervencionismo socialista, a sociedade descentralizou-se, repartindo-se em comunidades fechadas e isoladas que procuravam sobreviver pela auto-subsistência e foram os embriões da dispersão que viria a caracterizar as populações medievais. No entanto, o poder político, militar, administrativo e cultural dos romanos não tinha na época, nem talvez jamais venham a ter tido, outro que se lhe comparasse, as invasões dos bárbaros eram movidas, mais do que pela ambição violenta da conquista, pelo desejo de submissão que os fizesse partilhar os benefícios da sociedade civilizada, a a organização do Império atingira uma perfeição que em nenhum outro período Roma tivera, tal como acontece com a organização dos Estados contemporâneos graças aos meios de controlo fornecidos pela tecnologia contemporânea.
(2) J. Trevithik, «Inflation», ed. Penguin Books Ltd., Londres, 1977. Trad. portuguesa com o título «Como Viver em inflação», Pub. Dom Quixote, Lisboa, 1981, pág. 174).
(3) A conferência intitula-se «Um meio para acabar com a inflação: a livre escolha da moeda», e foi publicada numa colectânea de escritos do autor com o título «Inflacion o Pleno Empleo?», trad. cast., Union Editorial, S.A., Madrid, 1976.
(4) F. Hayek, «Inflacion o Pleno Empleo?», ed. cit., pág. 28.
(5) Ib., pág. 31.
(6) Ib., págs. 41/42.
(7) António Lopes Ribeiro.
domingo, 28 de março de 2010
O conflito na economia contemporânea (iii)
Escrito por Orlando Vitorino
Foi no período que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, nos anos dominados por um vasto e prolongado desemprego, que J. M. Keynes formou a sua teoria. A finalidade que o orientava era a de saber como alcançar, simultaneamente, o crescimento económico e o pleno emprego.
A ciência da economia sempre observara que um e outro são fenómenos correlativos: onde há crescimento económico, não existe desemprego. Keynes verificava, porém, que a situação naqueles anos 20 vivida, e a que chamou «o capitalismo actual», era diferente: o crescimento económico obtinha-se ao mesmo tempo que o desemprego aumentava. Tal situação colocava os poderes políticos perante a inevitabilidade de escolher entre dois males igualmente temíveis: ou aumentar o desemprego para assegurar o crescimento económico ou travar o crescimento económico para diminuir o desemprego. Ora, Keynes veio oferecer-lhes uma solução inédita e revolucionária, na qual o crescimento económico não só seria conciliável com a diminuição do desemprego mas até resultaria no pleno emprego. Os poderes políticos agarraram-na, naturalmente, com ambas as mãos.
Além da cornucópia oferta que lhes trazia, Keynes libertava os governos do pesadelo que as leis da ciência económica sempre foram para eles, assegurando-lhes que essa «melancólica ciência» deixara de merecer qualquer crédito, que não passava de uma amálgama de velhas superstições: a superstição da inflação, a superstição da estabilidade, a superstição do padrão-ouro. Não hesitava até em empregar a linguagem sarcástica para as esconjurar e preconizava, como condição para que se alcançasse o que a sua doutrina vinha oferecer, a abolição definitiva do padrão-ouro, a indiferença para a estabilidade e, escândalo maior, o incremento da inflação.
Ousado, para muitos apenas atrevido, exposto na «Teoria Geral» numa linguagem prolixa, com frequentes recursos à matematização e em termos dificilmente acessíveis, o raciocínio de Keynes era, todavia, linear e simples. Sempre há, sempre houve períodos de inflação, embora sem a amplitude e a perduração do período presente. E a ciência económica pudera determinar, com segurança, que, numa fase inicial, a inflação faz aumentar a produção e diminuir o desemprego mas que, prolongando-se para lá dessa fase, dá origem aos fenómenos inversos. Daqui concluíram os teorizadores que o que há a fazer é deixar a inflação entregue ao seu espontâneo desenvolvimento até se extinguir por si própria, quando os seus malefícios mostram como ela se tornou insuportável. L. von Mises chega a dizer que a inflação não é um fenómeno económico mas um fenómeno político, ou seja, que tem a sua origem na intervenção da política na economia, mediante a emissão exagerada de moeda, e só na política tem, portanto, o remédio. Keynes preconiza o contrário: o que há a fazer é conservar os efeitos positivos que a inflação oferece na fase inicial, o que se conseguirá conservando os factores que lhe dão origem. Tais factores são o aumento da quantidade da moeda e o aumento dos investimentos.
É fácil aumentar a quantidade da moeda desde que, ao contrário do que acontece no sistema do padrão-ouro, ela não seja considerada uma mercadoria. O que, portanto, há a fazer em primeiro lugar é abolir o padrão-ouro, alvo privilegiado dos sarcasmos de Keynes, e bem assim qualquer outra semelhante garantia que impeça o dinheiro de não ser mais do que um sinal convencional e não se poder emitir sem limite previamente estabelecido. Mas ao que, em concepção alguma, se poderá escapar é à necessária correspondência entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias. Segundo a ciência económica, a quantidade da moeda só deve ser aumentada depois de se ter verificado que a quantidade existente não é bastante para as operações resultantes do aumento da quantidade das mercadorias existentes. Ou seja: só quando a quantidade de mercadorias aumenta é que se pode, e deve, aumentar a quantidade do dinheiro. Se não se fizer assim, a moeda emitida a mais não terá mercadorias a que corresponda e não possuirá valor, equivalência ou garantia, pois não encontrará mercadorias pelas quais se troque.
Keynes também aqui inverteu a ordem do processo dizendo que a emissão de moeda, em maior quantidade do que a das mercadorias existentes, dará origem ao investimento, portanto ao aumento da quantidade dos produtos, ou mercadorias, e estes virão garantir à moeda o valor que ele não possuía quando foi emitida.
Claro que é preciso que as novas mercadorias tenham procura, que os produtos cuja quantidade aumentou tenham consumo. Mas também isso se obtém - assegurava Keynes - com a emissão da moeda. Será ela distribuída pelas vias normais: pelos salários, pelos lucros e pelas rendas. Os salários serão, porém, privilegiados porque são eles que, envolvendo o maior número de pessoas, aumentam o poder de consumir na proporção com o aumento dos produtos. O crescimento económico, inicialmente obtido, ficará deste modo assegurado. E como, por outro lado, o aumento dos investimentos, dando origem a novas empresas, aumenta os postos de trabalho, o desemprego não só diminuirá mas também, completado o processo, se estabelece e torna permanente o pleno emprego.
O controlo, regularizado e a correcção do processo fica a cargo do fisco que se destinará, em primeiro lugar, a impedir o entesouramento, isto é, a impedir que os assalariados formem, além das partes que dedicam ao consumo e à poupança, uma terceira parte dos seus salários que entesouram e não consomem nem investem.
É, deste modo, simples e perfeito o processo ou sistema da economia que o keynesianismo propõe. Além de simples e perfeito oferece ainda a vantagem, que as outras versões do intervencionismo não possuem, de convictamente afirmar preservada a livre escolha, a livre iniciativa, enfim, a liberdade do indivíduo. O indivíduo continuaria no centro de todas as decisões, a autonomia de cada um permaneceria inviolável, a disposição ou propriedade do que se possui, sejam coisas seja dinheiro, não deixaria de ser plena, e o Estado limitar-se-ia a emitir quantidades cada vez maiores de moeda que entregaria às mãos de toda a gente. Quando Keynes morreu, em 1946, morria convicto da perfeição e eficácia do sistema que os governos iam começar a fazer seu.
Acontece, porém, que a natureza humana não é tão perfeita como o sistema de Keynes. Composto ele de várias peças e só funcionando se nenhuma delas falhar, uma houve que falhou e logo a mais importante: o indivíduo humano, princípio e fim de toda a actividade económica, que não procedeu como o sistema previra que procedesse. Com efeito, os assalariados a quem são atribuídos salários cada vez mais elevados e passam, portanto, a dispor de maiores excedentes monetários sobre o que dispendem no consumo, em vez de os canalizarem para o investimento, ou para a poupança, antes, em parte ou no todo, os guardam consigo, os entesouram. Ora a massa monetária entesourada perturba e destrói as articulações do sistema, abre uma brecha no decorrer do processo. Deixando de ser investida, corta o aumento da produção e antes a faz retroceder. E como é a quantidade dos produtos obtida que vai validar a quantidade da moeda anteriormente emitida, esta fica em falso, torna-se ineficaz, deixa de ser investível. Uma única solução, então, se apresenta, como, aliás, Keynes havia previsto: recorrer a uma política fiscal que impeça os indivíduos de entesourarem o excedente sobre o consumo dos seus salários de trabalho, dos seus lucros de comércio, das sua rendas de propriedade. Mas acontece que não existe maneira de determinar previamente a parte que cada indivíduo vai reservar para poupança e a que vai reservar para entesouramento. A política fiscal procederá por aproximações matemáticas sempre falíveis e por natureza inadequadas aos fenómenos económicos, tendo de acabar por absorver tanto os excedentes que os indivíduos reservariam ao entesouramento como os que reservariam à poupança. Passa a ser, então, o Estado quem dispõe da moeda destinada ao investimento, passa a ser ele quem investe e quem fica na posse das empresas que o investimento cria. Mas também acontece que, ao pagarem mais impostos e menos portanto ganharem, os indivíduos logo diminuem o consumo na busca de alguma compensação para o que perderam. Diminuído o consumo, a produção é forçada ou a diminuir proporcionalmente ou a ficar sem uso nem troca. A derradeira defesa do processo irá, então, consistir em também ao Estado caber a determinação daquilo que os indivíduos têm o direito ou o dever de consumir. A liberdade, já muito reduzida, extinguir-se-á mas o sistema, por sua vez, cairá em escombros: o dinheiro é falso, o mercado desaparece, a propriedade esvai-se, e o keynesianismo, como todas as outras versões intervencionistas, terá lançado os homens e os povos, não diremos no caos, mas numa ordem que é pior do que o caos.
Seria, pois, o keynesianismo um sistema perfeito se a natureza humana pudesse abdicar da liberdade. Não o podendo fazer, o keynesianismo fica de facto reduzido a um processo de gradual estatização da economia. E o que, na prática, acaba por o distinguir da anterior versão do intervencionismo, tal como é sistematizada, por exemplo, pelo marxismo, é ser este uma descrição do socialismo plenamente realizado enquanto o keynesianismo é a descrição do processo pelo qual o socialismo se vai realizando gradualmente. As vantagens que, de início, parecia oferecer desaparecem à medida que se vai verificando que as populações e os indivíduos não estão dispostos, por natureza, a preencher as condições exigidas no processo. Caso tais condições fossem preenchidas, o sistema funcionaria sem ter de recorrer à estatização da economia nem a uma política fiscal absorvente: a totalidade dos indivíduos, renunciando ao entesouramento, investiria as suas poupanças e o fisco limitar-se-ia a recolher as receitas indispensáveis a uma organização elementar do Estado. Como essa primeira condição não se verifica, a política fiscal vai-se agravando por graus, em cada grau experimentando se as populações satisfazem as condições correctivas: se, perante uma política fiscal calculada para só arrecadar o que destinavam ao entesouramento, elas continuam a investir a totalidade dos restantes excedentes mantendo o mesmo consumo; se, mantendo o mesmo consumo, não entesouram o que o fisco ainda lhes deixou para poupança. E quando se verifica que também esta última condição não é preenchida e os indivíduos movidos pela natural previdência que nenhuma «segurança social» substitui, sacrificam ou diminuem o consumo, só então a política fiscal entrará nas vias de total estatização. Deste modo, é em sucessivas fases, não de chofre nem fazendo dele a sua finalidade, que o keynesianismo conduz ao mesmo resultado do socialismo e de todas as versões possíveis do intervencionismo. Foi aquela sua característica capacidade de ajustamento à sucessão das recusas que as populações vão fazendo às condições propostas com aparente liberdade de aceitação, que suscitou a diversidade das chamadas «vias de transição para o socialismo», estabelecidas pelos diversos governos e partidos socialistas que, um pouco por toda a parte, continuaram a perdurar ou a pulular depois da guerra mundial.
Nada disto significa, contudo, que o teorizador tenha sido, nas suas convicções pessoais, um intervencionista. Pelo contrário, Lord Keynes parece ter-se mantido sempre fiel a um certo liberalismo, não só o da tradição inglesa mas o inerente à ciência da economia, e a sua carreira pessoal é a de um capitalista hábil e afortunado. Pôs ele um grande cuidado, uma grande ênfase, em distinguir, nas determinações da «Teoria Geral» que coincidem com os postulados socialistas, as razões puramente económicas, que são as suas, das razões puramente políticas, que são as do socialismo. Quando, por exemplo, preconiza o constante aumento dos salários, não o faz, como os socialistas, por razões de justiça social, mas sim porque os assalariados, constituindo a «classe» mais numerosa, são os que mais consomem e, portanto, mais contribuem para assegurar o aumento da produção. Para a sobrevivência do socialismo, nova vantagem conferiu esta distinção à «Teoria Geral». Torna-a insuspeita de constituir mais uma doutrina de mais uma seita ou partido. Dá-lhe uma imagem de isenção e desinteresse que também seduziu, com o perfume da cientificidade, a «cultura oficial» e fez que o ensino da ciência económica ficasse, em todos os países, abafado pelo keynesianismo. Para esta última sedução muito contribuiu a valorização que o keynesianismo faz da econometria e o impulso que imprimiu às contabilidades nacionais: a primeira, quantificando os fenómenos económicos, coloca a economia ao alcance das inteligências cuja imaturidade as torna presas fáceis da matematização característica das ciências modernas; o segundo, inerente à necessidade que o sistema keynesiano tem de calcular a renda nacional, a quantidade de moeda a emitir sem garantia prévia, as partes dela a distribuir pelos salários, lucros e rendas e a empregar no consumo, na poupança e no entesouramento, abre aos economistas largo terreno para as mais desvairadas ambições de que a rigorosa ciência económica os afasta.
As dramáticas consequências, hoje manifestas, que a adopção do keynesianismo veio a ter, podem considerar-se o contrário do que Lord Keynes previra ou pretendera. Milton Friedman interpreta-as dizendo que uma coisa é o pensamento de Keynes e outra o keynesianismo dos seus epígonos, no qual ele não se reconheceria e seria o primeiro a repudiar. Frederico Hayek explica-as pelo «deficiente conhecimento que Lord Keynes possuía da ciência económica». Certo é, todavia, que o keynesianismo, radicando-se na política da generalidade dos Estados e dominando a generalidade do ensino da economia, conseguiu resistir e sobreviver às críticas irrefutáveis que desde muito cedo lhe foram feitas (in ob. cit, pp. 48-54).
Continua
Keynes e o Keynesianismo
A ciência da economia sempre observara que um e outro são fenómenos correlativos: onde há crescimento económico, não existe desemprego. Keynes verificava, porém, que a situação naqueles anos 20 vivida, e a que chamou «o capitalismo actual», era diferente: o crescimento económico obtinha-se ao mesmo tempo que o desemprego aumentava. Tal situação colocava os poderes políticos perante a inevitabilidade de escolher entre dois males igualmente temíveis: ou aumentar o desemprego para assegurar o crescimento económico ou travar o crescimento económico para diminuir o desemprego. Ora, Keynes veio oferecer-lhes uma solução inédita e revolucionária, na qual o crescimento económico não só seria conciliável com a diminuição do desemprego mas até resultaria no pleno emprego. Os poderes políticos agarraram-na, naturalmente, com ambas as mãos.
Além da cornucópia oferta que lhes trazia, Keynes libertava os governos do pesadelo que as leis da ciência económica sempre foram para eles, assegurando-lhes que essa «melancólica ciência» deixara de merecer qualquer crédito, que não passava de uma amálgama de velhas superstições: a superstição da inflação, a superstição da estabilidade, a superstição do padrão-ouro. Não hesitava até em empregar a linguagem sarcástica para as esconjurar e preconizava, como condição para que se alcançasse o que a sua doutrina vinha oferecer, a abolição definitiva do padrão-ouro, a indiferença para a estabilidade e, escândalo maior, o incremento da inflação.
Ousado, para muitos apenas atrevido, exposto na «Teoria Geral» numa linguagem prolixa, com frequentes recursos à matematização e em termos dificilmente acessíveis, o raciocínio de Keynes era, todavia, linear e simples. Sempre há, sempre houve períodos de inflação, embora sem a amplitude e a perduração do período presente. E a ciência económica pudera determinar, com segurança, que, numa fase inicial, a inflação faz aumentar a produção e diminuir o desemprego mas que, prolongando-se para lá dessa fase, dá origem aos fenómenos inversos. Daqui concluíram os teorizadores que o que há a fazer é deixar a inflação entregue ao seu espontâneo desenvolvimento até se extinguir por si própria, quando os seus malefícios mostram como ela se tornou insuportável. L. von Mises chega a dizer que a inflação não é um fenómeno económico mas um fenómeno político, ou seja, que tem a sua origem na intervenção da política na economia, mediante a emissão exagerada de moeda, e só na política tem, portanto, o remédio. Keynes preconiza o contrário: o que há a fazer é conservar os efeitos positivos que a inflação oferece na fase inicial, o que se conseguirá conservando os factores que lhe dão origem. Tais factores são o aumento da quantidade da moeda e o aumento dos investimentos.
É fácil aumentar a quantidade da moeda desde que, ao contrário do que acontece no sistema do padrão-ouro, ela não seja considerada uma mercadoria. O que, portanto, há a fazer em primeiro lugar é abolir o padrão-ouro, alvo privilegiado dos sarcasmos de Keynes, e bem assim qualquer outra semelhante garantia que impeça o dinheiro de não ser mais do que um sinal convencional e não se poder emitir sem limite previamente estabelecido. Mas ao que, em concepção alguma, se poderá escapar é à necessária correspondência entre a quantidade da moeda e a quantidade das mercadorias. Segundo a ciência económica, a quantidade da moeda só deve ser aumentada depois de se ter verificado que a quantidade existente não é bastante para as operações resultantes do aumento da quantidade das mercadorias existentes. Ou seja: só quando a quantidade de mercadorias aumenta é que se pode, e deve, aumentar a quantidade do dinheiro. Se não se fizer assim, a moeda emitida a mais não terá mercadorias a que corresponda e não possuirá valor, equivalência ou garantia, pois não encontrará mercadorias pelas quais se troque.
Keynes também aqui inverteu a ordem do processo dizendo que a emissão de moeda, em maior quantidade do que a das mercadorias existentes, dará origem ao investimento, portanto ao aumento da quantidade dos produtos, ou mercadorias, e estes virão garantir à moeda o valor que ele não possuía quando foi emitida.
Claro que é preciso que as novas mercadorias tenham procura, que os produtos cuja quantidade aumentou tenham consumo. Mas também isso se obtém - assegurava Keynes - com a emissão da moeda. Será ela distribuída pelas vias normais: pelos salários, pelos lucros e pelas rendas. Os salários serão, porém, privilegiados porque são eles que, envolvendo o maior número de pessoas, aumentam o poder de consumir na proporção com o aumento dos produtos. O crescimento económico, inicialmente obtido, ficará deste modo assegurado. E como, por outro lado, o aumento dos investimentos, dando origem a novas empresas, aumenta os postos de trabalho, o desemprego não só diminuirá mas também, completado o processo, se estabelece e torna permanente o pleno emprego.
O controlo, regularizado e a correcção do processo fica a cargo do fisco que se destinará, em primeiro lugar, a impedir o entesouramento, isto é, a impedir que os assalariados formem, além das partes que dedicam ao consumo e à poupança, uma terceira parte dos seus salários que entesouram e não consomem nem investem.
É, deste modo, simples e perfeito o processo ou sistema da economia que o keynesianismo propõe. Além de simples e perfeito oferece ainda a vantagem, que as outras versões do intervencionismo não possuem, de convictamente afirmar preservada a livre escolha, a livre iniciativa, enfim, a liberdade do indivíduo. O indivíduo continuaria no centro de todas as decisões, a autonomia de cada um permaneceria inviolável, a disposição ou propriedade do que se possui, sejam coisas seja dinheiro, não deixaria de ser plena, e o Estado limitar-se-ia a emitir quantidades cada vez maiores de moeda que entregaria às mãos de toda a gente. Quando Keynes morreu, em 1946, morria convicto da perfeição e eficácia do sistema que os governos iam começar a fazer seu.
Harry Dexter White (à esquerda) e John Maynard Keynes (à direita). |
Nada disto significa, contudo, que o teorizador tenha sido, nas suas convicções pessoais, um intervencionista. Pelo contrário, Lord Keynes parece ter-se mantido sempre fiel a um certo liberalismo, não só o da tradição inglesa mas o inerente à ciência da economia, e a sua carreira pessoal é a de um capitalista hábil e afortunado. Pôs ele um grande cuidado, uma grande ênfase, em distinguir, nas determinações da «Teoria Geral» que coincidem com os postulados socialistas, as razões puramente económicas, que são as suas, das razões puramente políticas, que são as do socialismo. Quando, por exemplo, preconiza o constante aumento dos salários, não o faz, como os socialistas, por razões de justiça social, mas sim porque os assalariados, constituindo a «classe» mais numerosa, são os que mais consomem e, portanto, mais contribuem para assegurar o aumento da produção. Para a sobrevivência do socialismo, nova vantagem conferiu esta distinção à «Teoria Geral». Torna-a insuspeita de constituir mais uma doutrina de mais uma seita ou partido. Dá-lhe uma imagem de isenção e desinteresse que também seduziu, com o perfume da cientificidade, a «cultura oficial» e fez que o ensino da ciência económica ficasse, em todos os países, abafado pelo keynesianismo. Para esta última sedução muito contribuiu a valorização que o keynesianismo faz da econometria e o impulso que imprimiu às contabilidades nacionais: a primeira, quantificando os fenómenos económicos, coloca a economia ao alcance das inteligências cuja imaturidade as torna presas fáceis da matematização característica das ciências modernas; o segundo, inerente à necessidade que o sistema keynesiano tem de calcular a renda nacional, a quantidade de moeda a emitir sem garantia prévia, as partes dela a distribuir pelos salários, lucros e rendas e a empregar no consumo, na poupança e no entesouramento, abre aos economistas largo terreno para as mais desvairadas ambições de que a rigorosa ciência económica os afasta.
As dramáticas consequências, hoje manifestas, que a adopção do keynesianismo veio a ter, podem considerar-se o contrário do que Lord Keynes previra ou pretendera. Milton Friedman interpreta-as dizendo que uma coisa é o pensamento de Keynes e outra o keynesianismo dos seus epígonos, no qual ele não se reconheceria e seria o primeiro a repudiar. Frederico Hayek explica-as pelo «deficiente conhecimento que Lord Keynes possuía da ciência económica». Certo é, todavia, que o keynesianismo, radicando-se na política da generalidade dos Estados e dominando a generalidade do ensino da economia, conseguiu resistir e sobreviver às críticas irrefutáveis que desde muito cedo lhe foram feitas (in ob. cit, pp. 48-54).
Continua
sábado, 27 de março de 2010
O conflito na economia contemporânea (ii)
Escrito por Orlando Vitorino
1. Keynes: Aumentar a quantidade de moeda emitida sem qualquer limite previamente estabelecido.
Hayek: Acertar o aumento da quantidade de moeda pelo aumento do crescimento real da produção.
Friedman: Limitar a quantidade de moeda, inscrevendo na Constituição o limite optimal dessa quantidade.
2. Keynes: Abandonar definitivamente o padrão-ouro, «velha e ridícula superstição» e bem assim todos os critérios de estabilidade monetária.
Hayek: Manter, como prioridade em qualquer situação, a moeda estável até quando, como hoje acontece, se não possa restabelecer imediatamente o padrão-ouro que é «o melhor de todos os sistemas monetários possíveis».
Friedman: Adoptar, dada a impossibilidade prática de restabelecer o padrão-ouro, um padrão monetário de confiança, dando prioridade, em qualquer situação, à estabilidade monetária.
3. Keynes: Manter a taxa de juro o mais baixa possível.
Hayek: Entregar a taxa de juro ao livre funcionamento do mercado.
Friedman: Indexar a taxa de juro.
4. Keynes: Só o Estado deve emitir moeda.
Hayek: Retirar ao Estado o monopólio da emissão de moeda - que ele sempre utiliza para a emissão de moeda falsa - e estabelecer o direito de cada um escolher livremente a moeda que entenda, direito imediatamente realizável nos países da CEE [actualmente impossível, dada a moeda única e os organismos político-financeiros afins].
Friedman: As diversas formas de crédito e do dinheiro podem compensar os inconvenientes do monopólio da emissão de moeda detido pelo Estado.
5. Keynes: estabelecer o câmbio flutuante de moeda.
Hayek: Estabelecer o câmbio fixo, única garantia que nos resta de que os Governos emitirão moeda estável.
Friedman: Estabelecer o câmbio flutuante da moeda (havendo no entanto uma tendência entre os monetaristas para a adopção do câmbio fixo).
6. Keynes: Adoptar uma política fiscal de impostos progressivos, sobrecarregando os rendimento mais elevados.
Hayek: Adoptar uma política fiscal de impostos proporcionais e mínimos: mínimos, porque está demonstrado que quanto maior é a receita do Estado, maior é a sua intervenção, sempre negativa e nefasta quando não é transitoriamente supletiva; proporcionais, porque está demonstrado que o imposto progressivo faz diminuir a produção.
Friedman: Adoptar uma política fiscal de impostos proporcionais, demonstrado como está que a receita obtida pelo Estado com o imposto progressivo é igual ou inferior à do imposto proporcional (no caso dos EUA, a atribuição progressiva estabelecida entre os 20 e os 30% recolhe uma receita cujo total é o mesmo de uma tributação proporcional fixada em 23,5%).
7. Keynes: Aumentar os investimentos do Estado para compensar a contracção dos investimentos privados (provocada pelas medidas 1 e 6) e aumentar a quantidade dos empregos.
Hayek: Dar aos investimentos do Estado uma função apenas supletiva, demonstrado como está que, para além desses limites supletivos, tais investimentos deslocam trabalhadores para onde o seu trabalho não é útil nem, por conseguinte, perdurável, e fazem aumentar o desemprego.
Friedman: Dar aos investimentos do Estado uma função supletiva e só em obras ou actividades de absoluta necessidade (estradas, correios, etc.), demonstrado como está que os investimentos do Estado só agravam as carências e os problemas que têm o propósito de satisfazer e resolver.
8. Keynes: Não hesitar em provocar e acelerar a inflação que resultará das medidas 1,2,3,4 e 7, porque a inflação é condição para manter o crescimento económico e, sobre isso, alcançar o pleno emprego. Keynes entende:
a) que o desemprego resulta da falta de investimentos e esta resulta do entesouramento;
b) que, ao contrário das conclusões da ciência económica, o crescimento económico pode não dar origem ao aumento de emprego mas pode coexistir, como acontece no capitalismo actual, com uma situação de permanente subemprego;
c) que a inflação pode fazer-se acompanhar de uma diminuição do desemprego caso se mantenham os factores da sua fase inicial, tese que, em 1958, a curva de Phillips, reunindo e comparando dados estatísticos, parecia vir confirmar.
Hayek: Combater, por todos os meios e em todos os casos, a inflação, origem da perturbação do mercado, da desestabilização da economia e do desemprego. O facto de, numa primeira fase ou a «curto prazo», a inflação fazer diminuir o desemprego, só ilude quem ignorar a ciência da economia, pois a longo, senão a médio prazo, o desemprego é consequência inevitável da inflação e tanto mais grave quanto mais prolongada ela for. Por sua vez, o recurso à indexação generalizada é também ilusório, pois apenas pode conseguir retardar as consequências inevitáveis da inflação. Na realidade, os efeitos da inflação não são simultâneos, o que impede a indexação de os travar no seu conjunto. Compensará alguns deles, mas as perturbações continuarão a acumular-se e irá vendo cada vez mais reduzidas as suas potencialidades até se tornar totalmente ineficaz.
Friedman: Aceitar que a inflação é um fenómeno inerente à economia das sociedades contemporâneas mas equilibrá-la com a indexação geral dos preços e demais variáveis económicas. Embora não seja verdade que ao aumento da inflação é paralelo o aumento do emprego (veio a demonstrar-se que a curva de Phillips era inactualizável e apenas correspondia a um certo período), embora não seja verdade que o capitalismo actual e o subdesemprego são solidários (o que o próprio Friedman demonstrou com a teoria da «taxa de desemprego»), embora não seja verdade que a intervenção do Estado é positiva para resolver o problema do desemprego, a inflação é um fenómeno com o qual «nos podemos habituar a viver» desde que a indexação compense os efeitos da inflação, assegurando o funcionamento do mercado.
9. Keynes: O Estado deve definir a política económica em termos de macro-economia, referindo-a, portanto, ao conjunto da economia da nação e desprezando a micro-economia, isto é, as motivações, as finalidades, decisões e interesses dos indivíduos, das famílias e de suas empresas. O desenvolvimento e o equilíbrio dependem do todo que a economia é, não das suas partes. É a distribuição da renda nacional que decide do desemprego. Mediante os impostos, o Estado pode absorver a maior parte da renda nacional que, depois, distribuirá em investimentos públicos, até se alcançar o pleno emprego, e em salários tão elevados quanto possível, não por razões de justiça social, mas porque o conjunto dos assalariados detém a maior capacidade de consumir; o aumento do consumo é condição para o aumento da produção e, por conseguinte, para o pleno emprego.
Hayek: O Estado não deve ter política económica além daquela que se limite a assegurar as condições para que a economia - que é domínio exclusivo dos indivíduos, das famílias e das suas empresas - se desenvolva segundo as regras que lhe são próprias, isto é , livremente. Indo além deste limite, a política económica dos Governos tende sempre para a planificação centralizda da economia que se traduz na servidão dos homens. O pleno emprego - finalidade sempre apresentada para justificar a política económica sem limites - não é mais do que um canto de sereia e é preciso substituí-lo pelo máximo emprego que só se alcança desde que o Estado não intervenha. Os desempregados que continuem a haver poderão ser subsidiados com a receita obtida por um imposto cuja aprovação será periodicamente sujeita a referendo popular.
Friedman: A economia é a articulação dos interesses, actos e decisões dos indivíduos, das famílias e das empresas privadas. Não há isso a que se chama macro-economia e a intervenção do Estado, mediante regulamentações, redistribuições e planificações tem sempre resultados negativos. O pleno emprego é um mito, pois, por um lado, sempre existe, em qualquer regime económico, aquilo a que Friedman chama «a taxa natural de desemprego»; por outro lado, a percentagem de desempregados nunca atinge, na normalidade de uma economia livre, proporções que façam dela um problema crucial e insolúvel (in ob. cit., Cap. I).
Continua
b) QUADRO COMPARATIVO DAS MEDIDAS PRECONIZADAS POR KEYNES, HAYEK E FRIEDMAN
Hayek: Acertar o aumento da quantidade de moeda pelo aumento do crescimento real da produção.
Friedman: Limitar a quantidade de moeda, inscrevendo na Constituição o limite optimal dessa quantidade.
2. Keynes: Abandonar definitivamente o padrão-ouro, «velha e ridícula superstição» e bem assim todos os critérios de estabilidade monetária.
Hayek: Manter, como prioridade em qualquer situação, a moeda estável até quando, como hoje acontece, se não possa restabelecer imediatamente o padrão-ouro que é «o melhor de todos os sistemas monetários possíveis».
Friedman: Adoptar, dada a impossibilidade prática de restabelecer o padrão-ouro, um padrão monetário de confiança, dando prioridade, em qualquer situação, à estabilidade monetária.
3. Keynes: Manter a taxa de juro o mais baixa possível.
Hayek: Entregar a taxa de juro ao livre funcionamento do mercado.
Friedman: Indexar a taxa de juro.
4. Keynes: Só o Estado deve emitir moeda.
Hayek: Retirar ao Estado o monopólio da emissão de moeda - que ele sempre utiliza para a emissão de moeda falsa - e estabelecer o direito de cada um escolher livremente a moeda que entenda, direito imediatamente realizável nos países da CEE [actualmente impossível, dada a moeda única e os organismos político-financeiros afins].
Friedman: As diversas formas de crédito e do dinheiro podem compensar os inconvenientes do monopólio da emissão de moeda detido pelo Estado.
5. Keynes: estabelecer o câmbio flutuante de moeda.
Hayek: Estabelecer o câmbio fixo, única garantia que nos resta de que os Governos emitirão moeda estável.
Friedman: Estabelecer o câmbio flutuante da moeda (havendo no entanto uma tendência entre os monetaristas para a adopção do câmbio fixo).
6. Keynes: Adoptar uma política fiscal de impostos progressivos, sobrecarregando os rendimento mais elevados.
Hayek: Adoptar uma política fiscal de impostos proporcionais e mínimos: mínimos, porque está demonstrado que quanto maior é a receita do Estado, maior é a sua intervenção, sempre negativa e nefasta quando não é transitoriamente supletiva; proporcionais, porque está demonstrado que o imposto progressivo faz diminuir a produção.
Friedman: Adoptar uma política fiscal de impostos proporcionais, demonstrado como está que a receita obtida pelo Estado com o imposto progressivo é igual ou inferior à do imposto proporcional (no caso dos EUA, a atribuição progressiva estabelecida entre os 20 e os 30% recolhe uma receita cujo total é o mesmo de uma tributação proporcional fixada em 23,5%).
7. Keynes: Aumentar os investimentos do Estado para compensar a contracção dos investimentos privados (provocada pelas medidas 1 e 6) e aumentar a quantidade dos empregos.
Hayek: Dar aos investimentos do Estado uma função apenas supletiva, demonstrado como está que, para além desses limites supletivos, tais investimentos deslocam trabalhadores para onde o seu trabalho não é útil nem, por conseguinte, perdurável, e fazem aumentar o desemprego.
Friedman: Dar aos investimentos do Estado uma função supletiva e só em obras ou actividades de absoluta necessidade (estradas, correios, etc.), demonstrado como está que os investimentos do Estado só agravam as carências e os problemas que têm o propósito de satisfazer e resolver.
8. Keynes: Não hesitar em provocar e acelerar a inflação que resultará das medidas 1,2,3,4 e 7, porque a inflação é condição para manter o crescimento económico e, sobre isso, alcançar o pleno emprego. Keynes entende:
a) que o desemprego resulta da falta de investimentos e esta resulta do entesouramento;
b) que, ao contrário das conclusões da ciência económica, o crescimento económico pode não dar origem ao aumento de emprego mas pode coexistir, como acontece no capitalismo actual, com uma situação de permanente subemprego;
c) que a inflação pode fazer-se acompanhar de uma diminuição do desemprego caso se mantenham os factores da sua fase inicial, tese que, em 1958, a curva de Phillips, reunindo e comparando dados estatísticos, parecia vir confirmar.
Hayek: Combater, por todos os meios e em todos os casos, a inflação, origem da perturbação do mercado, da desestabilização da economia e do desemprego. O facto de, numa primeira fase ou a «curto prazo», a inflação fazer diminuir o desemprego, só ilude quem ignorar a ciência da economia, pois a longo, senão a médio prazo, o desemprego é consequência inevitável da inflação e tanto mais grave quanto mais prolongada ela for. Por sua vez, o recurso à indexação generalizada é também ilusório, pois apenas pode conseguir retardar as consequências inevitáveis da inflação. Na realidade, os efeitos da inflação não são simultâneos, o que impede a indexação de os travar no seu conjunto. Compensará alguns deles, mas as perturbações continuarão a acumular-se e irá vendo cada vez mais reduzidas as suas potencialidades até se tornar totalmente ineficaz.
Friedman: Aceitar que a inflação é um fenómeno inerente à economia das sociedades contemporâneas mas equilibrá-la com a indexação geral dos preços e demais variáveis económicas. Embora não seja verdade que ao aumento da inflação é paralelo o aumento do emprego (veio a demonstrar-se que a curva de Phillips era inactualizável e apenas correspondia a um certo período), embora não seja verdade que o capitalismo actual e o subdesemprego são solidários (o que o próprio Friedman demonstrou com a teoria da «taxa de desemprego»), embora não seja verdade que a intervenção do Estado é positiva para resolver o problema do desemprego, a inflação é um fenómeno com o qual «nos podemos habituar a viver» desde que a indexação compense os efeitos da inflação, assegurando o funcionamento do mercado.
John Maynard Keynes |
Hayek: O Estado não deve ter política económica além daquela que se limite a assegurar as condições para que a economia - que é domínio exclusivo dos indivíduos, das famílias e das suas empresas - se desenvolva segundo as regras que lhe são próprias, isto é , livremente. Indo além deste limite, a política económica dos Governos tende sempre para a planificação centralizda da economia que se traduz na servidão dos homens. O pleno emprego - finalidade sempre apresentada para justificar a política económica sem limites - não é mais do que um canto de sereia e é preciso substituí-lo pelo máximo emprego que só se alcança desde que o Estado não intervenha. Os desempregados que continuem a haver poderão ser subsidiados com a receita obtida por um imposto cuja aprovação será periodicamente sujeita a referendo popular.
Friedman: A economia é a articulação dos interesses, actos e decisões dos indivíduos, das famílias e das empresas privadas. Não há isso a que se chama macro-economia e a intervenção do Estado, mediante regulamentações, redistribuições e planificações tem sempre resultados negativos. O pleno emprego é um mito, pois, por um lado, sempre existe, em qualquer regime económico, aquilo a que Friedman chama «a taxa natural de desemprego»; por outro lado, a percentagem de desempregados nunca atinge, na normalidade de uma economia livre, proporções que façam dela um problema crucial e insolúvel (in ob. cit., Cap. I).
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sexta-feira, 26 de março de 2010
O conflito na economia contemporânea (i)
Escrito por Orlando Vitorino
(...) três posições se defrontam: a de J. M. Keynes, a de Frederico Hayek e a de Milton Friedman. Convém, metodicamente, começarmos por enunciar tais posições, de que faremos a seguir uma quadro comparativo das «medidas» que preconizam para, finalmente, descrevermos as suas justificações teóricas.
Podem elas enunciar-se em termos históricos, desde logo se lembrando que a situação histórica contemporânea remonta, como vimos, aos finais do século passado, quando o intervencionismo socialista conseguiu subordinar a economia a finalidades de ordem política, assim a desprendendo - e é esta aspecto que mais convirá fixar - da realidade que lhe é própria e da ciência que dessa realidade fora já adquirida. Mas remontando tão longe, é a partir dos anos 30 que a sua imagem se virá a completar com o desaparecimento das últimas relíquias da situação anterior, o padrão-ouro e o livre-cambismo, com a grande depressão de 1929/31, com a vasta crise de desemprego que se arrastou ao longo dos anos 20, com a tragédia da Segunda Guerra Mundial, com o flagelo da inflação que ainda hoje continua a parecer imparável. Só por si, estes componentes da situação económica deveriam ser mais do que suficientes para condenar de vez o intervencionismo. Mas conseguiu ele salvar a face fazendo impor, através das «culturas oficiais» transmitidas pelos meios académicos, universitários e jornalísticos, falsas interpretações dos seus resultados dando-lhes por causa a liberdade económica (1).
Salvar a face não é, porém, suficiente para sobreviver. E a sobrevivência encontrou-a o intervencionismo numa nova e singular versão que lhe veio dar a famosa «Teoria Geral» de J. M. Keynes, publicada em 1936. Aos governos socialistas ainda instalados no poder, oferecia ela a miragem de simultaneamente obterem - e aí residia a sua singularidade - o crescimento económico e o pleno emprego. Sobre isso, apresentava-se isenta de quaisquer compromissos políticos, nova vantagem sobre as anteriores versões do intervencionismo, todas elas, em especial a socialista, reconhecidos instrumentos ideológicos e partidários. O keynesianismo aparece, pois, como a posição mais responsável pela situação económica contemporânea, aquela em que se colocam a maior parte dos governos e as «culturas oficiais» predominantes.
A segunda posição é a da própria ciência económica que também nos anos 30 saía do ostracismo a que o triunfo das doutrinas socialistas a votaram desde os finais do século passado. Mas no ostracismo encontrou ela a tranquilidade que os seus novos teorizadores aproveitaram para fazer a revisão, a actualização e a ampliação dos «clássicos», ao mesmo tempo que elaboravam uma sistemática demolição de todo o intervencionismo (2).
Esta demolição os isentou da conexões que, até Stuart Mill, foram fatais aos teorizadores clássicos, enquanto a revisão a que procederam os fez remontar, para além de Adam Smith, a David Hume, no qual passaram a situar o ponto de partida da ciência geralmente atribuído ao primeiro. O regresso a David Hume é significativo. Enquanto A. Smith subordinou a formação da ciência económica ao modelo das ciências modernas, fundadas no mecanicismo, na quantificação e na mensuração, D. Hume foi o pensador que demonstrou como as ciências estavam desprovidas do carácter de necessidade que só os fundamentos lógicos permitem adquirir. A famosa demonstração de Hume provocou a não menos famosa contestação de Kant, apresentada como «Crítica da Razão Pura» - que é uma crítica da razão e da lógica aristotélica -, depois desenvolvida no idealismo alemão e sistematizada na «Ciência da Lógica», de Hegel. O pensamento científico tentou, porém, e ainda tenta, manter-se alheado de toda esta questão, continuando a procurar os seus fundamentos na matemática, cujo valor de conhecimento Hegel, como Aristóteles, desdenhava. A demonstração de Hume, depois de resistir à crítica de Kant, mais facilmente tem continuado a resistir ao desenvolvimento das ciências, conforme o reconhece o mais autorizado, e também mais incómodo, pensador científico, A. N. Whitehead, no admirável livro «A Ciência e o Mundo Moderno». Compreende-se, pois, que o regresso até David Hume se traduza na recusa de as vias da renovada ciência económica serem as vias das ciências modernas. Assim se explica que os seus teorizadores, sobretudo Von Mises e F. Hayek, não se cansem de repetir que os fenómenos económicos são essencialmente qualitativos e na generalidade irredutíveis à quantificação e mensuração, analisando, refutando e até ridicularizando os resultados e os métodos da econometria e do contabilismo. Em sentido inverso ao das ciências modernas, têm antes realizado tentativas para situar a economia no domínio da filosofia. São, quase todas, tentativas frustradas. Karl Menger, por exemplo, deixou-se iludir e envolver pelo positivismo lógico, ou logicismo matemático, do Círculo de Viena. Von Mises chegou a conceber uma sistematização filosófica, aliás infeliz, que designou por praxeologia e se deduz da identificação entre a economia e a acção humana. Sistematização semelhante, mas ainda mais infeliz, elaborou Pareto. Tais tentativas têm, no entanto, um significativo invocativo que as pode tornar fecundas. É já o que acontece na poderosa segurança conceptual com que F. Hayek prolonga a teoria da economia numa filosofia do direito ou da política (3).
Ao aliar este prolongamento filosófico com o intransigente rigor científico que herdou de seu mestre Von Mises, Frederico Hayek aparece-nos como o indisputável representante da teoria económica contemporânea.
Duas posições temos, pois, perante a situação actual da economia: a do intervencionismo, na versão que lhe deu J. M. Keynes, e a da economia livre que F. Hayek prolonga numa filosofia do direito. A primeira ainda não deixou de dominar os ambientes políticos, académicos e contabilísticos; a segunda ainda não deixou de concitar a adversidade e afugentar os centros de decisão e de poder, sempre temerosos das intemporais e inabaláveis determinações do saber científico.
Uma terceira posição consideramos ainda: a do chamado monetarismo, representada pelo americano Milton Friedman (4), em volta de quem se formou, nos EUA, mas alargando-se hoje à Europa, sobretudo à Inglaterra e à França, o movimento dos «novos economistas americanos». Compõem-no já várias «escolas», não divergentes na doutrina liberal que a todas é comum, mas distinguindo-se entre si consoante o sector da realidade económica que investigam. De cada uma delas se pode encontrar, na obra de Von Mises, a sugestão, o enunciado ou a ideia que desenvolvem. O que a todas igualmente caracteriza é um rigoroso pragmatismo - que se deve distinguir da precária prática, investigando os fenómenos económicos na sua factual realidade, comparando as soluções que lhes deram as divergentes teorias e apurando qual destas melhor contribuiu para a satisfação das carências e desejos ou para o desenvolvimento da prosperidade. Sempre igualmente têm concluído pela superioridade da economia livre sobre a economia intervencionada (5).
Deve ter-se o cuidado de evitar confundir a posição de M. Friedman com uma posição intermédia e conciliadora entre as duas posições anteriores. Trata-se, antes, de uma hábil e muito eficaz inserção da ciência económica, tal como a representa Hayek, nas conjunturas que aí estão, estruturalmente marcadas por cinquenta anos de keynesianismo. Embora os êxitos práticos das suas doutrinas - um dos quais está ligado à surpreendente recuperação da economia japonesa a seguir à Guerra Mundial - sejam anunciadores da «morte de Keynes» (6), M. Friedman não deixa de afirmar que «somos todos keynesianos». Entende ele que a teoria de Keynes, com os erros que contém e as consequências que teve (os quais, aliás, ele atribui aos epígonos do famoso economista), não se podem apagar de uma vez tanto mais que continua a ser a teoria adoptada pelos governos da maior parte dos países e que as instituições por ela suscitadas ou desenvolvidas - as da segurança social, as da centralização sindicalista, as do controlo da moeda - ainda não deixaram de concitar as esperanças das populações incapazes de compreender como delas estão sendo vítimas.
Para mais facilmente apreciarmos as divergências, e também as convergências, das três posições enunciadas e compreendermos como, a partir delas, se formam as várias e contraditórias imagens da situação económica em que vivemos, vamos traçar um quadro comparativo das propostas, ou das «medidas», que, para a solução de algumas das principais componentes daquela situação, os três representativos teorizadores nos oferecem (in Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 41-47).
Notas:
(1) Um exemplo destas falsas interpretações é o da depressão de 1929/31. Foi preciso esperar pela publicação, em 1968, do livro de M. Friedman e Anna J. Schwartz, «A Monetary History of the United States, 1867-1960», para ver desfeita a versão, durante tantos anos aceite sem qualquer crítica, de que ela fora consequência da liberdade económica e só pudera ser vencida com o controlo da economia estabelecido pelo «new deal» de Roosevelt. Naquele livro notável, os seus autores demonstraram, em todas as minúcias, como a depressão se deveu à intervenção do Estado, ou suas agência, sem a qual ela nunca teria atingido as proporções que atingiu e não teria passado de uma das cíclicas e transitórias crises a que a economia está periodicamente sujeita. Já antes de Friedman, L. von Mises enunciara esta explicação e F. Hayek, então jovem economista, notabilizara-se por ter previsto, em 1927, a crise de 1929.
Outro exemplo é o da Segunda Guerra Mundial, que foi uma guerra do socialismo. Com efeito, ninguém pode ignorar ter ele começado por uma aliança entre o governo socialista alemão e o governo socialista russo, entre o nacional-socialismo e o Internacional-socialismo. Ninguém pode também ignorar que o final da guerra foi selado com o Tratado de Ialta, onde se registou o entendimento entre o socialismo totalitário russo e o intervencionismo estatizante iniciado por Roosevelt nos EUA. O terceiro parceiro do Tratado, a Inglaterra, vivia então num regime estabelecido, para o tempo de guerra e logo prolongado no socialismo do Partido Trabalhista, pelo Plano Beveridge que F. Hayek, aliás seu colaborador técnico, mostra, no livro «O Caminho para a Servidão», seguir as vias do nacional-socialismo acabado de ser vencido militarmente.
(2) Quase todos os principais representantes da renovada ciência económica escreveram livros de refutação do socialismo, tais como: «O Socialismo», de L. von Mises; «O Sistema Socialista», de V. Pareto; «O Caminho para a Servidão», de F. Hayek. São todos eles livros que os leitores dificilmente encontrarão no mercado livreiro. A história, em certo aspecto divertida e apesar de tudo famosa, da demonstração de von Mises quanto à inviabilidade de uma economia socialista, é bem elucidativa de como o socialismo procura fazer ignorar tudo o que o contraria. Publicada a demonstração numa revista austríaca em 1925, foi ela mantida ignorada até que, quinze anos depois, uma revista inglesa a transcreve. Fez-se então correr, nos meios académicos à la page, que a demonstração havia já sido totalmente refutada no livro de um economista búlgaro que jamais ninguém viu. O próprio Von Mises conta, divertido e galhofeiro, esta história no seu livro «Le Socialisme», ed. francesa de Lib. Medicis, Paris, 1937.
(3) Ver F. Hayek, «Law, Legislation and Liberty», ed. Routledge & Kegan Paul, London, 1973.
(4) A designação de monetarismo provém de um aspecto da doutrina de Friedman: a de que o combate à inflação, flagelo das sociedades contemporâneas criado pelo keynesianismo, se pode conduzir com eficácia mediante a política monetária.
(5) Alguns exemplos: onde se encontram, nos EUA, as melhores condições de habitação é no Estado de Michigan, onde a construção civil não está sujeita a qualquer regulamentação do Estado; os transportes aéreos de maior segurança, melhor comodidade, mais baixos preços e mais certos horários, encontram-se numa companhia de aviação do Estado da Califórnia que está ao abrigo das regulamentações federais estabelecidas, precisamente, para assegurarem aqueles objectivos. Trata-se, neste como em muitos outros exemplos, de casos sectoriais. Mas o «movimento» estuda também fenómenos de grande amplitude social, política e histórica, como acontece com a «escola dos direitos de propriedade» ou a do «public choice». E em todos os casos conclui pela confirmação da superioridade da economia livre. O leitor pode encontrar uma inteligente e bem informada exposição dos «novos economistas americanos» no livro de Henri Lepage «Demain le Capitalisme», ed. Lib. Generale Française Pluriel, Paris, 1978; há uma tradução portuguesa, ed. Europa América, Lisboa, 1981.
(6) É este o título do capítulo sobre Friedman no livro de H. Lepage citado na nota anterior.
Continua
a) As três posições
Podem elas enunciar-se em termos históricos, desde logo se lembrando que a situação histórica contemporânea remonta, como vimos, aos finais do século passado, quando o intervencionismo socialista conseguiu subordinar a economia a finalidades de ordem política, assim a desprendendo - e é esta aspecto que mais convirá fixar - da realidade que lhe é própria e da ciência que dessa realidade fora já adquirida. Mas remontando tão longe, é a partir dos anos 30 que a sua imagem se virá a completar com o desaparecimento das últimas relíquias da situação anterior, o padrão-ouro e o livre-cambismo, com a grande depressão de 1929/31, com a vasta crise de desemprego que se arrastou ao longo dos anos 20, com a tragédia da Segunda Guerra Mundial, com o flagelo da inflação que ainda hoje continua a parecer imparável. Só por si, estes componentes da situação económica deveriam ser mais do que suficientes para condenar de vez o intervencionismo. Mas conseguiu ele salvar a face fazendo impor, através das «culturas oficiais» transmitidas pelos meios académicos, universitários e jornalísticos, falsas interpretações dos seus resultados dando-lhes por causa a liberdade económica (1).
Salvar a face não é, porém, suficiente para sobreviver. E a sobrevivência encontrou-a o intervencionismo numa nova e singular versão que lhe veio dar a famosa «Teoria Geral» de J. M. Keynes, publicada em 1936. Aos governos socialistas ainda instalados no poder, oferecia ela a miragem de simultaneamente obterem - e aí residia a sua singularidade - o crescimento económico e o pleno emprego. Sobre isso, apresentava-se isenta de quaisquer compromissos políticos, nova vantagem sobre as anteriores versões do intervencionismo, todas elas, em especial a socialista, reconhecidos instrumentos ideológicos e partidários. O keynesianismo aparece, pois, como a posição mais responsável pela situação económica contemporânea, aquela em que se colocam a maior parte dos governos e as «culturas oficiais» predominantes.
A segunda posição é a da própria ciência económica que também nos anos 30 saía do ostracismo a que o triunfo das doutrinas socialistas a votaram desde os finais do século passado. Mas no ostracismo encontrou ela a tranquilidade que os seus novos teorizadores aproveitaram para fazer a revisão, a actualização e a ampliação dos «clássicos», ao mesmo tempo que elaboravam uma sistemática demolição de todo o intervencionismo (2).
Esta demolição os isentou da conexões que, até Stuart Mill, foram fatais aos teorizadores clássicos, enquanto a revisão a que procederam os fez remontar, para além de Adam Smith, a David Hume, no qual passaram a situar o ponto de partida da ciência geralmente atribuído ao primeiro. O regresso a David Hume é significativo. Enquanto A. Smith subordinou a formação da ciência económica ao modelo das ciências modernas, fundadas no mecanicismo, na quantificação e na mensuração, D. Hume foi o pensador que demonstrou como as ciências estavam desprovidas do carácter de necessidade que só os fundamentos lógicos permitem adquirir. A famosa demonstração de Hume provocou a não menos famosa contestação de Kant, apresentada como «Crítica da Razão Pura» - que é uma crítica da razão e da lógica aristotélica -, depois desenvolvida no idealismo alemão e sistematizada na «Ciência da Lógica», de Hegel. O pensamento científico tentou, porém, e ainda tenta, manter-se alheado de toda esta questão, continuando a procurar os seus fundamentos na matemática, cujo valor de conhecimento Hegel, como Aristóteles, desdenhava. A demonstração de Hume, depois de resistir à crítica de Kant, mais facilmente tem continuado a resistir ao desenvolvimento das ciências, conforme o reconhece o mais autorizado, e também mais incómodo, pensador científico, A. N. Whitehead, no admirável livro «A Ciência e o Mundo Moderno». Compreende-se, pois, que o regresso até David Hume se traduza na recusa de as vias da renovada ciência económica serem as vias das ciências modernas. Assim se explica que os seus teorizadores, sobretudo Von Mises e F. Hayek, não se cansem de repetir que os fenómenos económicos são essencialmente qualitativos e na generalidade irredutíveis à quantificação e mensuração, analisando, refutando e até ridicularizando os resultados e os métodos da econometria e do contabilismo. Em sentido inverso ao das ciências modernas, têm antes realizado tentativas para situar a economia no domínio da filosofia. São, quase todas, tentativas frustradas. Karl Menger, por exemplo, deixou-se iludir e envolver pelo positivismo lógico, ou logicismo matemático, do Círculo de Viena. Von Mises chegou a conceber uma sistematização filosófica, aliás infeliz, que designou por praxeologia e se deduz da identificação entre a economia e a acção humana. Sistematização semelhante, mas ainda mais infeliz, elaborou Pareto. Tais tentativas têm, no entanto, um significativo invocativo que as pode tornar fecundas. É já o que acontece na poderosa segurança conceptual com que F. Hayek prolonga a teoria da economia numa filosofia do direito ou da política (3).
Ao aliar este prolongamento filosófico com o intransigente rigor científico que herdou de seu mestre Von Mises, Frederico Hayek aparece-nos como o indisputável representante da teoria económica contemporânea.
Duas posições temos, pois, perante a situação actual da economia: a do intervencionismo, na versão que lhe deu J. M. Keynes, e a da economia livre que F. Hayek prolonga numa filosofia do direito. A primeira ainda não deixou de dominar os ambientes políticos, académicos e contabilísticos; a segunda ainda não deixou de concitar a adversidade e afugentar os centros de decisão e de poder, sempre temerosos das intemporais e inabaláveis determinações do saber científico.
Uma terceira posição consideramos ainda: a do chamado monetarismo, representada pelo americano Milton Friedman (4), em volta de quem se formou, nos EUA, mas alargando-se hoje à Europa, sobretudo à Inglaterra e à França, o movimento dos «novos economistas americanos». Compõem-no já várias «escolas», não divergentes na doutrina liberal que a todas é comum, mas distinguindo-se entre si consoante o sector da realidade económica que investigam. De cada uma delas se pode encontrar, na obra de Von Mises, a sugestão, o enunciado ou a ideia que desenvolvem. O que a todas igualmente caracteriza é um rigoroso pragmatismo - que se deve distinguir da precária prática, investigando os fenómenos económicos na sua factual realidade, comparando as soluções que lhes deram as divergentes teorias e apurando qual destas melhor contribuiu para a satisfação das carências e desejos ou para o desenvolvimento da prosperidade. Sempre igualmente têm concluído pela superioridade da economia livre sobre a economia intervencionada (5).
Deve ter-se o cuidado de evitar confundir a posição de M. Friedman com uma posição intermédia e conciliadora entre as duas posições anteriores. Trata-se, antes, de uma hábil e muito eficaz inserção da ciência económica, tal como a representa Hayek, nas conjunturas que aí estão, estruturalmente marcadas por cinquenta anos de keynesianismo. Embora os êxitos práticos das suas doutrinas - um dos quais está ligado à surpreendente recuperação da economia japonesa a seguir à Guerra Mundial - sejam anunciadores da «morte de Keynes» (6), M. Friedman não deixa de afirmar que «somos todos keynesianos». Entende ele que a teoria de Keynes, com os erros que contém e as consequências que teve (os quais, aliás, ele atribui aos epígonos do famoso economista), não se podem apagar de uma vez tanto mais que continua a ser a teoria adoptada pelos governos da maior parte dos países e que as instituições por ela suscitadas ou desenvolvidas - as da segurança social, as da centralização sindicalista, as do controlo da moeda - ainda não deixaram de concitar as esperanças das populações incapazes de compreender como delas estão sendo vítimas.
Para mais facilmente apreciarmos as divergências, e também as convergências, das três posições enunciadas e compreendermos como, a partir delas, se formam as várias e contraditórias imagens da situação económica em que vivemos, vamos traçar um quadro comparativo das propostas, ou das «medidas», que, para a solução de algumas das principais componentes daquela situação, os três representativos teorizadores nos oferecem (in Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983, pp. 41-47).
Notas:
(1) Um exemplo destas falsas interpretações é o da depressão de 1929/31. Foi preciso esperar pela publicação, em 1968, do livro de M. Friedman e Anna J. Schwartz, «A Monetary History of the United States, 1867-1960», para ver desfeita a versão, durante tantos anos aceite sem qualquer crítica, de que ela fora consequência da liberdade económica e só pudera ser vencida com o controlo da economia estabelecido pelo «new deal» de Roosevelt. Naquele livro notável, os seus autores demonstraram, em todas as minúcias, como a depressão se deveu à intervenção do Estado, ou suas agência, sem a qual ela nunca teria atingido as proporções que atingiu e não teria passado de uma das cíclicas e transitórias crises a que a economia está periodicamente sujeita. Já antes de Friedman, L. von Mises enunciara esta explicação e F. Hayek, então jovem economista, notabilizara-se por ter previsto, em 1927, a crise de 1929.
Outro exemplo é o da Segunda Guerra Mundial, que foi uma guerra do socialismo. Com efeito, ninguém pode ignorar ter ele começado por uma aliança entre o governo socialista alemão e o governo socialista russo, entre o nacional-socialismo e o Internacional-socialismo. Ninguém pode também ignorar que o final da guerra foi selado com o Tratado de Ialta, onde se registou o entendimento entre o socialismo totalitário russo e o intervencionismo estatizante iniciado por Roosevelt nos EUA. O terceiro parceiro do Tratado, a Inglaterra, vivia então num regime estabelecido, para o tempo de guerra e logo prolongado no socialismo do Partido Trabalhista, pelo Plano Beveridge que F. Hayek, aliás seu colaborador técnico, mostra, no livro «O Caminho para a Servidão», seguir as vias do nacional-socialismo acabado de ser vencido militarmente.
(2) Quase todos os principais representantes da renovada ciência económica escreveram livros de refutação do socialismo, tais como: «O Socialismo», de L. von Mises; «O Sistema Socialista», de V. Pareto; «O Caminho para a Servidão», de F. Hayek. São todos eles livros que os leitores dificilmente encontrarão no mercado livreiro. A história, em certo aspecto divertida e apesar de tudo famosa, da demonstração de von Mises quanto à inviabilidade de uma economia socialista, é bem elucidativa de como o socialismo procura fazer ignorar tudo o que o contraria. Publicada a demonstração numa revista austríaca em 1925, foi ela mantida ignorada até que, quinze anos depois, uma revista inglesa a transcreve. Fez-se então correr, nos meios académicos à la page, que a demonstração havia já sido totalmente refutada no livro de um economista búlgaro que jamais ninguém viu. O próprio Von Mises conta, divertido e galhofeiro, esta história no seu livro «Le Socialisme», ed. francesa de Lib. Medicis, Paris, 1937.
(3) Ver F. Hayek, «Law, Legislation and Liberty», ed. Routledge & Kegan Paul, London, 1973.
(4) A designação de monetarismo provém de um aspecto da doutrina de Friedman: a de que o combate à inflação, flagelo das sociedades contemporâneas criado pelo keynesianismo, se pode conduzir com eficácia mediante a política monetária.
(5) Alguns exemplos: onde se encontram, nos EUA, as melhores condições de habitação é no Estado de Michigan, onde a construção civil não está sujeita a qualquer regulamentação do Estado; os transportes aéreos de maior segurança, melhor comodidade, mais baixos preços e mais certos horários, encontram-se numa companhia de aviação do Estado da Califórnia que está ao abrigo das regulamentações federais estabelecidas, precisamente, para assegurarem aqueles objectivos. Trata-se, neste como em muitos outros exemplos, de casos sectoriais. Mas o «movimento» estuda também fenómenos de grande amplitude social, política e histórica, como acontece com a «escola dos direitos de propriedade» ou a do «public choice». E em todos os casos conclui pela confirmação da superioridade da economia livre. O leitor pode encontrar uma inteligente e bem informada exposição dos «novos economistas americanos» no livro de Henri Lepage «Demain le Capitalisme», ed. Lib. Generale Française Pluriel, Paris, 1978; há uma tradução portuguesa, ed. Europa América, Lisboa, 1981.
(6) É este o título do capítulo sobre Friedman no livro de H. Lepage citado na nota anterior.
Continua
quinta-feira, 25 de março de 2010
Guerra e Paz
quarta-feira, 24 de março de 2010
O comunismo é o supremo inimigo da liberdade e da humanidade
Escrito por Fernando Pessoa
Ao contrário do catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema - o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.
O comunismo não é uma doutrina porque é uma anti-doutrina, ou uma contra-doutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental - isto é de civilização e de cultura -, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem (in Textos Filosóficos, Editorial Nova Ática, Vol. I, 2006, pp. 141-142).
Ao contrário do catolicismo, o comunismo não tem uma doutrina. Enganam-se os que supõem que ele a tem. O catolicismo é um sistema dogmático perfeitamente definido e compreensível, quer teologicamente, quer sociologicamente. O comunismo não é um sistema: é um dogmatismo sem sistema - o dogmatismo informe da brutalidade e da dissolução. Se o que há de lixo moral e mental em todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, e com ele se formar uma figura gigantesca, tal seria a figura do comunismo, inimigo supremo da liberdade e da humanidade, como o é tudo quanto dorme nos baixos instintos que se escondem em cada um de nós.
O comunismo não é uma doutrina porque é uma anti-doutrina, ou uma contra-doutrina. Tudo quanto o homem tem conquistado, até hoje, de espiritualidade moral e mental - isto é de civilização e de cultura -, tudo isso ele inverte para formar a doutrina que não tem (in Textos Filosóficos, Editorial Nova Ática, Vol. I, 2006, pp. 141-142).
terça-feira, 23 de março de 2010
Frederico Hayek em Lisboa (ii)
Escrito por Orlando Vitorino
Na 2.ª Conferência, Frederico Hayek falou do liberalismo que surgiu na Inglaterra durante o Séc. XVII e do liberalismo que, em imitação do inglês, surgiu em França durante o Séc. XVIII e se difundiu nos países latinos. Há, pois, um liberalismo inglês e um liberalismo francês. O primeiro tem por principais representantes Locke, Hume e Adam Smith; os principais representantes do segundo são Voltaire e Rousseau. Algo de fundamental os distingue no entanto.
O êxito do liberalismo inglês assentou na ausência de leis escritas e na efectiva imitação dos poderes do rei, do estado ou do governo. Os franceses não atenderam a esse facto decisivo e entenderam que o liberalismo se poderia instituir através da formulação de leis que, exprimindo o que é cartesianamente racional, acabam por apontar para o controlo da vida social pela vontade.
Na tradição inglesa, o liberalismo deu prioridade à liberdade de acção dos indivíduos de acordo com os seus conhecimentos e preferências, e teve um desenvolvimento espontãneo. Na tradição francesa, a liberdade reduziu-se à liberdade de pensamento e de expressão, o que está errado porque essa liberdade não pode existir sem a liberdade de acção. Em vez de ser espontâneo, como o inglês, o liberalismo francês é «construtivista».
Diversas foram as conclusões destas duas correntes liberais: para a corrente francesa, nenhum sistema será bom se não for planeado racionalmente por uma autoridade suprema e, em consequência, o governo impõe a sua vontade aos indivíduos; para a corrente inglesa, a liberdade individual é soberana e é ela que permite a utilização social dos mais vastos conhecimentos e informações: caso se deixe a cada indivíduo a possibilidade de utilizar a sua inteligência, gera-se uma ordem espontânea na qual se combinam os inúmeros conhecimentos de que cada indivíduo dispõe e estão espalhados por todos.
Ninguém pode desejar uma ordem que, como querem os liberais franceses, seja o resultado da imposição de uma vontade. A ordem desejável é aquela que, como defendem os liberais ingleses, provém da colaboração espontânea que, dentro de um sistema jurídico de regras gerais, cada indivíduo dá com a sua acção (até sem saber que a dá).
No sector da economia, o liberalismo inglês coincide com o sistema de mercado. É esse o sistema em que, utilizando a sua liberdade de acção, cada indivíduo é portador de conhecimentos e de informações que se traduzem em preços de mercado. Ora a fonte de riqueza da sociedade moderna reside, precisamente, em poder ela utilizar o máximo de informações e conhecimentos. O mercado dispõe, assim, daquilo que nenhuma autoridade pode possuir e só ele constitui o instrumento de comunicação capaz de criar o maior benefício no interesse geral.
Nas intervenções que se seguiram a esta 2.ª Conferência, foi especialmente significativa a do Dr. Soares Martinez, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, que declarou:
a) que, na generalidade dos países, 50% da economia está nacionalizada; como poderá, portanto, estabelecer neles o Prof. Hayek o sistema de concorrência que preconiza?
b) que a «lei marxista da concentração capitalista» é irrefutável; como poderá, portanto, ser viável o liberalismo?
c) que o marxismo é inteiramente válido no domínio económico e só é refutável no domínio do social, na hierarquia de valores sociais que estabelece.
F. Hayek respondeu com nitidez sumária e indisputável a estas declarações de Soares Martinez. Mas o que há nelas de significativo é virem confirmar a tese - exposta no n.º 3 da «Escola Formal» - de que, entre nós, a distinção entre capitalismo e socialismo consiste apenas no seguinte: o capitalismo separa as entidades que dispõem do poder económico e dominam o Estado, os plutocratas, e as entidades que representam o Estado, os governantes; o socialismo reúne nas mesmas entidades os senhores do governo e os senhores da economia, os que representam o Estado e os que dominam o Estado; no capitalismo, «a hierarquia social dos valores» (para empregar a expressão do Dr. Soares Martinez) é independente da hierarquia política ou burocrática; no socialismo, a hierarquia social indentifica-se com a hierarquia burocrática ou política. O regime adoptado pelo Dr. Soares Martinez é o que vigorou até ao 25 de Abril; o regime advogado pelos socialistas é o que vigora desde o 25 de Abril. Tudo o mais é, para ambos, igual: o planeamento da economia, o controlo da produção, a negação da propriedade (para uns «de facto», para outros «de direito»). Para ambos, a economia deve reger-se pelo marxismo. Para ambos, a marcha ou os ventos da história são inexoráveis e conduzem inexoravelmente à nacionalização e à colectivização de toda a acção humana, agora já em 50%, brevemente em 100%. A ambos é comum o horror ao liberalismo, à liberdade, ao indivíduo.
De registar ainda que o Dr. Soares Martinez é professor da Faculdade de Direito e, por sinal, um dos professores que mais resistiu às organizações socialistas ou comunistas dos estudantes, o que lhe valeu a hostilidade da poderosa máquina de propaganda do socialismo. Mais significativo se torna, portanto, que um homem assim hostilizado pelos socialistas organizados não consiga desprender-se dos quadros mentais socialistas que dominam o ensino universitário há largos anos e venha agora defender, perante Frederico Hayek, a irrefutabilidade do marxismo na economia. A «Escola Formal» não podia encontrar melhor confirmação da descrição que fez, no seu n.º 2, do carácter estruturalmente marxista que, desde alguns decénios adoptou, o ensino superior em Portugal. Esse carácter é o principal factor da actual socialização do país.
O que Frederico Hayek respondeu ao Dr. Soares Martinez foi isto:
- quanto à dificuldade de estabelecer o sistema de concorrência nos países que já nacionalizaram 50% da economia, Hayek observou que mais difícil seria estabelecê-lo se já estivessem nacionalizados 100% da economia.
- quanto às objecções levantadas pelo sistema marxista da economia, Hayek observou que todo esse sistema, de princípio a fim, está errado.
Na assistência à 3.ª Conferência distinguiam-se altas personalidades do «establishment», algumas com primaciais responsabilidades no domínio da economia: Jacinto Nunes, cujo prestígio de economista o torna permanentemente indigitado para primeiro-ministro de um governo de salvação; João Salgueiro, administrador do Banco de Portugal; Silva Lopes, governador do Banco de Portugal e principal dirigente português das negociações do «grande empréstimo» com o Fundo Monetário Internacional; Garcia dos Santos, da Presidência da República; Vasco de Melo, presidente da CIP; Valdez dos Santos, secretário-geral do renovado Partido da Democracia Cristã; Sá Machado, Vice-Presidente da Assembleia da República; diversos embaixadores; Natália Correia, Borges de Macedo, Manuel de Portugal, José Hipólito, Nuno Sampaio, António Telmo e outros cujos nomes valem mais pelo que são do que pelas funções que exercem.
Duas destas personalidades manifestaram-se, durante a conferência, de modo intempestivo. Foram elas o Embaixador de França, que nos dizem ser um velho socialista e o Dr. Silva Lopes, que nos dizem ser um novo socialista. Ambos se ergueram ostensivamente a meio da conferência, abandonando a sala e manifestando depois, nos corredores, a sua indignação perante as afirmações de Frederico Hayek só porque eram anti-socialistas. Deste modo, o velho socialismo francês e o novo socialismo português se recusam a toda a discussão e diálogo, fogem à crítica a que sabem não poder resistir, se refugiam na indignação das máscaras morais sem conteúdo e, suposto em tudo isto, defendem a restauração da censura que de todos os incómodos os protegerá. Deste modo ambos reconhecem como o socialismo já não é mais do que uma doutrina para campanhas eleitorais dirigidas a um pobre povo ao qual previamente se recusa a informação séria e a possibilidade de reflectir e apreciar.
Na terceira conferência que realizou, Frederico Hayek ocupou-se da democracia. Começou por dizer que a democracia é um belo e nobre ideal. Como método de mudança pacífica, tem um valor inestimável. É muito importante podermo-nos livrar de um governo com o qual não concordamos e, para isso, o sistema democrático é insubstituível.
Todavia, a democracia falhou. Em todo o mundo se sente e se manifesta uma profunda desilusão com a democracia. O motivo desta desilusão não reside na democracia em si, no seu ideal e no seu princípio, mas sim nos processos a que ela recorreu, nos caminhos por onde seguiu. Falharam as tentativas para limitar os poderes do governo, e um governo com poderes ilimitados, seja ele democrático ou não, é sempre abominável.
O erro fundamental que levou à frustração da democracia é a identificação do poder legislativo e do poder governativo.
Destinada a fazer leis, a Assembleia Legislativa ignora o que é a lei, ignora que as leis exprimem regras gerais aplicáveis a toda a gente em circunstâncias indefinidas, e passou a considerar como leis todas as decisões, todas as concessões de certos benefícios a determinados grupos e em circunstâncias bem definidas, permitindo que qualquer regra arbitrária possa chamar-se lei.
Destinada a representar a opinião do povo que só pode ser expressa por regras gerais, ou leis no seu verdadeiro sentido, a Assembleia Legislativa passou a obedecer, não à opinião, mas à vontade dos eleitores. É a Rousseau que se deve esta transferência.
Obedecendo à vontade dos eleitores e confundindo a lei com qualquer decisão arbitrária, a Assembleia Legislativa passou a dispor de poderes ilimitados de governação, tornou-se omnipotente. Ora uma entidade com poderes ilimitados só pode ter o apoio de certos grupos. Tem, para isso, de conceder a certos indivíduos certos benefícios. Omnipotente, com poderes para atribuir todos os privilégios, a Assembleia Legislativa é simultaneamente fraca porque não pode recusar os benefícios que tem o poder de conceder aos grupos que lhe asseguram o apoio da maioria. A maioria assim obtida é pior do que um governo autoritário e autocrático, porque esse, ao menos, ainda pode obedecer a certos princípios, ao passo que uma assembleia democrática não o poderá fazer.
Não se pode atribuir aos políticos a culpa desta situação, porque não podem fugir a ela, mesmo quando o desejem, sujeitos como estão a uma concorrência eleitoral legalizada. Para conseguirem votos, para obterem o apoio da maioria, os políticos têm de proteger certos grupos e conceder-lhes benefícios.
Foi a seguir a esta descrição dos caminhos errados que a democracia segue, que Frederico Hayek expôs a sua concepção da limitação dos poderes governativos, da constituição de duas Câmaras ou Parlamentos, dos benefícios do Senado (in ob. cit., pp. 17-19).
9. Os dois liberalismos
O êxito do liberalismo inglês assentou na ausência de leis escritas e na efectiva imitação dos poderes do rei, do estado ou do governo. Os franceses não atenderam a esse facto decisivo e entenderam que o liberalismo se poderia instituir através da formulação de leis que, exprimindo o que é cartesianamente racional, acabam por apontar para o controlo da vida social pela vontade.
Na tradição inglesa, o liberalismo deu prioridade à liberdade de acção dos indivíduos de acordo com os seus conhecimentos e preferências, e teve um desenvolvimento espontãneo. Na tradição francesa, a liberdade reduziu-se à liberdade de pensamento e de expressão, o que está errado porque essa liberdade não pode existir sem a liberdade de acção. Em vez de ser espontâneo, como o inglês, o liberalismo francês é «construtivista».
Diversas foram as conclusões destas duas correntes liberais: para a corrente francesa, nenhum sistema será bom se não for planeado racionalmente por uma autoridade suprema e, em consequência, o governo impõe a sua vontade aos indivíduos; para a corrente inglesa, a liberdade individual é soberana e é ela que permite a utilização social dos mais vastos conhecimentos e informações: caso se deixe a cada indivíduo a possibilidade de utilizar a sua inteligência, gera-se uma ordem espontânea na qual se combinam os inúmeros conhecimentos de que cada indivíduo dispõe e estão espalhados por todos.
Ninguém pode desejar uma ordem que, como querem os liberais franceses, seja o resultado da imposição de uma vontade. A ordem desejável é aquela que, como defendem os liberais ingleses, provém da colaboração espontânea que, dentro de um sistema jurídico de regras gerais, cada indivíduo dá com a sua acção (até sem saber que a dá).
No sector da economia, o liberalismo inglês coincide com o sistema de mercado. É esse o sistema em que, utilizando a sua liberdade de acção, cada indivíduo é portador de conhecimentos e de informações que se traduzem em preços de mercado. Ora a fonte de riqueza da sociedade moderna reside, precisamente, em poder ela utilizar o máximo de informações e conhecimentos. O mercado dispõe, assim, daquilo que nenhuma autoridade pode possuir e só ele constitui o instrumento de comunicação capaz de criar o maior benefício no interesse geral.
10. A intervenção de um professor de direito ou a manipulação marxista da universidade portuguesa
Nas intervenções que se seguiram a esta 2.ª Conferência, foi especialmente significativa a do Dr. Soares Martinez, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, que declarou:
a) que, na generalidade dos países, 50% da economia está nacionalizada; como poderá, portanto, estabelecer neles o Prof. Hayek o sistema de concorrência que preconiza?
b) que a «lei marxista da concentração capitalista» é irrefutável; como poderá, portanto, ser viável o liberalismo?
c) que o marxismo é inteiramente válido no domínio económico e só é refutável no domínio do social, na hierarquia de valores sociais que estabelece.
F. Hayek respondeu com nitidez sumária e indisputável a estas declarações de Soares Martinez. Mas o que há nelas de significativo é virem confirmar a tese - exposta no n.º 3 da «Escola Formal» - de que, entre nós, a distinção entre capitalismo e socialismo consiste apenas no seguinte: o capitalismo separa as entidades que dispõem do poder económico e dominam o Estado, os plutocratas, e as entidades que representam o Estado, os governantes; o socialismo reúne nas mesmas entidades os senhores do governo e os senhores da economia, os que representam o Estado e os que dominam o Estado; no capitalismo, «a hierarquia social dos valores» (para empregar a expressão do Dr. Soares Martinez) é independente da hierarquia política ou burocrática; no socialismo, a hierarquia social indentifica-se com a hierarquia burocrática ou política. O regime adoptado pelo Dr. Soares Martinez é o que vigorou até ao 25 de Abril; o regime advogado pelos socialistas é o que vigora desde o 25 de Abril. Tudo o mais é, para ambos, igual: o planeamento da economia, o controlo da produção, a negação da propriedade (para uns «de facto», para outros «de direito»). Para ambos, a economia deve reger-se pelo marxismo. Para ambos, a marcha ou os ventos da história são inexoráveis e conduzem inexoravelmente à nacionalização e à colectivização de toda a acção humana, agora já em 50%, brevemente em 100%. A ambos é comum o horror ao liberalismo, à liberdade, ao indivíduo.
De registar ainda que o Dr. Soares Martinez é professor da Faculdade de Direito e, por sinal, um dos professores que mais resistiu às organizações socialistas ou comunistas dos estudantes, o que lhe valeu a hostilidade da poderosa máquina de propaganda do socialismo. Mais significativo se torna, portanto, que um homem assim hostilizado pelos socialistas organizados não consiga desprender-se dos quadros mentais socialistas que dominam o ensino universitário há largos anos e venha agora defender, perante Frederico Hayek, a irrefutabilidade do marxismo na economia. A «Escola Formal» não podia encontrar melhor confirmação da descrição que fez, no seu n.º 2, do carácter estruturalmente marxista que, desde alguns decénios adoptou, o ensino superior em Portugal. Esse carácter é o principal factor da actual socialização do país.
O que Frederico Hayek respondeu ao Dr. Soares Martinez foi isto:
- quanto à dificuldade de estabelecer o sistema de concorrência nos países que já nacionalizaram 50% da economia, Hayek observou que mais difícil seria estabelecê-lo se já estivessem nacionalizados 100% da economia.
- quanto às objecções levantadas pelo sistema marxista da economia, Hayek observou que todo esse sistema, de princípio a fim, está errado.
11. Um embaixador de França, um governador do Banco de Portugal, ou como procedem os socialistas
Duas destas personalidades manifestaram-se, durante a conferência, de modo intempestivo. Foram elas o Embaixador de França, que nos dizem ser um velho socialista e o Dr. Silva Lopes, que nos dizem ser um novo socialista. Ambos se ergueram ostensivamente a meio da conferência, abandonando a sala e manifestando depois, nos corredores, a sua indignação perante as afirmações de Frederico Hayek só porque eram anti-socialistas. Deste modo, o velho socialismo francês e o novo socialismo português se recusam a toda a discussão e diálogo, fogem à crítica a que sabem não poder resistir, se refugiam na indignação das máscaras morais sem conteúdo e, suposto em tudo isto, defendem a restauração da censura que de todos os incómodos os protegerá. Deste modo ambos reconhecem como o socialismo já não é mais do que uma doutrina para campanhas eleitorais dirigidas a um pobre povo ao qual previamente se recusa a informação séria e a possibilidade de reflectir e apreciar.
12. Os caminhos da democracia, não a democracia, estão errados
Na terceira conferência que realizou, Frederico Hayek ocupou-se da democracia. Começou por dizer que a democracia é um belo e nobre ideal. Como método de mudança pacífica, tem um valor inestimável. É muito importante podermo-nos livrar de um governo com o qual não concordamos e, para isso, o sistema democrático é insubstituível.
Todavia, a democracia falhou. Em todo o mundo se sente e se manifesta uma profunda desilusão com a democracia. O motivo desta desilusão não reside na democracia em si, no seu ideal e no seu princípio, mas sim nos processos a que ela recorreu, nos caminhos por onde seguiu. Falharam as tentativas para limitar os poderes do governo, e um governo com poderes ilimitados, seja ele democrático ou não, é sempre abominável.
O erro fundamental que levou à frustração da democracia é a identificação do poder legislativo e do poder governativo.
Destinada a fazer leis, a Assembleia Legislativa ignora o que é a lei, ignora que as leis exprimem regras gerais aplicáveis a toda a gente em circunstâncias indefinidas, e passou a considerar como leis todas as decisões, todas as concessões de certos benefícios a determinados grupos e em circunstâncias bem definidas, permitindo que qualquer regra arbitrária possa chamar-se lei.
Destinada a representar a opinião do povo que só pode ser expressa por regras gerais, ou leis no seu verdadeiro sentido, a Assembleia Legislativa passou a obedecer, não à opinião, mas à vontade dos eleitores. É a Rousseau que se deve esta transferência.
Obedecendo à vontade dos eleitores e confundindo a lei com qualquer decisão arbitrária, a Assembleia Legislativa passou a dispor de poderes ilimitados de governação, tornou-se omnipotente. Ora uma entidade com poderes ilimitados só pode ter o apoio de certos grupos. Tem, para isso, de conceder a certos indivíduos certos benefícios. Omnipotente, com poderes para atribuir todos os privilégios, a Assembleia Legislativa é simultaneamente fraca porque não pode recusar os benefícios que tem o poder de conceder aos grupos que lhe asseguram o apoio da maioria. A maioria assim obtida é pior do que um governo autoritário e autocrático, porque esse, ao menos, ainda pode obedecer a certos princípios, ao passo que uma assembleia democrática não o poderá fazer.
Não se pode atribuir aos políticos a culpa desta situação, porque não podem fugir a ela, mesmo quando o desejem, sujeitos como estão a uma concorrência eleitoral legalizada. Para conseguirem votos, para obterem o apoio da maioria, os políticos têm de proteger certos grupos e conceder-lhes benefícios.
Foi a seguir a esta descrição dos caminhos errados que a democracia segue, que Frederico Hayek expôs a sua concepção da limitação dos poderes governativos, da constituição de duas Câmaras ou Parlamentos, dos benefícios do Senado (in ob. cit., pp. 17-19).
segunda-feira, 22 de março de 2010
Frederico Hayek em Lisboa (i)
Escrito por Orlando Vitorino
O FIM DO SOCIALISMO
Um dia contaremos como é que a ESCOLA FORMAL conseguiu trazer a Lisboa Frederico Hayek. À despedida observou-nos ele: «Isto que fizemos agora em Lisboa era impossível fazer, em qualquer parte do mundo, há vinte anos».
Logo ligámos esta observação no comentário com que Hayek, homem idoso de 77 anos, respondeu no Grémio Literário à pergunta de um jornalista: «Quando eu era jovem, só os velhos eram liberalistas. Quando cheguei à meia-idade, ninguém era liberalista. Quando, agora, chego à velhice, a maior parte dos jovens são liberalistas».
Imediatamente lembrámos também abertura do Cap. XVII do seu famoso livro, «A Constituição da Liberdade»:
«Os futuros historiadores designarão o período que decorreu entre 1848 e 1948 como o século do socialismo. (...) O facto mais decisivo registado no último decénio - o de 1950-60 - é o fracasso do socialismo. Não só se desvaneceu o atractivo intelectual que exercia como foi abandonado pelas massas. Isso obrigou os partidos socialistas de todas as latitudes a procurarem ansiosamente novos programas que lhes assegurem a colaboração activa dos seus filiados (...) É possível que a designação de socialismo ainda seja adoptada em algum novo programa que os partidos socialistas existentes elaborem. O certo é, porém, que no nosso mundo ocidental o socialismo, no que autenticamente significa, está morto».
Conhecedor das dificuldades que se levantaram à vinda e à estadia de Frederico Hayek em Portugal, conhecedor do sectarismo ideológico que nos domina, Sales Lane, director do Grémio Literário, onde Hayek proferiu as suas conferências, evocou, nas palavras com que o apresentou e que foram um modelo de convivência civilizada, a liberdade de opinião e expressão, sem a qual não há democracia, e o direito de cada um dizer o que pensa, sem o qual não há progresso, nem ciência, nem civilização. Abonou-se, depois, do pensamento de Alexandre Herculano, liberalista cujo centenário decorreu o ano passado e que as instituições socialistas vigentes concordaram em ser celebrado. Citou alguns dos seus princípios que constituem a negação de tudo o que seja socialismo e democracia entendida por socialistas. Um exemplo: «É tão abominável o poder exercido por um tirano sobre todo um povo como o poder exercido por uma maioria sobre um único indivíduo».
A 1.ª Conferência de Frederico Hayek realizou-a ele quando acabava de desembarcar de uma viagem de 10 horas desde S. Paulo e depois de ter percorrido, em mês e meio, todo o caminho que vai da Alemanha aos EUA, Chile, Argentina e Brasil até Lisboa. A fadiga em nada obscureceu a nitidez do seu pensamento e a clareza das respostas que deu às perguntas que os jornalistas lhe dirigiram ao final da conferência.
É Hayek um homem velho mas a quem a sabedoria conservou, como sempre conserva, a frescura e a vivacidade de uma inteligência fulgurante. Velho, magro, alto, de ombros largos como Platão, de olhos penetrantes e fixados no mais profundo, tem um rosto que lembra - quem o diz é a mulher que com ele esteve recentemente no Japão - as máscaras dos bons demónios da mitologia japonesa. Um colaborador da «Escola Formal», caçador inveterado, observou que Hayek tem uma postura de águia: o rosto demoníaco e penetrante ergue-se de dois ombros magros e tão largos que se afiguram asas recolhidas, e em seus gestos e passos há qualquer coisa - para de novo empregarmos uma imagem platónica - de um «bípede emplumado».
Demonstrou Frederico Hayek na sua 1.ª Conferência:
O socialismo é uma combinação daquilo a que ele chama «justiça social» e da sujeição de toda a economia a uma planificação centralizada.
Justiça social é uma designação de conteúdo vazio. Acaba por designar o antiquíssimo problema da distribuição da riqueza e acaba por consistir, para as pessoas, em ter-se mais do que se tem. De conceito assim indefinido, vazio e em si mesmo contraditório, a realização da «justiça social» é confiada ao planeamento centralizado da economia. Ora este é, por sua vez, irrealizável: implica ele que o planificador saiba aquilo que todos os indivíduos sabem, o que é manifestamente impossível. O planificador, então, planifica segundo finalidades que ele determina, e distribui a riqueza segundo critérios que ele estabelece. Sem discutirmos agora quem determina tais finalidades, estabelece tais critérios e o que isso significa, observemos apenas: para distribuir a riqueza segundo critérios estabelecidos, o socialismo não pode permitir que as pessoas façam o que querem. Obriga-as, por isso, a obedecer a regras imperativas. O resultado será um sistema dirigido que implica a existência de um governo ditatorial, um governo que nos diz, ou dita, aquilo que devemos fazer.
Os socialistas - que com a planificação centralizada reduzem toda a economia a um único monopólio - acusam o liberalismo, ou o sistema de concorrência e mercado livre, de conduzir à formação de monopólios. É uma velha, corrente e falsa afirmação. O sistema de concorrência não conduz à formação de monopólios. Os monopólios resultam sempre da intervenção do Estado quando se decide a «proteger» certos sectores económicos. Foi na Alemanha que tiveram origem os monopólios e resultaram eles da acção dos governos de inspiração socialista que dominaram a Alemanha a partir dos últimos decénios do século passado até ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Também Frederico Hayek refutou que o desenvolvimento tecnológico torne inevitável o monopólio. Deu o mesmo exemplo: no final do século passado, quando formou os primeiros monopólios, a Alemanha estava longe de ser o país de maior desenvolvimento tecnológico que era, então, a Inglaterra. Ora na Inglaterra os monopólios só surgiram em 1930 e em resultado da intervenção «proteccionista» do Governo.
Na prática que adoptou, o sindicalismo consiste em forçar a acção do Governo, não no interesse geral, não em benefício das classes trabalhadoras, mas só em benefício de certos grupos. (um dos participantes no diálogo que se seguiu a esta conferência aludiu ao livro «The Constitution of Liberty» em cujo Cap. XVIII Frederico Hayek distingue entre as funções legítimas e a justa existência de associações de trabalhadores, por um lado, e, por outro lado, o carácter que a essas associações foi dado pelo sindicalismo com a sua pressão sobre o Governo, a obtenção de leis de excepção para a sua actividade, a coacção e até a violência que se permite exercer impunemente sobre os trabalhadores e a população em geral, o exclusivo para certos grupos dos benefícios que deste modo obtém, a fictícia elevação dos salários que estabelece e logo é seguida da inevitável inflação, etc.).
Não há liberdade política sem liberdade económica.
No dia seguinte à 1.ª conferência, os jornais davam suas notícias ao sabor - não diremos da ideologia, que é, em todos eles, socialista por dever da revolução, da Constituição e da estatização - mas ao sabor da honestidade de cada um. Houve os que nada noticiaram, de acordo com a táctica da «nova censura» já conhecida com a designação «kill by the silence»: casos de «A Luta», a «Capital» e «Diário Popular», a que se associaram a televisão e a rádio. Houve os que se deixaram ficar numa significativa perplexidade, como aconteceu a «O Dia». Houve os que não puderam deixar de cair no insulto repugnante e vazio, como fizeram os jornais comunistas «O Diário» e «Diário de Lisboa». E houve os que obedeceram a uma perfeita e até surpreendente honestidade, como o «Jornal Novo» e o «Diário de Notícias» (in Escola Formal, n.º 5, Dez. 1977/Fev. 1978, pp. 15-16).
Continua
1. O socialismo está morto
Logo ligámos esta observação no comentário com que Hayek, homem idoso de 77 anos, respondeu no Grémio Literário à pergunta de um jornalista: «Quando eu era jovem, só os velhos eram liberalistas. Quando cheguei à meia-idade, ninguém era liberalista. Quando, agora, chego à velhice, a maior parte dos jovens são liberalistas».
Imediatamente lembrámos também abertura do Cap. XVII do seu famoso livro, «A Constituição da Liberdade»:
«Os futuros historiadores designarão o período que decorreu entre 1848 e 1948 como o século do socialismo. (...) O facto mais decisivo registado no último decénio - o de 1950-60 - é o fracasso do socialismo. Não só se desvaneceu o atractivo intelectual que exercia como foi abandonado pelas massas. Isso obrigou os partidos socialistas de todas as latitudes a procurarem ansiosamente novos programas que lhes assegurem a colaboração activa dos seus filiados (...) É possível que a designação de socialismo ainda seja adoptada em algum novo programa que os partidos socialistas existentes elaborem. O certo é, porém, que no nosso mundo ocidental o socialismo, no que autenticamente significa, está morto».
2. A tirania das maiorias esmagadoras
Conhecedor das dificuldades que se levantaram à vinda e à estadia de Frederico Hayek em Portugal, conhecedor do sectarismo ideológico que nos domina, Sales Lane, director do Grémio Literário, onde Hayek proferiu as suas conferências, evocou, nas palavras com que o apresentou e que foram um modelo de convivência civilizada, a liberdade de opinião e expressão, sem a qual não há democracia, e o direito de cada um dizer o que pensa, sem o qual não há progresso, nem ciência, nem civilização. Abonou-se, depois, do pensamento de Alexandre Herculano, liberalista cujo centenário decorreu o ano passado e que as instituições socialistas vigentes concordaram em ser celebrado. Citou alguns dos seus princípios que constituem a negação de tudo o que seja socialismo e democracia entendida por socialistas. Um exemplo: «É tão abominável o poder exercido por um tirano sobre todo um povo como o poder exercido por uma maioria sobre um único indivíduo».
3. Postura de águia e rosto de bom demónio
A 1.ª Conferência de Frederico Hayek realizou-a ele quando acabava de desembarcar de uma viagem de 10 horas desde S. Paulo e depois de ter percorrido, em mês e meio, todo o caminho que vai da Alemanha aos EUA, Chile, Argentina e Brasil até Lisboa. A fadiga em nada obscureceu a nitidez do seu pensamento e a clareza das respostas que deu às perguntas que os jornalistas lhe dirigiram ao final da conferência.
É Hayek um homem velho mas a quem a sabedoria conservou, como sempre conserva, a frescura e a vivacidade de uma inteligência fulgurante. Velho, magro, alto, de ombros largos como Platão, de olhos penetrantes e fixados no mais profundo, tem um rosto que lembra - quem o diz é a mulher que com ele esteve recentemente no Japão - as máscaras dos bons demónios da mitologia japonesa. Um colaborador da «Escola Formal», caçador inveterado, observou que Hayek tem uma postura de águia: o rosto demoníaco e penetrante ergue-se de dois ombros magros e tão largos que se afiguram asas recolhidas, e em seus gestos e passos há qualquer coisa - para de novo empregarmos uma imagem platónica - de um «bípede emplumado».
4. Sumaríssima demonstração de como o socialismo é um totalitarismo
Demonstrou Frederico Hayek na sua 1.ª Conferência:
O socialismo é uma combinação daquilo a que ele chama «justiça social» e da sujeição de toda a economia a uma planificação centralizada.
Justiça social é uma designação de conteúdo vazio. Acaba por designar o antiquíssimo problema da distribuição da riqueza e acaba por consistir, para as pessoas, em ter-se mais do que se tem. De conceito assim indefinido, vazio e em si mesmo contraditório, a realização da «justiça social» é confiada ao planeamento centralizado da economia. Ora este é, por sua vez, irrealizável: implica ele que o planificador saiba aquilo que todos os indivíduos sabem, o que é manifestamente impossível. O planificador, então, planifica segundo finalidades que ele determina, e distribui a riqueza segundo critérios que ele estabelece. Sem discutirmos agora quem determina tais finalidades, estabelece tais critérios e o que isso significa, observemos apenas: para distribuir a riqueza segundo critérios estabelecidos, o socialismo não pode permitir que as pessoas façam o que querem. Obriga-as, por isso, a obedecer a regras imperativas. O resultado será um sistema dirigido que implica a existência de um governo ditatorial, um governo que nos diz, ou dita, aquilo que devemos fazer.
5. Só o Estado cria monopólios
Os socialistas - que com a planificação centralizada reduzem toda a economia a um único monopólio - acusam o liberalismo, ou o sistema de concorrência e mercado livre, de conduzir à formação de monopólios. É uma velha, corrente e falsa afirmação. O sistema de concorrência não conduz à formação de monopólios. Os monopólios resultam sempre da intervenção do Estado quando se decide a «proteger» certos sectores económicos. Foi na Alemanha que tiveram origem os monopólios e resultaram eles da acção dos governos de inspiração socialista que dominaram a Alemanha a partir dos últimos decénios do século passado até ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Também Frederico Hayek refutou que o desenvolvimento tecnológico torne inevitável o monopólio. Deu o mesmo exemplo: no final do século passado, quando formou os primeiros monopólios, a Alemanha estava longe de ser o país de maior desenvolvimento tecnológico que era, então, a Inglaterra. Ora na Inglaterra os monopólios só surgiram em 1930 e em resultado da intervenção «proteccionista» do Governo.
Na prática que adoptou, o sindicalismo consiste em forçar a acção do Governo, não no interesse geral, não em benefício das classes trabalhadoras, mas só em benefício de certos grupos. (um dos participantes no diálogo que se seguiu a esta conferência aludiu ao livro «The Constitution of Liberty» em cujo Cap. XVIII Frederico Hayek distingue entre as funções legítimas e a justa existência de associações de trabalhadores, por um lado, e, por outro lado, o carácter que a essas associações foi dado pelo sindicalismo com a sua pressão sobre o Governo, a obtenção de leis de excepção para a sua actividade, a coacção e até a violência que se permite exercer impunemente sobre os trabalhadores e a população em geral, o exclusivo para certos grupos dos benefícios que deste modo obtém, a fictícia elevação dos salários que estabelece e logo é seguida da inevitável inflação, etc.).
7. Um aforismo
Não há liberdade política sem liberdade económica.
8. O Cerco
Continua