Escrito por Fernando Pessoa
1. A única realidade social é o indivíduo, por isso mesmo ele é a única realidade. O conceito de sociedade é um puro conceito; o de humanidade uma simples ideia. Só o indivíduo vive, só o indivíduo pensa e sente. Só por metáfora ou em liguagem translata se pode aludir ao pensamento ou ao sentimento de uma colectividade. Dizer que Portugal pensa, ou que a humanidade sente é tão razoável como dizer que Portugal se penteia ou que a humanidade se assoa.
2. Sendo o indivíduo a única realidade social, não é todavia o único elemento social. Esse indivíduo vive em dois meios ou ambientes - um o ambiente físico, outro o ambiente social, ou sociedade. É esse o valor do elemento sociedade - é o meio, um dos meios, em que o indivíduo vive. O sábio realismo de Aristóteles viu isto bem; e assim se assentou a tese política grega - que a sociedade existe para o indivíduo, que não o indivíduo para a sociedade.
Sendo o indivíduo a única realidade social, é o egoísmo a única qualidade real, embora, por disfarces vários e artifícios diversos se construíssem, no decurso da evolução social (não digo do progresso, porque não sei - nem ninguém sabe - se existe progresso) sentimentos altruístas, afinamentos dos instintos.
Para que o indivíduo possa ter uma vida social que lhe seja um elemento de desenvolvimento, ou, em outras palavras, para que a sociedade seja um ambiente favorável ao desenvolvimento do indivíduo, é forçoso que se faça assentar essa sociedade num conceito egoísta. Assim se formam naturalmente nações. A nação é o segundo elemento social primário. Os homens não se agrupam fraternitariamente senão por oposição. Sempre nos unimos para nos opormos. Isto é, aliás, um princípio lógico: definir é limitar.
Assim como o egoísmo e a vaidade são as qualidades determinantes da vida humana - pois o homem só deveras age para seu proveito ou para suplantar os outros, sendo a guerra a essência de toda a vida (o que já Heraclito havia dito) - assim o egoísmo e a vaidade são as qualidades determinantes dos egoísmos espontâneos chamados nações.
1. Composta de homens, a sociedade, seja ela em sua essência o que for, manifestará forçosamente as mesmas qualidades que esses homens. Em outras palavras, os homens em conjunto manifestarão as mesmas qualidades que manifestam individualmente, tirantes aquelas qualidades que estão ligadas à existência de um organismo físico - o instinto da conservação, o de reprodução, e, em derivação deste segundo, o instinto de família (directa ou indirecta).
2. As qualidades puramente sociais que governam os homens são o egoísmo, a socialidade e a vaidade. Por socialidade entendo o instinto gregário; é ela que ameniza e limita, sem nunca o eliminar nem essencialmente o alterar, o egoísmo, qualidade primária, que se deriva da própria circunstância de haver ego. A vaidade é a consequência do egoísmo na sua limitação pela socialidade; é a qualidade social humana mais evidente. Todo o homem quer ser mais que outro, todo homem quer brilhar. Variam, com as índoles e as aptidões, as maneiras em que o homem quer destacar-se, mas cada um tem a sua vaidade.
3. Seria impossível a existência da sociedade se nela se não reproduzissem estes fenómenos da vida do indivíduo. Por isso a sociedade se divide em nações, e não é possível «humanidade» em matéria social. Assim como tem que haver um egoísmo individual, tem que haver um egoísmo colectivo - é o que se chama o instinto patriótico. Assim como há uma vaidade individual - tem que haver uma vaidade colectiva - é o que se chama imperialismo. Só não há uma socialidade colectiva... (in Textos Filosóficos, I, Editorial Nova Ática, 2006, pp. 198-200).
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