sábado, 27 de fevereiro de 2010

O socialismo não é o único caminho (ii)

Entrevista a Orlando Vitorino








Cooperativismo e direito de propriedade


D.M.– Que pensa o sr. dr. sobre o Cooperativismo?

O.V. – O Cooperativismo é uma forma de associação. Todas as formas de associação podem ser possíveis e são legítimas. O que se não pode é transformar um modo de associação particular no tipo de associação universal.

Não se pode admitir que, por exemplo no caso da economia, a iniciativa particular seja proibida e a iniciativa cooperativa seja autorizada.

D.M.– O sr. dr. defende a iniciativa privada...

O.V. – Completamente. De acordo, aliás, com os sistemas económicos neoliberais, o direito de propriedade ou a propriedade é a categoria essencial da qual depende todo o desenvolvimento da economia e toda a propriedade dos povos.

D.M.– Esse direito de propriedade que defende é limitado ou ilimitado?

O.V. – Considero que o direito de propriedade pode ser absoluto e pode ter limites.

Há três graus no direito de propriedade:

O primeiro é a propriedade absoluta, que é a propriedade que cada um de nós tem do nosso corpo.

Esse direito é o que explica e justifica o direito de sermos fisicamente livres. De não podermos estar sujeitos a torturas.

Um segundo grau, que será o da propriedade perfeita, é a propriedade da terra.

Um terceiro, que é o mais imperfeito grau do direito de propriedade, é o da propriedade industrial.

Pode e tem de haver limites quanto à propriedade industrial. Não pode haver limites quanto à propriedade do corpo.

D.M.– E quanto à propriedade da terra?

O.V. – Quanto à propriedade da terra é difícil pôr-lhe limites.

Todos os limites que se ponham à propriedade da terra levam à diminuição dessa relação de propriedade entre o homem e a terra, e conduzem a uma deficiência da produtividade e da contribuição que a terra dá para a economia.



D.M.– O sr. dr. aceita que, em certas circunstâncias, seja legítima a expropriação e justificável a existência de empresas estatizadas?

O.V. – Acho que não deve haver empresas estatizadas.

O Estado só pode ter empresas com carácter supletivo, só quando não existam particulares que tomem a seu cargo a realização de funções ou a prestação de serviços que são necessários à comunidade. Só nessa altura o estado, transitória e supletivamente, pode formar as empresas para isso.


Sindicalismo e greve


D.M. – Que pensa o sr. dr. sobre o Sindicalismo?

O.V – O Sindicalismo é outro tipo de associação, perfeitamente justo. Todos os trabalhadores devem ter o direito de formar sindicatos e de defender os seus interesses através de sindicatos.

O que não se deve permitir, e deve-se impedir aquilo que existe, é a utilização do sindicalismo para finalidades políticas.

Geralmente essa utilização é feita através das centrais sindicais que, como toda a gente sabe, são, no dizer corrente, correias de transmissão. A UGT é correia de transmissão de um Partido, a CGTP aparece como correia de transmissão de outro Partido. São, portanto, imposições políticas aos sindicatos e, através dos sindicatos, aos trabalhadores.

D.M.– E sobre a greve?

O.V. – A greve é um direito que assiste aos trabalhadores mas dentro de um certo tipo de negociação.

A existir tem que ter, como contrapartida, o lock-out.


Liberdade de ensino


D.M. – Há bocado falámos de ensino. Defende a liberdade de Ensino...

O.V – Defendo completamente a liberdade de ensino e até entendo que todo o ensino deve ser privatizado.

A privatização do ensino começa por aparecer na Universidade, no plano do Ensino Superior, e é aí que as pessoas, geralmente, oferecem mais resistência a admitir que o ensino universitário seja privatizado. Há gente que vê com dificuldade que não seja o Estado a organizar a Universidade. No entanto, essas pessoas esquecem-se de que: primeiro, é possível privatizar o Ensino Superior; em segundo lugar, existem instituições imediatamente aptas a criar um ensino universitário completo de carácter privado.

Estão neste caso, como é evidente, a Igreja, que já tem uma universidade, embora essa universidade esteja um tanto condicionada ao plano de ensino do Estado.

Também seria fácil, e uma das grandes funções para essa instituição, a criação de uma universidade pela Fundação Gulbenkian.




D.M. – Quem lhe parece que é o primeiro responsável pela acção educativa?

O.V. – Iria dizer-lhe que o primeiro responsável, em termos gerais, seriam os responsáveis pelos destinos da Pátria. Em termos institucionais, os primeiros responsáveis seriam, de um lado, os que representam o pensamento, a cultura, o espírito português; ao lado desses, a Igreja.

D.M. – Não entende a Igreja, o Estado e as outras estruturas educativas como supletivas da família...

O.V. – Acho que devem ser prolongamento da família.

D.M. – Substituindo a família?

O.V. – Nunca substituindo a família.

A família tem que ser primacial.

Tem que ser concebida como uma coexistência de três gerações: dos pais, dos filhos e dos netos ou, se quiser, dos avós, dos pais e dos filhos.

A família tem que ter o direito absoluto sobre tanto a educação dos filhos como pela protecção dos velhos, do que chamam assistência à Terceira Idade.

A educação e o ensino dos filhos deve ser da responsabilidade directa dos pais.

D.M. – Que pensa o sr. dr. sobre o divórcio?

O.V. – O divórcio é uma destas instituições que foram justificadas para evitar situações trágicas resultantes de certos conflitos entre as pessoas.

No entanto, a relação entre as pessoas é uma relação de vínculo transcendental e, nesse plano, o divórcio não tem acesso.


Comunicação social


D.M.– Que opinião tem sobre a Comunicação Social?

O.V. – Toda a Comunicação Social deve ser inteiramente privatizada.



A situação em que se encontra é uma situação de controlo pelo Estado da maioria dos Meios de Comunicação Social, o que leva a um controlo muito mais grave e muito mais apertado do que, por exemplo, uma censura oficial.

Aliás eu bati-me, logo por volta de 1977, por uma televisão independente e pude observar, pude sentir e pude sofrer o que era a feroz oposição dos meios políticos de todos os matizes, de todos os partidos, a uma televisão particular.

Os políticos estão interessados em ter enm suas mãos, em controlar e dominar o meio de comunicação que maior influência tem sobre a formação, já nem digo da opinião pública, mas sobre a decisão que as pessoas tomam ao votar.

Não querem perder esse meio.

Assisti a uma das contagens de votos de uma das eleições mais importantes que se fizeram e, em conversa com um jornalista americano, ao perguntar-lhe a opinião sobre os resultados, disse-me verificar que, na situação em que Portugal está, quem tiver a televisão nos últimos cinco dias, antes do dia das eleições, ganha as eleições.


Afastado de todos os partidos


D.M.– No actual quadro político, o sr. dr. situa-se no centro, na direita, na esquerda, na extrema-direita, na extrema-esquerda?

O.V. – Tudo isso são palavras. As palavras são o que há de mais importante até ao momento em que não forem transformadas em simples coisas, em simples instrumentos e em simples armas.

Já tenho sido considerado de extrema-esquerda como já tenho sido considerado de extrema-direita.

Todas essas considerações que me têm sido feitas são sempre completamente infundamentadas e não têm a mínima abonação em qualquer coisa do que eu tenha dito ou escrito. E eu tenho escrito muito. Sou um escritor. Tenho livros publicados sobre diversos assuntos que são fundamentais para a política. E nunca vi aplicarem-me um rótulo qualquer destes, abonando-se em alguma coisa que eu tenha escrito.

D.M.– O sr. dr. está ligado a algum dos actuais partidos, ou sente-se identificado com algum deles?

O.V. – Eu sinto-me, não digo igualmente afastado de todos os partidos, mas afastado e separado de todos os partidos.






D.M– Mas aceita a existência dos partidos...

O.V. – Os partidos estão nas mesmas condições, são também formas de associação, todas as associações devem ser livres de se formarem.

O que não posso admitir é que existam associações que gozam de privilégios que os cidadãos, em geral, não podem ter. Os partidos, por exemplo, têm o monopólio da representação popular. Isto é completamente ilegítimo, completamente antidemocrático e completamente anti-nacional.

D.M.– O sr. dr. aceita, portanto, todos os partidos.

O.V. – Só não aceito uma associação que se forme e tenha por actividade levantar obstáculos, seja à prosperidade económica dos portugueses, seja à liberdade dos portugueses, seja à vida espiritual dos portugueses.

Existem, efectivamente, partidos que, na opinião dos principais governantes que tem havido nos últimos anos, são partidos que se opõem, que contrariam, que criam obstáculos tanto à prosperidade, como à liberdade, como à vida espiritual dos portugueses.

É evidente que esse tipo de associações partidárias não pode ser legalizado.

D.M.– Se fosse convidado a apresentar-se aos portugueses, o que diria?

O.V. – Creio que é isso que tenho estado a dizer. Tenho estado a dizer o que penso e parece-me que o que define melhor um homem é o que ele pensa.

Evidentemente que todos temos uma existência em três planos: no plano físico ou corpóreo, no plano sentimental ou anímico e no plano espiritual.

Num homem que se candidata ou pretende exercer uma acção política, o importante para ele é o plano espiritual. É o plano onde se definem doutrinas, onde se fazem escolhas de carácter geral ou universal, e só daí é que pode depender a política.

D.M.– O sr. dr. profissionalmente o que é?

O.V. - Ganho o pão de cada dia como funcionário da Fundação Gulbenkian.

Além disso, tenho exercido muitas actividades, todas elas no domínio da Cultura e das Artes.

Escrevo. Estou permanentemente a preparar um livro.



Fundação Calouste Gulbenkian












O socialismo não é o único caminho (i)

Entrevista a Orlando Vitorino





No Diário do Minho (1 Jun. 1985), Orlando Vitorino, já decidido a candidatar-se à Presidência da República, expusera mais uma vez os princípios filosóficos do liberalismo. Entre esses princípios ressalta o respeitante à organização do ensino assaz dependente do Ensino Superior por razões que nem sempre são as melhores. Quer dizer: se toda a organização do ensino depende da organização da Universidade, e esta continua, apesar de sucessivas e inúteis reformas, a minorar os potenciais valores da cultura nacional, então a única solução, na esteira de Orlando Vitorino, «é extinguir completamente a Universidade actual e sobre essa extinção, criar-se uma universidade nova».

Ora, sem essa extinção não há Ensino Superior que permaneça ao nível da superna
universalidade, mesmo quando se cinja à gloríola dos contactos internacionais. Dir-se-ia, pois, que a universalidade – ou melhor, o universal – só veramente será quando, radicado na funda significação etnológica da palavra povo, melhor transpareça no aldeão e no «vilão» do que no cidadão. Que o diga, à laia de confirmação, Leonardo Coimbra, para quem a liberdade, no sentido do universal concreto, não se define pela sua extensão à totalidade: «Quanta mulherzinha do povo eu tenho visto pôr o universal nas suas acções, enquanto os grandes magistrados da minha República nelas colocam os seus retóricos interesses de vaidade!».

Miguel Bruno Duarte





O socialismo não é o único caminho


D.M. - O sr. dr. está realmente decidido a candidatar-se à Presidência da República?

O.V. – Com certeza. Foi anunciado e hoje todos os trabalhos para isso e toda a organização de uma campanha eleitoral estão, praticamente, completos.

D.M.– Que motivo o levou a tomar a decisão de se candidatar?

O.V. – Sou uma pessoa que está fora da actividade política mas tenho tido sempre toda a minha vida uma grande responsabilidade intelectual, mais sobrecarregada nos últimos tempos com o facto de a linha de grandes escritores e grandes pensadores portugueses, anterior à minha geração, ter perdido a maior parte dos seus principais representantes; homens como José Marinho, Álvaro Ribeiro, Delfim Santos.




Hoje, essa geração está reduzida a duas grandes personalidades, mas já idosas, o Dr. Santana Dionísio e o Dr. Agostinho da Silva.

Ambos ainda exercem uma grande actividade intelectual. O dr. Santana Dionísio acaba de escrever um livro de mais de 900 páginas sobre o pensamento de Leonardo Coimbra. O Prof. Agostinho da Silva está permanentemente a colaborar nos jornais e a escrever, e, sobretudo, a pensar.

A geração que se seguiu, que é a minha, assumiu, por assim dizer, a responsabilidade da principal corrente de pensamento e até de literatura portuguesas deste século, visto que se trata de uma linha não só de pensamento mas também de grandes artistas, como é o caso do Pascoaes, do José Régio e, até certo ponto, de Fernando Pessoa, que foi um homem, por assim dizer, redescoberto por uma tertúlia filosófica e não pelos escritores, do domínio da literatura.

D.M.– Dá-me a impressão de que não estamos habituados a ver intelectuais a entrarem na luta política a este nível...

O.V. – Talvez estejamos com uma perspectiva muito curta para concluirmos isso que é, efectivamente, a imagem que aparece.

Se tomarmos uma perspectiva a maior distância verificaremos que o primeiro Chefe político da I República era um intelectual, era Teófilo Braga.

D.M– Mas não era, também, um idealista?

O.V. – Talvez precisamente por isso todos os republicanos disseram, durante a I República, que o único governo verdadeiramente republicano que tinham tido tinha sido o de Teófilo Braga.

E se formos ainda mais longe verificaremos que o primeiro grande rei português que criou aquela classe de pessoas bem adaptadas à epopeia das descobertas foi também um intelectual, D. Duarte. Aliás, o primeiro filósofo da Europa que escreveu em vernáculo.



Socialismo não é o único caminho





D.M.– Senhor dr., vamos a questões mais práticas, digamos assim. Candidata-se, certamente, com o objectivo de mudar o curso à orientação que o País leva. Ou não será?

O.V. – Num plano rigorosamente de doutrinação política, a minha candidatura destina-se a mostrar aos portugueses que o socialismo não é a única hipótese e o único caminho que um povo pode seguir.

Pelo contrário, existe um outro caminho, mais conhecido por liberalismo ou neoliberalismo.

Ainda dentro do liberalismo e do neoliberalismo é mais conhecido como um sistema económico. Simplesmente, não se trata apenas de um sistema económico.

O sistema económico tem muita importância no liberalismo porque é através da economia que doutrinas e regimes como os socialistas colocam os indivíduos e o povo em estado de servidão.

Por outro lado, o liberalismo está completamente aberto a todas as formas de reconhecimento de existir uma origem e uma fonte espiritual para o governo dos povos, enquanto o socialismo reduz ao materialismo a fonte de governo dos povos.

D.M– Parece-lhe que, como Presidente da República, pode mudar o rumo das coisas?

O.V. – Acho que se pode mudar visto que o Presidente da República é o orgão de soberania primacial.

D.M– Mas ele pode muito pouco...

O.V. – Não pode tão pouco como geralmente se diz. Sobretudo o actual Presidente da República, depois da revisão constitucional, tem-se empenhado em fazer ver que o Chefe de Estado pode muito pouco.

O que é certo é que, com esses limitados poderes e funções que se lhe atribuem, o Presidente da República pode obrigar, ou persuadir, ou levar outros orgãos de soberania, que são o Governo e a Assembleia da República, a um acordo quanto a direcções políticas do País.

E tem meios para isso.

O primeiro está em que as leis da Assembleia da República têm de ser homologadas pelo Presidente da República. Essa homologação pode ser sempre um motivo para esclarecimentos, para discussões, e para esses acordos a que me referi.

Isto, sem falar nas iniciativas próprias que o Presidente da República pode tomar, tanto em relação ao Governo como em relação à Assembleia.




Organização do ensino em estado catastrófico


D.M.– Quais são, na opinião do sr. dr., os principais problemas que hoje se põem ao País?

O.V. – O maior de todos os problemas é um problema ético.

Este longo predomínio de concepções materialistas, dessacralizadas e ateístas de tudo quanto é a existência social, levou a uma situação ética na generalidade da população que está degradada.

Por outro lado, essa situação ética está imediatamente ligada com a situação do ensino. É do conhecimento geral que a organização do ensino se encontra em estado perfeitamente catastrófico.

Essa organização do ensino é o primeiro problema a dever ser considerado pela política.

D.M.– O sr. dr. falou na degradação ética e na situação do ensino. Em que é que se concretiza a degradação ética?

O.V. – Por exemplo: a situação da juventude, o predomínio de modos de viver ou a utilização de drogas, o aumento da prostituição, etc., para não falar numa questão mais quente. Tudo isso se manifestou na discussão sobre a lei do aborto.

A lei do aborto foi aprovada e parece corresponder inteiramente ao espírito ou à doutrina da política dominante, em qualquer dos seus sectores. Apenas vi uma posição contrária: a manifestada por parte da Igreja.

Entendo que, até dentro do domínio completamente laico e completamente independente da Igreja, nós poderemos recorrer a um grande argumento a que poderia chamar o instinto de fecundação biológica.

Esse instinto torna perfeitamente inviável e mostra o carácter degradante que tem a despenalização do aborto ou a persuasão a que ele leva a juventude de que as relações amorosas são susceptíveis de não ter projecção e consequências na vida moral, na constituição da família, etc.

D.M.– O sr. dr. não aceita o aborto por uma razão religiosa ou por outros motivos?




O.V. – Não aceito o aborto por várias razões.

Uma delas é a razão religiosa, ou o carácter sagrado das relações humanas.

A outra, como lhe disse, é esta razão biológica, que esvazia todas as relações entre homens e mulheres de uma medida sentimental, para não chamarmos espiritual, e conduz a um desaparecimento e a uma evanescência do próprio erotismo.

D.M.– O sr. dr. falou, depois, no problema do ensino. A que níveis haverá que fazer mudanças?

O.V. – Toda a organização do ensino depende da organização do Ensino Superior, ou do estado do Ensino Superior.

Toda a organização do ensino é determinada e condicionada pela organização do Ensino Superior. Isto, desde os planos mais gerais do ensino até à sua própria execução.

Na execução isto é imediatamente visível, visto que são os alunos formados pela Universidade de que vão ser professores no Ensino Secundário

A Universidade, sobretudo a Universidade Pombalina, aquela que é a Universidade estatizada há dois séculos, sempre tem exercido um poder quase absoluto, digamos, sobre sucessivos governos políticos em relação ao ensino. Basta dizer que há muitas dezenas de anos só houve um caso de um ministro da Educação que não era professor universitário.

A primeira alteração a fazer é a alteração de todo o Ensino Superior. Para isso é preciso extinguir, como recomendou Delfim Santos e como começou a pôr em prática Leonardo Coimbra, a actual Universidade.

Delfim Santos dizia mesmo que uma reforma na Universidade é mais do que insuficiente. O que é preciso é extinguir completamente a Universidade actual e sobre essa extinção, criar-se uma universidade nova.

Leonardo Coimbra e Teixeira de Pascoaes



D.M.– Em que linhas assentaria a Universidade nova?

O.V. – No aspecto programático, substancial, da sabedoria que se deve transmitir, as linhas dessa Universidade nova estão todas elaboradas pelos homens que já citei: Leonardo Coimbra e Delfim Santos.

Minuciosamente programadas, estão assentes numa teoria da educação que, a meu ver, é a mais notável teoria da educação que, na modernidade, foi elaborada e escrita: a que está exposta nos livros de Álvaro Ribeiro. Um livro sobre o Ensino Primário, outro sobre o Ensino Secundário e um outro sobre o Ensino Superior.

Continua


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido (iv)

Excertos coligidos por Miguel Bruno Duarte






«Irangate»


Diz-nos Rui Mateus que recebera, a 23 de Novembro de 1985, «uma estranha chamada telefónica. Era o chefe da estação da CIA [Skidmore] junto da embaixada dos EUA» a dizer «que o governo dos Estados Unidos necessitava da ajuda de Soares para convencer o novo governo a autorizar um avião israelita numa "missão humanitária" a aterrar em Lisboa e transferir a carga para um outro avião. Aparentemente a CIA encontrara dificuldades de contacto com o recém-chegado governo de Cavaco Silva e vinha fazer um apelo à velha amizade com o então candidato presidencial». Ou seja: Bob Skidmore pretendia agora abordar Mário Soares quando, dois meses antes, este último, «preocupado com a aparente falta de apoio dos EUA à sua candidatura», não conseguira, porventura, o intento desejado. Compreende-se, por isso, que a melhor forma do agente da CIA seria, nesse contexto, «acenar com a gratidão americana a troco desta ajuda de emergência», a qual consistiria, como «viria a descobrir» Rui Mateus, no seguinte: o de «que o célebre avião israelita em "missão humanitária" não era mais que um dos carregamentos de mísseis "HAWK" a caminho de Lisboa "onde [segundo Oliver North, in Under Fire] deveriam ser transferidos para outro avião" que deveria seguir para o Irão, no quadro do "Irangate" que tanta tinta faria correr» (pp. 258-259).

«Quando confrontado com jornalistas, Mário Soares "negaria veementemente relatórios de que aeroportos portugueses tivessem sidos utilizados como plataformas de trânsito de armas destinadas ao Irão, como parte do caso “Irão-Contra”. Mais, afirmou Soares, as autoridades portuguesas rejeitaram um pedido das autoridades dos EUA para autorizarem a “ajuda humanitária” que a América estava a enviar ao Irão" [in The Providence Journal Bulletin, de 23 de Maio de 1987]. O que coincide com a descrição de Bob Wooward, pelo menos no que toca ao caso já referido do pedido de 23 de Novembro pelo agente da CIA em Lisboa, Bob Skidmore. Segundo aquele conhecido jornalista e autor, "na noite de 21 de Novembro, North telefonou a Dewey Clarrige [chefe da divisão para a Europa, da CIA] .... em pânico e disse que necessitava de ajuda para obter autorização de Portugal para a aterragem de um avião de Israel numa missão humanitária". Ainda segundo Woodward, aquele alto funcionário contactaria o chefe da estação da CIA em Lisboa no sentido de obter tal autorização que o Governo de Portugal recusaria. O embaixador Frank Shakespeare não deveria ser informado desta "missão". Segundo o mais conhecido operacional deste tráfico, o tenente coronel Oliver North, os israelitas entrariam em contacto com o conselheiro de Segurança Nacional, Bad MacFarlane, em meados de 1985, propondo contactos que poderiam "resultar na libertação dos [seus] reféns em Beirute" [in Under Fire]. Ele próprio só terá entrado nesta "operação", que consistia inicialmente na troca de reféns por mísseis "Hawk" de fabrico norte-americano, em Novembro de 1985. O Governo americano concordaria com a venda de mísseis usados, deste fabrico, existentes em Israel, que os enviava para o Irão e, em troca, recebia mísseis novos dos EUA. Um negócio de centenas de milhões de dólares, que exigia a concordância das autoridades norte-americanas, um estranho intermediário iraniano, Manucher Ghorbanifar, com contactos com os serviços secretos israelitas e americanos e os intermediários de venda dessas armas, o ex-CIA, general Richard Secord e um ex-adido militar ex-israelita e próspero homem de negócios, Yakov Nimrodi. Quando Macfarlane informa o seu acessor, tenente coronel Oliver North, destas vendas com o apoio do governo norte-americano, pede-lhe "só para servir de monitor destas transacções" [in Under Fire]. Mas a 17 de Novembro de 1985, o então ministro da Defesa de Israel, Yitzhak Rabin, telefonar-lhe-ia pedindo ajuda no sentido de obter autorização do Governo de Portugal para que um avião do seu país, com mísseis "Hawk", pudesse aterrar "num aeroporto europeu onde deveriam ser transferidos para outro avião" [in Under Fire]. Portanto, o recém-empossado governo de Cavaco Silva recusara autorização a esta operação e assim se explica o desesperado telefonema do homem da CIA em Lisboa, na manhã de 23 de Novembro, querendo falar com Mário Soares e fazendo promessas de que esse apoio seria bem visto em Washington. A componente portuguesa desta história poderia acabar aqui, não fosse o livro de memórias de George Schultz, então secretário de Estado dos Estados Unidos. Schultz pressentira que existia uma diversão deste esquema secreto [referente ao escândalo «Irão-Contra» (1986), transformado entretanto "num chorudo negócio para alguns e numa fonte de financiamento dos movimentos 'contra' da Nicarágua"] que tinha autorização do presidente e, como tal, numa reunião no "Situation Room" [o gabinete de crise] da Casa Branca, recusar-se-ia a dar cobertura a um comunicado de imprensa, que o presidente dos EUA pretenderia divulgar. Segundo este, pretendia-se fazer crer que a actuação de Oliver North tinha sido a de mero observador da venda de armas israelitas ao Irão por razões humanitárias, tendo "encontrado, por acaso, um depósito de armas israelitas em Portugal". O ex-secretário de Estado negar-se-ia a colaborar e teria então dito ao presidente que "estão a distorcer a verdade e não acabam as mentiras. Estão-me a mentir neste momento a mim e aos outros membros do Governo" sendo certo que "Bud Macfarlane estava já a trabalhar neste projecto em Maio de 1985"» [in George Schultz in Turmoil & Triumph, MacMillan Publishing Co., Nova Iorque, 1993].



Ronald Reagan



«O resultado deste escândalo seria uma série de demissões, a todos os níveis, dos mais próximos colaboradores do presidente Ronald Reagan. Na sequência das demissões de Bud MacFarlane e do seu sucessor, almirante John Piontdexter, Frank Carlucci regressaria à política, sendo designado em Novembro de 1996 para o todo-poderoso lugar de Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca. Em 1987 substituiria o seu velho amigo Gaspar Weinberger no cargo de secretário de Defesa. Também o chefe da estação da CIA em Lisboa seria obrigado a regressar aos EUA. A falta do apoio pedido não resultara de má-vontade do governo americano para com Mário Soares mas sim de uma série de factores, aparentemente coincidentes: o relacionamento com a empresa Black, Manafort, Stone & Kelly e as divisões no centro de poder norte-americano que emergiriam com o escândalo "Irangate"» (pp. 278-280).


Presidenciais 86


O financiamento da campanha soarista para as Presidenciais 86 dera-se por intermédio de Roger Patrice Pelat, um amigo de François Mitterrand «que mais tarde viria a ser famoso nos escândalos financeiros relacionados com o PS francês» (Rui Mateus não garante se o montante que Patrice Pelat lhe «quis impingir em Zurique» terá chegado à campanha – pp. 276-277). Mas garante, não obstante desconhecer «a origem dos financiamentos», a entrega, por intermédio de Otto Georg, de «mais quatro milhões de marcos que Mário Soares (...) instruiria [a Rui Mateus de] transferir em tranches para um número de conta na Companhie Financière Espírito Santo. Segundo ele, este sistema tinha sido organizado por Carlos Monjardino que iria fazer chegar aquele dinheiro a Portugal em escudos. A primeira tranche seria enviada no dia 28 de Outubro. As seguintes, teriam lugar a 19 de Novembro, 8, 15 e 29 de Janeiro, a 7 de Fevereiro e a última no dia 30 de Setembro de 1986». Finalmente, viria ainda, por via do PSOE - um partido espanhol «que só sairia da clandestinidade três anos depois do 25 de Abril» -, uma mala de pesetas cujo «correio» seria Menano do Amaral, que suara «as estopinhas para não desmaiar com medo à passagem da alfândega do aeroporto de Lisboa», assim como, agora por via de Lionel Jospin, viria ainda, sob a forma de transferência bancária, «um milhão de francos franceses a título de empréstimo», não para o PS, como estivera previsto, mas sim para o respectivo candidato às eleições presidenciais (p. 277).

Entretanto, encarado o financiamento proveniente de fontes estrangeiras às actividades políticas exercidas em Portugal, aproveitemos as presidenciais 86 para dar a conhecer dois documentos comprovativos da má-fé e má consciência dos candidatos do sistema, extraídos do processo organizado e publicado pelos Serviços da Candidatura de Orlando Vitorino:


Doc. 19


«Numa expressão, um tanto inocente um tanto caricatural, da opinião que forma de si próprio, o candidato Freitas do Amaral lançou aos outros candidatos um desafio público a que escrevessem, como ele, um livro fundamentando as respectivas propostas presidenciais. Os Serviços da Candidatura de Orlando Vitorino emitiram o seguinte “comunicado” que alguns jornais publicaram:

“O Sr. Freitas do Amaral acaba de publicar um livro, “Portugal, uma Solução”, com o intuito de expor os resultados de reflexão que diz tê-lo levado a candidatar-se a Presidente da República. Ao anunciar esse livro, convidou, ou desafiou, os outros candidatos a exporem também em livro, como ele faz, o pensamento que está suposto nas suas candidaturas.




O Sr. Freitas do Amaral mostra, assim, ignorar que o Candidato ORLANDO VITORINO, muito antes dele, publicou um livro EXALTAÇÃO DA FILOSOFIA DERROTADA, que contém o pensamento que dá origem à doutrina e às “soluções” apresentadas pela sua candidatura. Este livro tem sido objecto, não de anúncios publicitários como acontece ao do Sr. Freitas do Amaral, mas de críticas publicadas na imprensa e assinadas por personalidades de reconhecida autoridade. Uma destas personalidades – um jornalista [Manuel Múrias] que não receou publicar que o Sr. Freitas do Amaral lhe pagou, há tempos, 400 contos pelo seu apoio – afirmou que o livro de ORLANDO VITORINO “não pode ser ignorado pelas pessoas medianamente cultas”. O Sr. Freitas do Amaral ignora-o. E, mais curioso, as teses expostas por ORLANDO VITORINO já têm sido abordadas numa “cadeira” da Faculdade de Direito onde o Sr. Freitas do Amaral foi feito Professor pelo Sr. Marcelo Caetano.

Admitimos que o Sr. Freitas do Amaral esteja absorvido pela sua propaganda pessoal, propaganda aliás ilegal quanto ao dinheiro dispendido, ao apoio privilegiado que recebe dos orgãos de comunicação estatizados, em especial da RTP, e quanto ao período em que está sendo feita. Mas não podemos permitir que essa propaganda lance, sem correctivo, tão falsas afirmações e tão levianos desafios para os quais o Sr. Freitas do Amaral não possui nem conhecimentos suficientes da cultura portuguesa nem capacidade de reflexão. ORLANDO VITORINO está pronto a demonstrar o que se afirma caso o Sr. Freitas do Amaral aceite uma discussão pública e caso o desafio que fez aos outros Candidatos não seja mais do que uma manobra eleitoralista”.

O Sr. Freitas do Amaral não respondeu.


Doc. 20


Em 22 de Dezembro de 1985, Orlando Vitorino enviou a Mário Soares a seguinte carta:

Foi pena que o encontro que havíamos combinado pelo telefone não se tenha realizado. Tê-lo-ia eu informado da impugnação das candidaturas do sistema que só anteontem requeri ao Tribunal Constitucional. A sua candidatura é uma delas, mas eu, convicto da sua fidelidade à democracia e do seu respeito à Lei que a rege, queria, lealmente, que V. conhecesse a impugnação antes de a apresentar ao Tribunal. Estou certo de que não deixaria de concordar com ela, apesar de também estar envolvido nas infracções à Lei Eleitoral que aí se descrevem e provam. Creio que o seu envolvimento resulta da aceitação de uma espécie de jogo. Mais ou menos isto: se os meus parceiros fazem batota, também eu tenho de a fazer. Tudo isto seria sem consequências se os candidatos fossem só Vocês quatro, isto é, se não houvesse outras propostas a apresentar aos Portugueses, ou ainda se estivéssemos fechados num sistema único, aquele que Vocês quatro representam, e não houvesse outro sistema possível. Ora acontece que há, de facto, outras propostas, há outros candidatos e há outros sistemas, O pluralismo democrático, que V. sempre defende, é isto mesmo. E as infracções à Lei Eleitoral são atentados contra a democracia, Lei que foi feita por esses mesmos que a infringem agora. Qualquer que seja a decisão do Tribunal, a verdade de todos conhecida é que há quatro candidatos presidenciais que usam, na sua propaganda eleitoral, os poderes do Estado, em especial os dos meios de comunicação estatais, e há quatro candidatos que são afastados desses poderes e ficam ignorados do eleitorado.





(…) Digo-lhe tudo isto e mando-lhe uma cópia da impugnação que requeri ao Tribunal Constitucional, na esperança, senão certeza, de que V. é homem para sacrificar posições pessoais em favor da democracia. O reconhecimento da minha impugnação é a última oportunidade do actual regime democrático. Poderá V., numa atitude de superior democratismo, de nobreza moral e de amor pela verdade e pela Pátria, tornar pública a sua concordância com a impugnação daquelas candidaturas presidenciais que, nas presentes condições, são a expressão de uma oligarquia tacanha, medíocre e opressora?

Mário Soares calou-se».


Juízes de formação estalinista


Antes de mais, tenhamos presente este cenário:

«O "triunfo da política" e dos seus principais protagonistas, exactamente pelo modo como foi construído o regime após o 25 de Abril, começa a revelar perigosos sintomas de erosão da credibilidade das instituições, evidenciados pela crescente descrença popular. A democracia portuguesa, no actual contexto ocidental, embora irreversível na sua aparência formal, resvala perigosamente para "um corpo de funcionários sem legitimação democrática directa ou indirecta, como é, entre nós, o corpo de magistrados", que é dominado "por certas correntes que professam uma concepção militante, radical e fundamentalista da magistratura, a qual, geralmente aliada ao protagonismo político de alguns, tem subjacente uma cultura de intervenção, quando não de contra-poder e confronto com os orgãos de soberania político-representativos" [Mário Belo Morgado, revista Renovar de Outubro de 1995]. À semelhança do que acontece na Itália, berço do pensamento e acção fascistas que assolariam a Europa nos anos 30, também hoje é legítimo perguntar se o "governo dos juízes" que tem vindo a devastar aquele país, não estará a ser aproveitado para fins políticos também em Portugal, onde o protagonismo de alguns juízes, recentemente convertidos à democracia, tem feito impunemente os seu progressos perante uma cada vez mais amedrontada "classe política"» (p. 14).

Como se sabe, Rui Mateus, testa-de-ferro e fiel soarista, fora, apesar de tudo, condenado como corruptor no «caso do fax de Macau», o qual envolvera uma empresa alemã que, não tirando as devidas contrapartidas, reclamara os 50 mil contos (250 mil euros) pagos para obter um contrato na construção do novo aeroporto de Macau. Viu-se, portanto, implicado numa trama socialista de que não era, porventura, inocente, mas que, ao que tudo indica, acabou sendo, a par da absolvição do Governador de Macau, Carlos Melancia, o bode expiatório no contexto de uma «rede de negócios então dirigida pelo presidente Soares desde Belém. A investigação foi encabeçada por António Rodrigues Maximiano, procurador-geral adjunto da República, que a dada altura se confrontou com a eventualidade de inquirir o próprio Soares. Questão demasiado sensível, que Maximiano colocou ao então procurador-geral da República, Narciso da Cunha Rodrigues. Dar esse passo era abrir a caixa de Pandora, implicando uma investigação ao financiamento dos partidos políticos, não só do PS mas também do PSD – há quase uma década repartindo os governos entre si. A previsão era catastrófica: operação “mãos limpas” à italiana, colapso do regime, república dos juízes. Cunha Rodrigues, envolvido em conciliábulos com Soares em Belém, optou pela versão mínima: deixar de fora o Presidente e limitar o caso a apurar se o governador de Macau, Carlos Melancia, recebera um suborno de 250 mil euros» (“O Polvo”, in O Diabo, 17 de Novembro de 2009, p. 14).



«A explicação – adianta Mateus – da razão que levou os juízes a dar-me como culpado não estava no Acordão. Terá sido a alusão dos juízes a Camões sobre o "metal luzente e louro" para concluírem que "os motivos que determinaram a conduta dos arguidos foram o aumento do respectivo património" e assim justificarem a agravação das penas? Ou a preocupação da luta de classes que os levaria a classificar-me como sendo da "alta burguesia"? Ou o facto de não ter, durante o julgamento, mostrado "arrependimento" e razão pela qual a pena seria, igualmente, agravada? Não tendo culpa de que pessoas de formação estalinista me tenham sempre considerado "burguês" ou da "alta burguesia", também não achava justo que me fosse exigido arrependimento por um crime que não cometera. (…) Poderia parecer que este filme se passava na Turquia. Mas não, estávamos a reviver uma espécie de Expresso da meia-noite à portuguesa. (…) Se alguma testemunha se tivesse pronunciado contra mim, certamente que eu teria reparado e as suas declarações, sem dúvida, seriam sublinhadas para justificar a justeza da sentença» (pp. 355-356).

«Mas, para meu espanto – prossegue Rui Mateus –, não só não teria explicações convincentes como, uma semana depois de ser condenado, a juíza Filipa Macedo "deixava-se posar para o fotógrafo" num artigo-entrevista de tipo promocional intitulado "A juíza com juízo" [in Revista Vida do semanário O Independente de 21 de Janeiro de 1994]. " 'Era a primeira vez' que 'colarinhos brancos' de tal gabarito eram condenados em tribunal a penas de prisão. Portugal ficou um bocado surpreendido e, também, a olhar para Filipa Macedo, a juíza que esteve por trás da decisão. Esta é a realidade, mas quem olha para Filipa Macedo imagina-a facilmente num anúncio publicitário na televisão, daqueles a desodorizante ou a shampoo, assim ao estilo mulher-activa. Filipa Macedo chega ao tribunal da Boa-Hora ao volante do seu Renault 4 assim com um ar desligado de bens materiais, mas não deixa de ser uma vamp de cabelo loiro. Veste umas calças ou saia apertadas, cintos a realçar cintura fina, nos braços usa pulseiras de ouro e na mão um anel com brasão de armas". E depois, já em declarações próprias, vai afirmando que gostava de ser ministro da Justiça "mas não do Governo de Cavaco Silva, com os cinzentos não" e que "depois de 1974 [passou] pela extrema-esquerda como toda a gente. [Foi] da UDP, [apoiou] o Otelo e [pôs] punhos no ar. Hoje [continua] à volta da esquerda mas já não [é] da extrema. [É] de uma esquerda muito europeia. Muita gente da [sua] geração conserva os ideais. [Tem] convicções socialistas. Aliás a [sua] geração tem muito que ver com os personagens do filme Os Amigos de Alex". Depois admite que quando está em tribunal se entretém "a desenhar as expressões dos arguidos", "gosta de usar citações nas sentenças", "costuma andar acompanhada de um caderninho que enche de frases de que gosta quando vai ao cinema ou quando lê" e "usa-as quando elas se adequam ao caso em jogo". Está convencida de que "os arguidos mais básicos têm sentido da justiça ao contrário dos colarinhos brancos, muitas vezes arrogantes e soberbos que querem fugir da justiça a qualquer preço", embora reconheça que é "mais exigente com os colarinhos brancos" em relação aos quais se sente "a fazer justiça" [declarações de Filipa Macedo à revista Vida de O Independente, de 21.01.1994]. Comecei então a pensar em alguns episódios passados em tribunal e fiquei aterrado. Afinal estávamos em Portugal» (pp. 356-357).






«Insatisfeito com a decisão do colectivo presidido pela juíza Filipa Macedo, da sua ausência de fundamentação», Rui Mateus «recorreria para o Supremo Tribunal em Janeiro de 1994». Porém, em vão, até porque o «arcaico funcionamento dos tribunais e administração da justiça em Portugal, à semelhança dos países do Terceiro Mundo, não adoptou, até agora, o hábito de registar os julgamentos, impedindo qualquer apreciação da matéria de facto pelos tribunais de recurso, quase impossibilitando qualquer defesa do arguido contra o arbítrio de juízes mal preparados e, nalguns casos, de formação totalitário-comunista» (p. 360). De modo que, «o Supremo Tribunal de Justiça, sem condições nem legislação que lhe permitam avaliar se, em sede de julgamento, fora feita prova ou a decisão resultara do arbítrio ou da incompetência dos juízes de primeira instância, (…) optaria por manter o seu alheamento aos aspectos fundamentais dos direitos do cidadão. Em decisão de Abril de 1995, ignoraria os recursos» e «cometeria – segundo Rui Mateus – dois erros graves quanto à sua pessoa: «declararia existir "exaustiva fundamentação" no acordão do tribunal de juíza Filipa Macedo e consideraria que "são os corruptores que geram os corruptos"». Por isso, adianta: «Dizer que "são os corruptores que geram os corruptos – são excepcionais os casos de corruptos sem corruptores", é o mesmo que dizer que a galinha apareceu antes do ovo. Está muito na moda entre os "fundamentalistas" e lembra um pouco práticas da inquisição para proteger detentores do poder». «Quase todos sabem, pelo contrário, que são os funcionários corruptos que solicitam e geram corrupção, razão pela qual... [o] próprio Código Penal considera que "do ponto de vista da ofensa ao bem jurídico, a conduta do corruptor nunca é tão grave como a conduta do corrupto", pelo que as penas para a corrupção são muito mais severas do que para o corruptor» (pp. 363-364).

Moral da história: «O mal amado», como a si mesmo se designa o socialista Rui Mateus, é mais uma prova de como só os grandes burgueses, como Mário Soares, não só conseguem levar a sua avante, como ainda se consideram, com a conivência dos meios de informação (ou de desinformação), uns verdadeiros heróis da democracia portuguesa. O que, aliás, já nem deve causar espanto num meio em que já ninguém parece ser responsável pelos seus actos, pois onde não há pecado, como bem vira Orlando Vitorino, não há culpa. Em suma: o diabo e o inferno não são reais para o homem socialista.


À guisa de conclusão


Não há dúvida de como durante e após o 25 de Abril se implantou em Portugal, a par da ingerência yankee e moscovita, um falso e estreito humanismo colhido na Europa nórdica. Logo, não por acaso escrevera António Quadros sobre a «erosão das quimeras e das utopias de Abril», em que a «vida política e cultural portuguesa tornava-se cada vez mais espelhista e estereotipada». De modo que: «"Este país" tinha por força de se sujeitar às receitas de Boris Ponomarev, de Brejnev, de Fidel de Castro, de Mitterrand, de Willy Brandt, de Berlinguer, de Carrilho, de Tito ou de Boumedienne, conforme os paladares» (A Arte de Continuar Português, Edições do Templo, 1978, pp. 106-107). E também não por acaso escrevera Rui Mateus o seguinte: «Eu entrei para a política quase por acaso. Aderi nos anos 60 à minúscula Acção Socialista Portuguesa por acreditar que, pela via do socialismo democrático e através de um sistema pluripartidário, Portugal viria a ser um país igual ou melhor que aquele onde vivia exilado – a Suécia – e que era então considerado, acertadamente, a sociedade mais justa e evoluída do planeta. Não o socialismo utópico, igualitário, de partido único que transforma os cidadãos em funcionários do Estado. O socialismo onde os partidos se combatem no campo das ideias e onde os interesses e bem-estar dos cidadãos estão sempre em primeiro lugar...» (p. 16).







Ora, tudo isto não passa de uma estúpida ingenuidade uma vez que, como alertara Frederico Hayek, o socialismo, inicialmente autoritário, só se tornaria «democrático» quando vencido na revolução de 1848, a partir de então passando a acenar com a promessa de uma «nova liberdade» contra os defensores da liberdade política, até porque, com base na planificação moderna, continuaria a centralizar o «poder» em detrimento da prosperidade e da felicidade dos povos (cf. O Caminho para a Servidão, Teoremas, 1977, pp. 55-59). Por isso, a crença no socialismo nórdico de rosto humano foi e continua sendo um dogma enraizado na sociedade hodierna, como ainda, num passado recente, o jornalista Adelino Gomes tornara bem patente ao entrevistar Agostinho da Silva nos seguintes termos:

«Mas eu volto a pôr-lhe a questão da liberdade logo à partida, esse ideal da Revolução Francesa de nascermos todos iguais. A verdade é esta, a realidade é esta: se eu, nascer, hoje, no Alto Volta, ou eu mesmo nascer hoje na Suécia, logo à partida, tenho como esperança de vida, no Alto Volta 50 anos, na Suécia 80 anos... no Alto Volta, se calhar não ir para a escola e seguramente não ir para o liceu, e (…) de certeza absoluta, não ser doutor em genética, e na Suécia tenho toda a vida à minha frente, todos os cursos universitários; nós não somos iguais, é a fatalidade do lugar onde, como dizia um escritor português».

Ora, no lance, respondia Agostinho da Silva: «Não empregue a palavra fatal, porque fatal, ou fatalidade, põe logo essa ideia do factum, do destino, e quase sempre no mau sentido da palavra. O que se tem que dizer é que a pessoa nasce em determinadas circunstâncias!... sem se dizer se elas são boas ou ruins!» (in “Conversas Vadias”).

Aliás, dissera igualmente Agostinho da Silva que Mário Soares, o seu aluno que vinha, quando menino, «aprender um certo número de coisas e que teve que as aprender por si próprio» (in “Conversas Vadias”, com Cáceres Monteiro), ganhara, aquando da Presidência Aberta, o costume dos reis percorrendo o país recolhendo esta ou aquela opinião (cf. Última Entrevista, com Luís Machado, Editorial Notícias, 1998, pp. 44-45). Enternecedor, sem dúvida. Contudo, é pena que o seu «aluno» não tenha explicado aos Portugueses no que consiste verdadeiramente o socialismo, também instigado por quem fora, em 1941, o regente de estudos no Colégio Moderno, e hoje considerado, política e academicamente, um defensor e um herói da liberdade, a saber: o comunista Álvaro Cunhal (id, pp. 45-46). Porém, não faltara quem o dissesse, escrevendo até na primeira pessoa. Numa palavra: grandes males, grandes remédios.






quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Contos Proibidos: Memórias de um PS Desconhecido (iii)

Excertos coligidos por Miguel Bruno Duarte








Empresas e fundações partidárias


- Foram entretanto criadas as primeiras fundações de natureza político-económica visadas pelo PS e tendo como primeiro fundador Mário Soares. A ingerência na vida portuguesa, por via de tais fundações, veio sobretudo da República Federal da Alemanha e dos Estados Unidos. Sobre o processo, explica Rui Mateus: «Os enormes fundos das fundações políticas alemãs, ligadas aos partidos Social-Democrata, Democrata-Cristão e Liberal, eram postos à disposição destas pelo Estado alemão para garantir, no estrangeiro, a abertura de portas aos interesses daquele país. (…) No caso português houve sempre fundações para as diferentes alternativas: a Friedrich Ebert ligada ao PS, a Konrad Adenauer ao CDS e a Friedrich Naumann ao PSD...» (pp. 148-49). Ora, entre as fundações que, em Portugal, se mostraram ao serviço do socialismo internacional, temos por exemplo:

1. A Fundação José Fontana «constituída em Outubro de 1977, por vinte e cinco fundadores com um capital inicial de mil contos. Dirigida por Maldonado Gonelha viria a movimentar algumas centenas de milhares de contos, oriundos principalmente da Alemanha, mas também da Suécia, da Noruega e dos Estados Unidos». Na sua origem estaria «desde logo (…) o movimento sindical em mente» (p. 149), quer através do apoio alemão e escandinavo, quer através dos apoios da central sindical norte-americana, AFL/CIO (p. 151). Os apoios desta última seriam, aliás, coordenados por Irving Brown e Michael Boggs, os quais, «conotados com as actividades dos serviços secretos americanos», já «tinham estado em Portugal em 1975», recomendando, inclusive, «nos EUA apoio à constituição de uma confederação sindical alternativa» (p. 149). Assim, ao contrário dos países comunistas do leste europeu, onde o sindicalismo, coincidindo com o socialismo, destrói o «patronato» com o fim de abolir a propriedade, o sindicalismo de inspiração norte-americana, adentrando-se no regime da economia de mercado e do livre sistema de concorrência, surge como o «principal factor e sustentáculo do capitalismo (que é a degradação da economia de mercado em plutocracia)», e, portanto, permeável a um gangsterianismo legalizado (cf. «Descrição do que é o sindicalismo exposta na forma de seis silogismos que só enunciam o que é essencial», in Escola Formal, n.º 6, Jun. 1978, pp. 17-18). Em suma: a partir de Maio de 1977, «a Fundação José Fontana passaria a ser o embrião da União Geral de Trabalhadores, que teria o seu primeiro Congresso na cidade do Porto, em Janeiro de 1979» (p. 149). Foi «extinta» em Junho de 2008.






2. «A Fundação Antero de Quental, Centro de Estudos Municipais e de Acção Regional seria constituída em Fevereiro de 1978, por dezoito fundadores e com um capital inicial de quinhentos contos. A partir desta fundação, que teve como primeiros presidentes, sucessivamente, Jorge Campinos, José Manuel Duarte e António Sousa Gomes, seria definida toda a estratégia eleitoral autárquica do Partido Socialista» (p. 150). Fora também «extinta» em Junho de 2008, dando lugar à Fundação República, cujo reconhecimento se deu, entretanto, a 22 de Outubro de 2009. Ainda assim, convém saber que o seu activismo esquerdista apoia-se em três estruturas basilares: o centro José Fontana, o centro Antero de Quental e o instituto de estudos políticos, todos eles, respectivamente, aptos a garantir a continuidade ditatorial do poder socialista a nível sindical, local e cultural.

3. «A Fundação Azedo Gneco dirigiu-se, segundo critérios traçados pela experiência alemã, para o apoio ao cooperativismo e seria dirigida por Eduardo Pereira. Revelar-se-ia um fracasso no quadro das actividades do Partido e a sua sede, na Rua do Salitre, acabaria por transitar para a Juventude Socialista» (p. 150), se bem que, numa outra passagem, se diga ter a Fundação diluído «numa empresa de serviços», ao que parece «co-participada pela Fundação Friedrich Ebert, de nome "Consera"» (p. 211).

4. «A quarta fundação era o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, menina dos olhos de ouro de Salgado Zenha... A sua primeira directora seria Teresa Ambrósio e, a partir de 1979, seria o refúgio do chamado "ex-secretariado" do PS, chegando mesmo a criar divisões internas na própria "Fundação Ebert" entre o seu secretário-geral, Gunter Grunwald, que apoiaria Mário Soares e o seu vice-presidente, Horst Heiderman, que apoiaria aquele grupo. Para que se tenha uma ideia, o financiamento da Fundação Friedrich Ebert a estas quatro instituições, só no ano de 1979, seria de 8 880 contos para o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento (IDP), 13 800 contos para a Fundação Azedo Gneco, 10.000 contos para a Fundação Antero de Quental e 45. 400 contos para a José Fontana [etc.]» (p. 150).

Fundação Mário Soares

5. A «fundação das fundações», isto é, a Fundação de Relações Internacionais, surgiu, por escritura notarial, em Janeiro de 1981 (p. 192). Tendo como presidente Mário Soares, visava a projecção do PS «em matéria de América Latina e de política internacional». «Seria lançada como refúgio seguro e poderoso para a reemerção de Mário Soares e da sua moção antieanista "Um Novo Rumo para o Partido Socialista" e, se na pior das hipóteses ele saísse de novo derrotado, seria a base natural para prosseguir as suas actividades políticas» (p. 197). Enfim, «uma espécie de Fundação Ebert portuguesa para o futuro», ainda que, como assevera Mateus, não contando com os meios financeiros da Europa central e nórdica que começava a discordar das opções do PS em matéria de política externa. Porém, contaria certamente com o apoio financeiro americano [com vista a África – Mocambique e Cabo Verde sobretudo (p. 250)], para o qual Carlucci, recebendo Mateus e Bernardino Gomes no seu escritório em Langley, seria o destacado e indispensável intermediário (pp. 197-98). De resto, «a Fundação de Relações Internacionais, que fora nos últimos anos o refúgio político de Mário Soares, passaria a ser dispensável com a criação [ a 12 de Setembro de 1991] da Fundação Mário Soares, então já na forja entre os seus novos colaboradores» (p. 318). Por outras palavras, esta última fundação constitui o exemplo sui generis de como se implementa, sob uma aparência democrática, o socialismo cultural e plutocrático do nosso tempo. Basta, para o efeito, ver como, através dela, se logra branquear, em estreita ligação com as instituições universitárias, as reais e comprometedoras dimensões nacionais e internacionais da implementação do comunismo no 25 de Abril de 1974. E veja-se também como através da «digitalização e da divulgação de diversos acervos documentais e fotográficos», se opera o revisionismo ideológico praticado em nome da «preservação e conhecimento da memória comum dos países da Lusofonia», bem como se recrutam, mediante a concessão de bolsas de estudo e da instituição de um prémio no valor de 5.000,00 euros, os mercenários universitários dispostos a contribuir, com suas «dissertações académicas», para o estudo da suposta realidade histórica portuguesa no século XX (cf. Regulamento do Prémio Mário Soares, art. 8º). Além disso, não deixa de ser curioso, mas deveras ilustrativo, o facto de já Álvaro Ribeiro, em carta datada de 1950 para o companheiro e amigo José Marinho, ter escrito o seguinte: «Todas as gerações anteriores à nossa, depois do liberalismo, venceram na medida em que utilizaram a alta vulgarização. Hoje, como se prova com a geração marxista, estão vencendo os que por processos de divulgação estudam os escritores do século passado. Veja o livro de Mário Soares sobre Teófilo Braga, mas repare principalmente no prefácio de Magalhães Godinho». Ora, a verdade é que não só estavam vencendo como acabaram por vencer mediante meios técnicos e tecnológicos de que o próprio Álvaro Ribeiro nem sequer fazia, porventura, a mínima ideia do que poderiam vir a ser num futuro relativamente próximo. Como tal, voltando às actividades político-culturais da Fundação de Relações Internacionais, convém registar as seguintes:

a) «... a conferência conjunta com a Universidade Internacional de Espanha em 1982 ou com o Herald Tribune em 1983, que (…) seriam financiadas pela Emaudio» (p. 370).

b) «... o International Leadership Forum em colaboração com o Centro de Estudos Estratégicos Internacionais de Washington em 1988 e a Wheatland Conference on Literature que teria lugar no Palácio de Queluz no mesmo ano em colaboração com a Wheatland Foundation da proeminente família Getty dos EUA», na qual participariam, entre os maiores nomes da literatura mundial, Virgílio Ferreira e Cardoso Pires (p. 370).

c) «Entre outras iniciativas totalmente financiadas pela FRI contar-se-iam igualmente as conferências inseridas no "Balanço do Século" que o próprio Presidente da República [Mário Soares] também patrocinaria, com o seu nome, em 1987 e 1988», e nas quais, aliás, participaria Karl Popper. «E, na sequência das conferências para o "Balanço do Século" estava também previsto o lançamento das «Conferências de Sintra. (…) Só esta iniciativa iria custar umas largas dezenas de milhar de contos para criar um secretariado permanente e organizar as primeiras conferências com participantes de grande relevo mundial. Mas uma vez estabelecida, à semelhança do que acontece com as "Conferências de Bilderberg" e a "Trilateral", o prestígio internacional adquirido acabaria por a tornar auto-suficiente. A FRI financiara o MASP em 1986 e a CEIG, com mais de oitenta mil contos e era credor de milhares de contos do PS, segundo constava da contabilidade daquele partido» (p. 370).


6. A Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, constituída com «o Decreto-Lei 169/85 de 20 de Maio». Fora um projecto «iniciado pelo então primeiro-ministro Pinto Balsemão» (p. 269), e que desde logo implicava «evitar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros controlasse o projecto». De facto, aparentemente autónoma no sentido de ajudar a desenvolver as relações luso-americanas, a FLAD resultava, antes de mais, numa organização pronta «a sintonizar as suas acções com o esforço governamental» (p. 270). «Em 1985 a FLAD receberia cerca de 40 milhões de dólares e praticamente outro tanto no ano seguinte. Em meados de 1988, em dotações e rendimento obtido das suas aplicações, tinha bens superiores a cem milhões de dólares ou, na altura, mais de oito milhões de contos». Nisto, o inevitável conflito de interesses, com sua origem na «total governamentalização possidónica sem qualquer redução das despesas e, pior ainda, [n]a partidarização completa da FLAD», levaria a uma crescente incompatibilidade entre o Governo dos EUA e os orgãos directivos e administrativos da FLAD (pp. 273-74). Mas fiquemos, para o efeito, com mais um testemunho do ex-embaixador de Portugal em Washington, João Hall Themido: «o projecto não teve a amplitude desejada por culpa do Congresso americano que tomou medidas prejudiciais aos pagamentos acordados. Mas essa circunstância não impediu que sectores americanos tivessem discordado das soluções adoptadas entre nós. Para esses críticos, Portugal, dentro de uma orientação terceiro-mundista, investiu parte dos fundos recebidos em instalações sumptuosas e na aquisição de obras de arte, criando além disso compromissos exagerados com despesas administrativas e deixando a ideia de a Fundação ser usada para compensar políticos amigos com excelentes sinecuras» (pp. 274-75).

Depois, registe-se ainda o lançamento de «empresas partidárias» segundo linhas de rumo encarregues a Bernardino Gomes, Fernando Barroso e Menano do Amaral, em que o primeiro teria recomendado, em 1981, «"a criação de uma ou mais empresas, ligadas indirectamente ao Partido Socialista, que actuassem em diferentes áreas económicas... com o objectivo de encontrar a médio prazo financiamentos capazes de garantir uma vida económica sã ao Partido Socialista"» (p. 211). Deste modo, como resultado do conúbio entre interesses públicos e particulares, «seria constituída em Dezembro de 1981 a empresa «Parsogal» com um capital de 3 mil contos...», da qual «sairia em meados de 1982 a "Ciporgal" com um capital de mil e quinhentos contos...» (pp. 211-212). «Como se pode facilmente imaginar, todo o capital da Parsogal estaria destinado a representar os interesses do PS e o próprio nome da empresa seria uma clara referência à ligação com o Partido Socialista. «A Ciporgal ["segundo um manuscrito (...) empresarial do PS"] nasceu como um projecto empresarial da Fundação de Relações Internacionais com o objectivo de garantir a independência económica futura a esta instituição» e «poder-se-á pensar como objectivos iniciais, o financiamento da FRI a partir de 1984 e de actividades políticas de grande envergadura em 1985». Estas actividades de grande envergadura, em 1985, referiam-se à campanha eleitoral de Mário Soares para a Presidência da República, tendo sido postos à disposição destes projectos cem mil dólares, o que equivalia, em 1982, a 8 milhões e quatrocentos mil escudos (p. 212). Enfim, tudo disposto para que o Partido Socialista se estruturasse como «uma máquina de promoção pessoal» de Mário Soares (p. 229), ou ainda, na expressão de Rui Mateus, numa «"empresa" dele» (p. 238).


Plutocracia


Neste ponto, é de salientar a permanência do jogo sem regras de «notórios argentários hipoteticamente plutocratas» com os políticos e os grandes burgueses da revolução comunista de 74, tais como, entre o peixe graúdo, Mário Soares (o qual, no seu Portugal: Que Revolução, «confessaria a Dominique Pouchin ter sido um «enfant gaté»», in Mateus, p. 110), Álvaro Cunhal e Sá Carneiro, e, «entre o peixe miúdo, a interminável lista dos Teotónios Pereiras, Franciscos Balsemão, Galvões Teles, Rebelos de Sousa, Afonsos de Barros, Veigas Simão que passaram, sem sobressalto, dos seus privilégios da sociedade da ditadura para iguais privilégios na sociedade da democracia» (cf. Ernesto Palma, O Plutocrata, Edições Ledo, 1996, pp. 10-11 e 13). E de facto, descreve ainda «Ernesto Palma alguns casos ou exemplos deste jogo: o dos Mellos e M. Bullosa com Mário Soares, o do mesmo M. Bullosa com os “capitães de Abril”, o de Champalimaud com Salgado Zenha e o Marechal Spínola, o da alta finança internacional (Nelson Rockefeller, Edmundo Rothschild entre outros) reunida na Suiça para lançar a revolução socialista em Portugal». Mas não só Ernesto Palma, pois Rui Mateus, referindo «a primeira reunião da Internacional Socialista no Brasil», também descreve o encontro que, no Rio de Janeiro, teria lugar no iate de Manuel Bullosa, «grande empresário português expropriado pela "Revolução dos Cravos"», com Mário Soares e «a sua delegação à reunião da IS» (pp. 252-253), a par de outros convidados como dois dos «ex-colaboradores da banca portuguesa» («Raúl Capela, então do Banco Tota e Alfonso Finnociaro, do BPA em Nova Iorque») ou o ministro português da Cultura:

Praia de Botafogo (Rio de Janeiro).

«E assim ficaria a saber pela primeira vez que Mário Soares tinha trabalhado para Manuel Bullosa durante o seu exílio em França. Durante a agradável conversa, com o Rio de Janeiro como pano de fundo, foi revivido um pouco o passado, tendo Manuel Bullosa contado que depois de "ajudar" Soares, tinha sido duramente recriminado pelo presidente do Conselho, Marcello Caetano, a quem ele responderia que era um homem de negócios e não um político e, como tal, achava por bem dar-se com o governo e com a oposição. Caetano ter-lhe-ia respondido que Soares não era oposição mas um traidor exilado, ao que o empresário comentaria mais ou menos com as palavras de que "fazia desejos para que o senhor professor nunca viesse a ter que conhecer o exílio, mas se isso acontecesse que teria o maior gosto em poder ajudá-lo também". Manuel Bullosa, no entanto, não morria exactamente de amores pelo líder socialista, a quem criticaria a atitude tomada durante as nacionalizações. Apesar dos protestos de "não diga isso senhor Manuel Bullosa", este nunca se conformaria com a forma como os seus bens (…) tinham sido nacionalizados e numa carta que me enviaria pouco depois (…), manteria essa amargura e crítica velada a Mário Soares» (pp. 254-255).

Por outro lado, há ainda o caso do «incrível senhor Maxwell», um magnata inglês que ficara «conhecido como um dos grandes vigaristas internacionais por, alegadamente, ter feito desaparecer centenas de milhões de libras do Fundo de Pensões dos seus empregados...» (pp. 294 e 310). Chegou a ser «o preferido para associação com o grupo "soarista"», tal como se pode depreender do relato de Rui Mateus que, ao entrar, «às 16h do dia 20 de Abril (…) no gabinete do Presidente da República» [Mário Soares] no Palácio de Belém, dera «com ambos em amena cavaqueira em francês, a fumar "puros" cubanos» (p. 294). Pudera!... pois como diria Maxwell, «tinha disponibilidades de mil milhões de dólares que pretendia em grande parte investir em Portugal» (p. 297), chegando, pois, a fazê-lo ao associar-se ao projecto Emaudio, projecto esse entretanto «lançado e apadrinhado por Mário Soares», ao ponto mesmo de o referido plutocrata ter, «com pompa e circunstância», assinado «frente às câmaras da RTP um acordo» com os socialistas envolvidos, entre os quais estaria Rui Mateus (p. 301). Note-se que a Emaudio (Sociedade de Empreendimentos Audio Visuais) fora constituída no dia 18 de Março de 1987 na Fundação de Relações Internacionais, para ir «ao encontro dos acordos» que estavam em vias de se concretizar «com a News International de Rupert Murdoch» (p. 296). E tudo sem não antes ter Frank Carlucci, o mesmo que já apoiara «o lançamento de A Luta quer a aquisição do edifício da CEIG em 1975», sugerido, aquando da sua «transição da Sears World Trade para o Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca», a mencionada participação de Rupert Murdoch que, depois de inúmeras visitas dos seus colaboradores a Portugal, viria «de Los Angeles no seu avião particular» a Lisboa «munido de um memorando em que se podia ler Portuguese Project/Strictly Confidential». Mas fiquemos, uma vez mais, com o testemunho de Rui Mateus:

Frank Carlucci

«A sua leitura, para além dos vários cenários de investimento, não oferecia qualquer dúvida quanto à paternidade da Emaudio. "A News Corporation tem a oportunidade de investir num número de empresas de comunicação social em Portugal, nas ex-colónias portuguesas de Macau, Angola e Moçambique e no Brasil estando 'um grupo de amigos íntimos e apoiantes do presidente Soares' disposto a colaborar com Murdoch 'através de uma nova companhia (a estabelecer em Portugal) – a 'Atlantic Media Investments'. Esta seria um 'joint venture' entre a 'News Corporation' (ou uma das suas subsidiárias) e o grupo dos apoiantes de Soares sob os auspícios da Fundação de Relações Internacionais (FRI), uma organização sem fins lucrativos próxima do presidente Mário Soares. Uma nova empresa chamada Emaudio, está em vias de constituição pelos apoiantes de Soares para através dela fazerem os seus investimentos", sendo o principal objectivo "maximalizar o lucro de cada um dos seus investimentos" e "garantir o controlo de interesses na comunicação social favoráveis ao presidente Soares e, assumimos, apoiar a sua reeleição em 1991". Quando chegou ao Palácio de Belém teria um encontro a sós com Mário Soares e comigo e, antes do jantar, para o qual o presidente convidara outras pessoas da área da comunicação social, como Francisco Balsemão, Daniel Proença de Carvalho e Magalhães Crespo» (pp. 292-293).

Enfim, era, no fundo, «o velho sonho socialista para a comunicação social que estava em marcha e seria irresistível» (p. 297). Nele estivera também interessado Silvio Berlusconi «que conhecia muito bem a importância de contactos nos centros de poder e logo (…) disse estar disposto a associar-se ao grupo "soarista", para o que contribuiria com um pequeno filme publicitário que depois seria apresentado na Comissão da Comunicação Social da Assembleia da República. Ao ex-ministro das Finanças do I Governo Constitucional, Henrique Medina Carreira, seria encomendada a elaboração do primeiro projecto de contrato-promessa de sociedade com Berlusconi e o primeiro projecto de estatutos da sociedade anónima que deveria ter dez accionistas». Contudo, surgiria um problema, pois Berlusconi «estava interessado em juntar-se (…) na expectativa de concorrer à concessão de um canal de televisão mas, para além disso, pouco mais. Nada de jornais. Ora, o (…) projecto assentava no arranque imediato do aproveitamento da CEIG e no seu desdobramento numa empresa privada que imprimisse e publicasse jornais» (p. 291). Além disso, outras figuras estiveram igualmente ligadas, entre elas Almeida Santos, mediante a sua empresa – Interfina – (p. 314), o empresário português Elídio Pinho, através de sua empresa – Colep Financeira – (Elídio Pinho receberia do «capitão Bob» – o apelido jocoso de Maxwell – «dez milhões de libras do Fundo de Pensões da MCC para investimentos na bolsa de valores em Portugal», mas entretanto “desviados”, com perdas consideráveis, para a sua empresa Cabelte – pp. 298-299), Ângelo Correia do PSD (pp. 298-299), bem como, por fim, o magnata chinês Stanley Ho, «principal empresário e "dono" dos jogos de azar em Macau» (p. 304), que, ao manifestar a intenção de investir na Emaudio, apelidava, sintomaticamente, Mário Soares de boss (p. 314). Porém, este, «em declínio de popularidade», já de si compreensível pela complexa rede de negócios públicos e privados em que estava profundamente envolvido, «acusaria então a administração da Emaudio», exigindo que Mateus «lhe entregasse as sessenta mil acções da Fundação de Relações Internacionais e das quais, por sua própria sugestão, (…) [Mateus] era fiel depositário, enquanto presidente daquele instituto» (p. 317). Deste modo, Soares, pretendendo alterar o projecto Emaudio, projecto esse em concorrência com a SIC do proprietário do Expresso, Francisco Pinto Balsemão (p. 309), tinha em mente a nova Fundação Mário Soares (p. 318) cujo património (também financiado por Stanley Ho – p. 368), nos anos 90, só seria «comparável às fundações Gulbenkian, Oriente e Luso-Americana (p. 325). Uma surpresa, portanto, aguardaria Rui Mateus, a qual, pior do que a táctica socialista da «cenoura e do cacete» (p. 320), o levaria, na sequência do fax de Macau, a conhecer, como poucos certamente o desejariam, o «tribunal do juiz Roy Bean» (alusão ao «juiz americano do século passado que declarava os arguidos culpados logo no início do julgamento a fim de evitar despesas públicas» – p. 361).




Continua