sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A Obra Monumental de Pinharanda Gomes

Escrito por Orlando Vitorino





«Teixeira Rego exerce sobre Pinharanda Gomes um fascínio irresistível. Sente-se irmanado com ele no seu autodidactismo. Protesta. Diz que Teixeira Rego não foi um autodidacta. Teve como mestres Basílio Teles e Sampaio Bruno, assim como ele, Pinharanda Gomes, teve Álvaro Ribeiro e José Marinho… e a Igreja, onde floresceu o seu espírito à semelhança do de Hay Benyocdan naquela ilha paradisíaca donde não precisou de sair para conhecer todo o Universo e, através dele, Deus.

Protesta e tem razão para protestar. No domínio da cultura exterior ao mistério, não há autodidactas. Isso é o que nos querem fazer acreditar instituições que, por fortes e legítimas razões do Estado, têm o monopólio do ensino, no direito que têm de só elas poderem conferir diplomas.

Se tivéssemos de considerar autodidactas Teixeira Rego e, com ele, nobilíssimos espíritos como Eudoro de Sousa e Amorim de Carvalho e tantos mais, porque não passaram da instrução primária ou de alguns anos do Liceu, não obstante terem escrito magníficos livros, então teríamos de aplicar igual critério a todos os escritores. Não se ensina nas Faculdades de Letras para fazer poetas, dramaturgos, filósofos, mas professores e bibliógrafos. Ninguém é preso por se apresentar como escritor, mas pode sê-lo se exercer a medicina ou o magistério sem diploma. Ou sê-lo-á um dia?

Houve, porém, uma excepção: a Faculdade de Letras de Leonardo Coimbra. Ali se fizeram escritores filósofos; ali se ensinava, não para que o aluno obtivesse licença para ganhar dinheiro, mas para que pudesse vir a compreender o grande mistério do homem, do mundo e de Deus. Por isso mesmo a calaram. Agostinho da Silva, Sant'Anna Dionísio, Casais Monteiro, Eugénio Aresta, José Marinho, Álvaro Ribeiro ali nasceram de novo. E não foi Pinharanda Gomes discípulo dos dois últimos e, portanto, não se formou, através deles, na gloriosa Escola de Leonardo Coimbra?

Pinharanda protesta, mas sabe que isso não é o essencial. Ele sabe que o essencial é ser um perfeito autodidacta, isto é, um homem capaz de pensar por si próprio, mesmo quando ensinado por outros, mesmo quando esses outros são Álvaro Ribeiro, José Marinho ou Orlando Vitorino. Como Hay Benyocdan, aquilo que sempre fez e faz é procurar o segredo de salvar a sua própria existência e a dos outros pelo que aprende na sua ilha, orando e interrogando, na sua ilha que, para ele, tem sido a Igreja, cercada pelo mar revolto da humanidade inquieta, onde se viu estar após ter nascido. No andaluz, a ilha é a cifra de um centro iniciático, não de uma organização religiosa, mas de algo que lhe anda intimamente ligado.

E é pelo que nela vê e aprende que se pôs a estudar Teixeira Rego e outros muitos. Tudo ali está porque não conhece mais nada nem precisa de conhecer. A filosofia portuguesa que tanto ama aparece-lhe como uma árvore gigantesca no centro da ilha, mas desgarrada. Avistam-se barcos à deriva, feitos da madeira que os ventos da heresia lhe arrancaram. Sulcam o grande mar da humanidade portuguesa, uns mais próximos, outros mais distantes. Teixeira Rego é um desses barcos. Buscam, em vão, outros portos onde possam atracar. O mais belo de todos, o de Leonardo Coimbra, andou sempre próximo, temendo rochedos e feras para atracar. Um dia, o timoneiro teve a coragem de desembarcar e descobriu que onde havia feras e rochedos estava o Paraíso.






É assim que Teixeira Rego lhe aparece como um católico que se ignora e por isso se diz agnóstico, como alguém que vive fascinado pelo Mistério da Encarnação, de Deus envolvido connosco, e que procura entendê-lo pelo espiritismo, pelo ocultismo, pela teosofia, por tudo quanto lhe proporcione explicar a misteriosa relação do espírito com a matéria. Pinharanda não gosta dos maniqueus, que põem uma espada flamejante entre os dois, deixando a pobre matéria abandonada, sem socorro, consumindo-se no seu exílio de Deus. Não é exílio uma palavra que significa fora da ilha? E não sabemos já o que é a ilha para o nosso filósofo autodidacta?

O regresso de Leonardo Coimbra à Igreja foi tardio. Álvaro Ribeiro, que o conhecia bem, comparou um dia o itinerário espiritual do mestre ao de Huysmans que passou pelo ocultismo, pela teosofia, pela cabala antes de se converter. Mas não foi só Leonardo a cultivar as ciências proibidas. Já o vimos para Teixeira Rego. Pascoaes terá percorrido caminhos análogos. O que é espantoso observar é que, entre os homens da Renascença, os dois que mais parecem ligados ao ocultismo, Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, são os únicos que o refutaram.

Sampaio Bruno, para quem a existência e a intervenção dos anjos são factos positivos, não gosta de espiritismo que denuncia como uma prática grosseira geradora de sombrias miragens, troça de Papus, repele o lema idealista da analogia do microcosmos com o macrocosmos, considera ilegítima e ímpia a sistematização matemático-cabalista de Wronski; Fernando Pessoa, que só admira Sampaio Bruno entre os seus contemporâneos, segue-o no trilho, atacando espiritistas, ocultistas e maçons menores.

Os dois, e também Teixeira de Pascoaes, sabiam que é no mundo intermediário que tudo se decide, mas que a maioria das suas manifestações não ajudam o homem. Sabiam, sobretudo, que não está lá quem decide. Por não saber isto ou não querer sabê-lo, Teixeira Rego mete-se "no emaranhado de uma floresta de enganos", entrelaçando ciência da época e ocultismo. O materialismo fortalecido pela ciência, e a ciência, fortalecida pelo positivismo, dominavam os espíritos. Para homens religiosos, sem Igreja por se terem decepcionado com os modos de intervenção social do clero, o ocultismo aparecia a abrir caminhos para o sobrenatural. Fenómenos parapsicológicos pareciam provar que havia outro mundo intimamente ligado a este. Só muito tarde Leonardo Coimbra descobriu que esse outro mundo não era o que procurava. Como se vê pela Razão Experimental, pratica a observação, a experimentação e a correlação dos fenómenos espiritistas, aplica ao seu estudo o método científico, que se lhe impunha pelo superior grau de certeza conseguido no estudo dos fenómenos físicos. Viria a combater a ciência, já para o tarde, com A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre, não porque a dialéctica científica lhe aparecesse agora errada, mas por cousar na antropolatria.

A posição de Sampaio Bruno perante a ciência é bem diferente. Vê nela uma disciplina teológica, mas não a aceita tal como é dada. A noção de inércia, que funda todo o mecanicismo e que Leonardo Coimbra integra na sua cosmologia para afirmar a proximidade de Deus, refuta-a demoradamente, assim como o correlativo cálculo das probabilidades e a noção de zero, sobre que assenta toda a matemática moderna, não pitagórica. Não há inércia, há energia. Não há probabilidade, há angelogia. Não há o nada, há o pleno. O movimento é a espontânea reacção nascida de sucessivas rupturas: pela primeira, produziu-se o mundo intermediário; pela segunda, o mundo físico. Tudo, porém, converge para "a transcendente pureza de Deus".

Mas Pinharanda Gomes prefere a todos Leonardo Coimbra e já sabemos porquê. Ele não ama os desinsulados e tem bons motivos para isso.»

António Telmo («Pinharanda Gomes - Filósofo Autodidacta», in O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes).




Oliveira Salazar. Ver aqui, aqui e aqui



«Em diversos lugares, os mais prestigiados, tem-se afirmado que a primeira Faculdade de Letras do Porto, criada em 1919, pelo então ministro da Instrução, o filósofo Leonardo Coimbra (que para tanto extinguiu a venerável faculdade coimbrã), foi extinta por Salazar em 1928. No 4º volume do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, 1998, a páginas 360-361, na biografia do Poeta Adolfo Casais Monteiro, lá se escreve: "Frequentou a antiga e famosa Faculdade de Letras do Porto, que a ditadura de Salazar extinguiu" (sic). Ora, o que se considera um erro cronológico sem importância, torna-se um juízo ideológico condenável do ponto de vista do conhecimento histórico, e ainda mais grave, do ponto de vista ético, porque: a) se atribui a um sujeito um predicado que lhe não inere, como se afirmássemos que a água é vinho; b) se ensina, a leitores não necessariamente informados, um erro como se verdade fosse. Não me incumbe a defesa de Salazar, nem disponho de poder e de saber para refutar as exegeses que o situam no palco, como principal actor de todos os malefícios. E também, ele, decerto, não precisará de testemunhos exógenos, porque os documentos de chancelaria testificam a verdade. Julgo eu!

(...) O decreto que extingue a faculdade portuense tem a data de 12 de Abril de 1928; o decreto que coloca Salazar nas Finanças tem a data de 27 de Abril de 1928. Presidente do Governo, general Vicente de Freitas; ministro da Instrução, José Alfredo Mendes de Magalhães. Salazar não fazia parte, nem teria ideia nessa data.»

Pinharanda Gomes («O silogismo "cornudo"»).


«Ter-se-á (…) aberto o caminho para que um dia se veja nascer uma Faculdade continuadora da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, extinta pelo salazarismo [sic], desta vez de Filosofia Portuguesa, tal como a ideou Álvaro Ribeiro em 1943.

(…) Na Faculdade de Letras do Porto, extinta pelo salazarismo [sic], o ensino era o cérebro inteiro.

(…) Leonardo Coimbra era licenciado em ciência, mas o mais extraordinário na Escola de Filosofia por ele fundada e extinta pelo salazarismo [sic] consistiu no critério de escolha dos restantes professores.»

António Telmo («Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos», Obras Completas, Vol. X).


«Os adversários da "filosofia portuguesa" não hesitam em utilizar todos os meios a que podem recorrer: desde a tentativa do assassínio de Sampaio Bruno perpetrada por Afonso Costa em pessoa (da qual dá notícia Fernando Pessoa), desde a campanha contra Leonardo que foi movida em todo o país pela organização universitária e culminou na extinção salazarista [sic] da escola de filosofia que ele havia criado no Porto, até à condenação ao silêncio e à mais humilde, difícil e crucificante existência de homens como Álvaro Ribeiro e José Marinho

Orlando Vitorino («O processo das PRESIDENCIAIS 86»).


«A personalidade de Leonardo Coimbra, tal como temos procurado descrevê-la, era, por assim dizer, a antítese, ou o antónimo, da personalidade de Oliveira Salazar. No pensamento, na linguagem, na oratória, na didáctica formavam uma oposição inconciliável e diametral. Cremos que esta verdade pode ser garantida pela leitura dos depoimentos e dos documentos, independentemente de outros juízos já formulados acerca dos dois homens públicos.»

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», III).



«Há tempos, num jornal do Porto, publicou Santana Dionísio um artigo, escrito na bela linguagem do maior prosador português vivo, em que narrava a vinda de Leonardo a Lisboa em 1935 (quando proferiu a conferência que desenvolveu no livro A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre) e a visita que ele e António Alvim lhe fizeram no hotel onde estava hospedado. Acontecia que nenhum dos discípulos de Leonardo quis assistir à conferência porque, movidos por um anti-salazarismo que deduziam do mesmo ensino que o Mestre lhes havia dado, viam nela uma condenável concessão, ao ditador, do filósofo da liberdade, e o comunismo não se lhes afigurava um mal que valesse tal concessão. Santana e António Alvim decidiram-se, no entanto, a fazer-lhe, horas antes da conferência, aquela visita a que deram o carácter de uma manifestação de cortesia e amizade. Leonardo não lhes falou nem na conferência nem em política e despediu-se deles com um sorriso amigo mas triste. Cinquenta anos volvidos, Santana Dionísio recorda o lamentável episódio e, envergonhado, descreveu-o como quem faz uma confissão pública. O que o levou a fazê-lo foi ter sofrido, em Portugal, a experiência do comunismo em acção e assim verificar que o comunismo é, na verdade, um mal que vale a concessão que Leonardo fizera a uma ditadura. Simplesmente, Leonardo não precisava de o experimentar para o saber.

Conta-se também que, no dia seguinte ao da conferência, se deu um encontro entre Salazar e Leonardo promovido por António Ferro que a ele assistiu acompanhado do jornalista Armando Boaventura. Pouco se sabe do encontro, que foi demorado e em breve se tornou agressivo. O pouco que se sabe é que o filósofo da liberdade não poupou o ditador racionalista e que este, no final da conversa, à maneira de despedida, lhe perguntou escarninho: "Por que é que o Sr. Dr. não escreve romances?"»

Orlando Vitorino («Leonardo e a Política»).


«Político, dedicado a um combate pelo bem da República, Leonardo Coimbra jamais poderia assumir a antítese ao necessário legalismo do Estado; mas cuidou no sentido de que o legal não abafasse o natural, e de que a autoridade não calasse a liberdade, e de que o estatismo não absorvesse o personalismo, por isso que, alfim, o seu personalismo é antes de mais um humanismo: o primado do homem. As actuações políticas de Leonardo em defesa e valorização da família, da educação juvenil, e da liberdade religiosa, apontam, - nele, que era um republicano de esquerda democrática - para este nível de visão humanista. [Testemunham os seus contemporâneos que, interpelado acerca da sua posição face à liberdade religiosa, respondera: "se para ser republicano é preciso ser ateu, eu não sou republicano." Defendeu, com efeito, a presença do crucifixo nas escolas, contra o laicismo republicano. Cfr. Álvaro Ribeiro, Memórias de Um Letrado, Lisboa, 3 vols., 1977-1980). A cidade é para o homem, o homem não é para a cidade; a política é para a pessoa, a pessoa não é para a política. Enfim, a lei para a natureza, por isso que a lei a-natural, inatural ou anti-natural é lei injusta, acto de escravatura e de homicídio. A lei que não respeita o homem livre é uma lei homicida, e, deveras, o mundo está cheio de leis homicidas.

Pensando assim requer uma posição pública equânime, equivalente e unívoca. Mesmo sem conhecimento do léxico popular ao chamado personalismo cristão, que emergiria de um Jacques Maritain, por via do tomismo - e Leonardo nunca foi um tomista, antes pelo contrário, ainda que numa certa fase o estudasse - o mestre criacionista atende univocamente a um personalismo, nele sui-generis sem o léxico do personalismo, próximo das terminologias liberais do findo século XIX, em Leonardo o substantivo indivíduo significa, nas mais das vezes, a pessoa. Indivíduo respira, no discurso leonardino, personalismo. Ele escreve a palavra mas não a carrega de ficcionismo jurídico, de modernismo social, de atomismo conceptual; escreve-a carregando-a de realismo humanista, de tradicionalismo natural, de universalismo ideal. Escreve indivíduo e significa pessoa. Por isso se testemunha quanto se "manteve sempre na atitude ética que, do seu pensamento personalista, respeitador da dignidade humana, nitidamente sobressaía". Tal posição ética unívoca levou o discípulo, o seu leal amigo, o seu inimitável admirador, Álvaro Ribeiro, a, mais de uma vez, sublinhar o carácter "personalista" de Leonardo - o que se torna digno de apreço, se levarmos em conta que também Álvaro Ribeiro não professou um tomismo, nem sequer o neotomismo, e que, tendo assumido uma atitude singular no quadro do pensamento político português, jamais houve necessidade de se apoiar no personalismo cristão. Álvaro tinha a seu favor uma leitura judaizante das Escrituras, por isso que podia afirmar um personalismo sem recurso ao tomismo, e mesmo sem recurso ao personalismo francês, mas importa sublinhar que Álvaro não receou predicar Leonardo Coimbra de personalista, sabendo como o adjectivo poderia conotar o mestre com o neotomismo. No entanto, a conotação foi anulada: o humanismo leonardino era amplo o bastante para que a predicação personalista nele entrasse, sem pôr em risco o seu perfil de autonomia mental e espiritual.

Dizer personalismo e personalista antes do moderno personalismo talvez houvesse pouco eco. Poderia havê-lo, atenta a herança tomista, mas não o havia, por ignorância, inclusa a da doutrina social movida pelas obras apostólicas eclesiais.»

Pinharanda Gomes («O Humanismo Personalista de Leonardo Coimbra»).














A OBRA MONUMENTAL DE PINHARANDA GOMES


Pinharanda Gomes é um espírito da terra, da terra que fica entre a Serra da Malcata, a dos últimos linces, e a da Estrela. Por aí se abre caminho à procura dos outros espíritos da terra que habitam os lugares. A sua obra, prólogo imenso, fala dos encontros com esses espíritos da terra. São livros, uns enormes, outros folhetos e opúsculos falando de espíritos que poucos ou ninguém conhece. Não cessa de os encontrar e de os dizer. Vai devaneando entre eles, e como o devaneio é propício à imaginação, muitas vezes Pinharanda se abandona a imaginar. Mas a sua imaginação é sobretudo filológica, cai toda nas palavras, lembra a recomendação de Heidegger aos tradutores franceses do seu enorme livro sobre Platão. Eram cinco os tradutores, e é um deles que conta como Heidegger lhes recomendou insistentemente que fizessem uma tradução filosófica e não filológica. Entende-se: uma tradução filológica é a de impecável correcção dicionarista e gramática mas de menor entendimento especulativo. Temos entre nós um perfeito exemplo desta concepção incorrecta na tradução da República por Helena Rocha Pereira, sábia professora universitária do grego.

Escrever é alinhar palavras a seguir a palavras, conceitos a seguir a conceitos, colocar entre eles partículas que muitas vezes elevam, outras vezes descendem e trocam os respectivos significados. É uma obra, a mais subtil e a mais significante. A metáfora de que é feita a linguagem é uma operação filosófica. Consiste em transpor uma palavra ou um conceito, até uma ideia, para outra palavra, outro conceito, outra ideia.

Pinharanda Gomes não consegue encobrir completamente o sentido primitivo, primogénito das palavras que utiliza. Ora o situa na linguagem escolástica com a qual se formou a linguagem filosófica dos povos europeus, que são os únicos onde há filosofia, ora o remete para as primeiras formas do vernáculo em vista do qual, como todos os verdadeiros escritores, sempre as emprega. Esse encobrimento é que muitas vezes disfarça com um aparente revivalismo do significado popular, telúrico, das palavras do seu paraíso perdido, da lembrança, se não da saudade, dos anos infantis da aprendizagem da língua que fala entre as aldeias das serras do interior que batem na fronteira do país. Não se trata da linguagem fradesca da qual Eça e Camilo limparam a nossa discursividade deixando dela saudades que homens como Aquilino reviveram com largos aplausos. E não se trata disso porque Pinharanda utiliza esse revivalismo, ou saudosismo, para conduzir a expressão aos ritmos conceptuais que Eça e Camilo tinham deixado esquecidos na ironia e no sarcasmo do seu génio renovador.

Ora, é pela conceptualização especulativa que Pinharanda salva a sua linguagem singular, enaltecendo e adaptando a linguagem poética de Leonardo e as profundidades eruditas de Bruno, os dois grandes pensadores da sua genealogia.

É também por aí que a si próprio se salva. A si, historiador da filosofia portuguesa, obra monumental, não tanto pela investigação que erigiu mas pela orientação que a moveu.

São raríssimas, talvez nenhumas, em qualquer filosofia nacional, as histórias propriamente da filosofia. As que existem rapidamente descendem a histórias dos filósofos, às vezes das doutrinas, quase nunca à filosofia que germina na inteligência colectiva ou individual das mentalidades. Um livro de filosofia, dizia Aristóteles, é um animal vivo. Nas histórias dos filósofos não chega a ter existência própria. É uma colecção de livros ou obras sem princípio nem fim: apenas nomes no tempo que corre.

Pinharanda Gomes começou por salvar a história da filosofia portuguesa da história dos filósofos portugueses.


O primeiro aspecto, o mais visível da monumentalidade da obra de Pinharanda Gomes, é a acumulação de conhecimentos eruditos de obras desconhecidas de pensadores portugueses que Pinharanda Gomes descobre em breves opúsculos, conferências noticiadas, artigos de jornais completamente ignorados. É nesse aspecto uma monumentalidade semelhante à de Inocêncio mas vai muito mais fundo.

Pinharanda sabe de raiz que a obra de filosofia é, como dizia Aristóteles, "um animal vivo" com suas genealogias, suas metástases imparáveis, seus prolongamentos de espírito para espírito. A história da filosofia é a história desse animal vivo com suas alegrias e triunfos, com suas doenças e dores, sobretudo com suas experiências, isto é, seus riscos de vida, que é o que são as experiências até no significado etimológico do ex-perire.

É aliás de riscos de vida que a história do pensamento se compõe. São eles o firmamento da ética e de toda a transição. Só arriscando a vida se passa de um estado a outro estado, da ignorância à sabedoria, do mal ao bem. Até a simples modalidade da existência se altera com o risco de vida. Passar de uma profissão para outra é passar pela morte da profissão que se abandona e se nos identificava. E quando o estado que se abandona envolve a existência ou com ela se identifica, a transição ou, no sentido que os gregos deram à palavra, a crise, é uma passagem pela morte. Há experiências em que tal passagem se torna sensível. Dá-se ela com a sensação de uma gelidez purificadora, catártica, uma gelidez tão pura que é a mesma presença do nada, talvez o contrário do estado místico perfeito, aquele que levou S. João da Cruz a dá-lo como a presença sensível de Deus, aquele que só há lugar para Deus. É o lugar da palavra única, salvadora e definitiva que os orientais tentam em vão, e com certo ridículo que Hegel sublinhou, substituir a palavra por um vocábulo apenas som, sem significado definido.

Importa, quanto a Pinharanda Gomes, observar que é ele um pensador especulativo que sabe e tem sempre presente que o povo português, do qual historia a filosofia, é uma realidade espiritual. Dizer realidade espiritual é dizer uma ideia. Ao escrever a sua história da filosofia portuguesa, Pinharanda Gomes não só o faz porque se dispõe a escrever a história de uma realidade espiritual como a escrevê-la na consciência de que é uma ideia que vai transmitir aos seus compatriotas, com os quais cultiva, em grande empenho, uma constante e íntima relação, expressão da natureza espiritual do povo.

Pinharanda Gomes é um epígono muito próximo de Álvaro Ribeiro, em quem via virtudes beatíficas, e de José Marinho. Talvez ainda mais próximo de Leonardo Coimbra, mais próximo no espírito embora mais distante no tempo.

É uma posição mais rara do que parece, ter presente que um povo é uma realidade espiritual, e é preciso remontar a Hegel e a Fichte para encontrarmos presente numa ideia essa realidade.

Entender como uma ideia a realidade de um povo é verdadeiramente criar esse povo. Por isso Nicolau Hartmann afirmou que o livro de Fichte "Discursos à Nação Alemã" é um dos maiores acontecimentos da história universal, afirmação que a estes portugueses nossos contemporâneos parecerá pelo menos extravagante devido à conta em que têm a filosofia e também a universalidade da história. Quanto a nós, temos sempre presente que Pinharanda Gomes decidiu fazer para o nosso povo o que Fichte e Hegel fizeram para o seu.

Remetida para o domínio das ideias, a fundação do povo português que os historiadores tentam explicar por descrições e arranjos dos acontecimentos, adquire um significado que a historiografia ignora. É esse significado que Pinharanda Gomes procura na sua história da filosofia portuguesa.

Importa conhecê-la em toda a sua conceptualização.

(in O Pensamento e a Obra de Pinharanda Gomes, Fundação Lusíada, 2004, pp. 23-26).







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