sábado, 31 de agosto de 2013

A Teoria da Verdade (i)

Escrito por Orlando Vitorino





Leonardo Coimbra



«Da visão unívoca tudo parte; para a liberdade, mas liberdade enunciada com diferente atributo, tudo afinal conflui. Emerge, porém, o segredo das mais intrínsecas relações do ser e da verdade, emerge o princípio de todo o saber, do vínculo irrefragável mas ténue e subtil entre a visão unívoca e cisão. Sem o que cinde absolutamente no que absolutamente une, não há saber do espírito, não há sentido para ser consciente, não há exercício autêntico do pensamento. Considerando, entretanto, como no espírito está muito obliterado o saber de si e para si, tendo em mente as mais profundas razões, ou razões da razão, às quais na terceira parte do livro com a demora possível se atendeu, impôs-se de novo modo designar aquele pelo qual em nós há todo o segredo de cindir e unir. Tal é o insubstancial substante, o que se diz como o que é, ou é só pela assumpção do Nada. Os caminhos de toda a ontologia do ser enquanto ser, quer ontologia do homem, vão a nenhures, à irremediável cisão. Se fosse já agora lícito assim dizer, poderia advertir-se que toda a estática e dinâmica teorese aporta aqui a uma ontologia do espírito. A expressão ocorre no último livro de Leonardo Coimbra. Com sugestivo intento o mencionamos».

José Marinho («Teoria do Ser e da Verdade»).


«A doutrina da cisão ilude e engana quando transita ou recorre do distinguir para o separar. Na sensação externa como na intuição interna um terceiro termo é dado, absorvente ou unificante. Em mais elevada ordem de pensamento, quando o juízo surge por virtude de objectivo, a dialéctica parece fortalecer a cisão. Os adjectivos prestam-se a figurar os contrários, pela facilidade conferida ao escritor para manipular os prefixos de negação e de privação. Tudo se opõe ao Nada, como se fosse um simples pronome indefinido com a inicial maiúscula, como se fosse um nome. A dialéctica não é via para a verdade, quando desfigurada em meio jogo sem arte nem trabalho.

(...) A teoria do separador, visão auroral de luz que se intensifica até se transformar em fogo, representa o incêndio que está devorando tudo quanto até agora parecia sexo e fixo, na ordem humana como na ordem cósmica e na divina. As mulheres sorriem maliciosamente da casa que arde para ser parte de casa ou cinza de casa, com ruína total do casamento, porque fora do lar já está proclamada e decretada a cisão humana pela igualdade dos sexos. Tudo se abisma do Nada, e da cisão emergem para ilusão da nossa vida o amor e a fé. Eles explicam a paixão humana, já sem acção, e implicam o respectivo engano, porque se firmam no que é apenas simbólico, de relação entre o patente e o secreto, mas de mínima, remota e inatingível verdade. O pensamento transforma e anula tanto o amor como a fé porque pensar é cindir e desunir. Frágil é a amizade humana, frustes as relações e as religiões, abstractas as condições do espaço e do tempo, ilusória a irreversibilidade do movimento. Seria, no entanto, impensável o ser em vertiginosa decadência à da cisão, que é o insubstancial substante.


Apresentada de perfil e sem minuciosa crítica, mas de modo a facilitar imparcial entendimento, a fenomenologia da cisão não representa todo o mérito da Teoria do Ser e da Verdade. O mais alto valor da obra está  no ensaio de opor à fenomenologia do ser uma ontologia do espírito. Estas expressões de erudição universitária e de indústria editorial evocam, mas agora de propositada utilidade, os termos da filosofia eleática, da filosofia ateniense e da filosofia alexandrina (e assim dizemos porque não há unidade que se denomine filosofia grega, nem totalidade que se denomine filosofia antiga), como evocam também os densos, complexos e volumosos livros que a Alemanha exporta para consumo dos estudantes de filosofia. Hegel escreveu, como é sabido, uma Fenomenologia do Espírito, em réplica à ontologia do espírito que Kant estudou nos subjectivistas britânicos, Locke, Berkeley, Hume, e que teorizou como ontologia do intelecto (Verstand) aquém da razão cristã, humana e divina (Vernunft). O estudioso José Marinho, afectado por funda aversão contra a filosofia escolástica, na medida em que esta se apresenta como face exotérica do esoterismo cristão, deixou-se fascinar pela mística teutónica e consequentemente pelo idealismo alemão, pensando em luta contra as tendências normais e formais da filosofia portuguesa, que já do rubro fatalismo islâmico e do verde profetismo hebraico recebera aquele sinal activista e realista que na obra de Aristóteles figura em verdade perene e dominante».

Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).





A Teoria da Verdade


1. Muito é preciso amar, decerto, para aprender a amar a sabedoria? Muito é preciso para isto que é a filosofia, amor do saber.

Há filosofia como há homem e só porque há homem?

Que seja como há homem não nos parece, pois muitos homens existem que se não dão por filósofos e ignoram, até abominam a filosofia. Já se nos afigura que sim, que há filosofia porque há homem, uma vez que só o homem pode saber que não sabe e em consequência amar o saber, pois o que mais se ama é o que se não tem.

Os deuses, se acaso aí estão, não são filósofos. Não carecem de amar o saber, visto que o têm todo e por isso são deuses. Já é possível que os anjos se encontrem nas condições do homem, careçam do saber e o amem. Mas Álvaro Ribeiro ensina que a filosofia é coisa da razão, que a razão é humana e angélica a inteligência. Os anjos não sabem, pois, por razão mas por inteligência. Temos de reconhecer que há filosofia só porque há homem.

Monte Olimpo

“Qui fait l’ange, fail la bête”, dizia muitas vezes José Marinho lembrando Pascal. Traduzamos: o que se diz do animal, diz-se do anjo. Que se diz do animal? Não se pode deixar de dizer que é sábio, pois sabe o que sabe e não suspeita do que ignora. Quer dizer: não sabe que não sabe. Não é isto que se diz do anjo, mas para a filosofia, é o equivalente: o anjo não chega a ignorar o suficiente para amar saber o que não sabe, não possui o que Nicolau de Cusa chamava “douta ignorância” e, estamos tentando ver, é condição da filosofia.

É evidente que estamos falando só para quem não duvida que haja, não apenas homens e deuses, mas também animais e anjos. Não falamos para quem ache ridículo discutir o sexo dos anjos quando Constantinopla está a arder, não vendo como nisso está a grandeza do homem. Poeta de grande gabarito cantou os jogadores de xadrez enquanto Constantinopla ardia. Os que se riem daqueles que discutem anjos, admiram estes que jogam xadrez. Mas deles se está rindo e fazendo-nos rir o tal poeta de grande gabarito que, para mais, se deu ao luxo luciferino, ele que evidentemente acreditava em anjos, de pôr jogadores em vez deles e a jogar esse paupérrimo jogo de estúpidos que Edgar Poe nos diz ser o xadrez.

2. Só, então, o homem é filósofo. Nem deuses nem anjos. Nem talvez aquele famoso demónio de Sócrates, que não passava de um intriguista. Só o homem. Todos os homens? Miguel de Unamuno disse, sobranceiro sobre não se sabe o quê: “um filósofo que não é homem, é tudo menos um filósofo”. Que sugeria Unamuno que fosse? Um deus? Impossível. Um anjo? Improvável. Um animal? Neste ponto, respondeu José Marinho a Unamuno: “Um homem que não é filósofo é tudo menos um homem”. Um animal por conseguinte? Não tanto, mas pouco mais.

3. Que diremos do artista? Do poeta, do pintor, do músico, que diremos? Também a arte só a há porque há o homem? Não nos demoremos a procurar o melhor modo de interrogar, porque poetas, pintores e músicos falam por si. Dizem uns que poesia é criação e Deus, que criou este mundo, é poeta. Dizem outros que a natureza é pintura. E os músicos falam sempre da música dos anjos.

Só, então, a filosofia é humana; e a imagem de que se acompanha é a de um homem andrajoso percorrendo praças antigas onde camponeses e comerciantes, anjos e deuses, poetas e pintores, “vendem o que dão”, e – diz Sant’Anna Dionísio – congratulando-se para consigo: “Tantas coisas há no mundo de que eu não preciso!”


Álvaro Ribeiro, sempre o mais sério dos homens, e misantropo, conceptualiza. O que os homens fazem, fazem-no ou como trabalho ou como jogo ou como arte. Há os que pensam trabalhosamente, como os eruditos e os professores. Há os que pensam ludicamente, como os poetas. E há os que pensam artisticamente, como os filósofos. Entende pois Álvaro Ribeiro que a filosofia é uma arte. Mais: a arte por excelência, simplesmente a arte.

E ria-se dos poetas que pretendem imitar Deus. Ria-se dos músicos que se atribuem a inteligência dos anjos e, imitando Pitágoras, confundem a tautologia matemática com a harmonia das esferas. Depois, enfadava-se com a ironia de Platão e a utilização que ele faz do “fácil” diálogo teatral para levar a concordar com o protagonista as personagens dóceis de interlocutores que não dominam a trivial dialéctica, deixando passar sem discussão as premissas que lhes são postas por Sócrates. Aborreciam-no, enfim, as conversas livres ou desatadas do mais dotado dos filósofos, seu companheiro quotidiano de toda a vida, a quem não se cansava de advertir do breve passo que vai desde a conversa desatada ao jogo e desde o jogo ao cepticismo.

4. Dizia Almeida Garrett, segundo alguns mestre e modelo de Pessoa, que não há civilização onde não houver teatro. Porque há sempre teatro, durante longos anos entendemos que Garrett se iludia. Até que chegámos a uma época em que deixou de haver teatro e, efectivamente, a civilização degradou-se em cultura. Garrett estava, pois, seguro no que dizia.

Do que nós estamos seguros, é de que só há civilização onde há filosofia. Onde a não há, seja o Oriente longínquo e parado seja o Ocidente próximo e alheio, não há civilização, há “culturas”. De um jornalista que me falava exaustivamente de um Continente onde vivera largos anos e a quem perguntei se ainda havia por lá canibalismo, ouvi esta resposta: “Sim, o canibalismo é uma forma de cultura persistente”. Nas escolas que por aí estão abertas ensinar-se-ia aos jovens que o canibalismo é um fenómeno de “antropologia cultural”.

Não me lembro em qual daqueles diálogos platónicos que enfadavam Álvaro Ribeiro, talvez na “República”, aparece um estrangeiro, creio tebano, a perguntar a Sócrates se é possível ser filósofo a quem não habita na cidade. A cidade – dirão eruditos e professores – seria Atenas, mas nós sabemos bem que ao que o estrangeiro se referia era à civilização. O que os gregos chamavam cidade é, simultaneamente, o fora e o dentro, a polis e a política, a cidade e a civilização. Bem o entenderam e prolongaram os romanos. Tudo bem pesado e melhor pensado, tudo é o mesmo: civitas e polis, civilidade e política, civilização que a tudo resume.






Quem veio dar a resposta ao tebano foi Aristóteles quando, não acerto se na “Ética Nicomaqueia”, afirma impossível ser feliz se não viver na cidade. Por isso o afirma, por entender que cidade e civilização são o mesmo. Por isso e também por, realista, entender por civilização e cidade o que, com realismo não tão amplo e sério mas cínico e lúdico, Maquiavel chamou, e nós continuamos a chamar, Estado, o que aí está para dar efectividade às leis, ao direito, à política. Não se discute se o Estado aí está por suas leis serem próprias, seu direito justo, sua política verdadeira. Sugere Maquiavel que nunca o são, e o que há a fazer é aceitar, mas com todas as reservas mentais. No realismo aristotélico, porque o que aí está tem sempre aquele mínimo de verdade, de justiça e de propriedade que lhe tornou possível estar aí.

Num e noutro realismo, o aristotélico e o maquiavélico, a existência da civilização está ligada ao que a cidade ordena, à ordenação, à efectividade das leis, do direito e da política, que não são para negar. Por dois motivos não são para negar: o primeiro, é o de que a efectividade das leis, e do mais, será em todos os casos preferível à ausência de leis; o segundo, é o de haver sempre uma razão para aí estar o que aí está. É este último motivo que levou Aristóteles a justificar a escravidão, para escândalo dos anti-aristotélicos que não hesitam em justificar a pena de prisão e cantar a servidão socialista.

Platão é que era um ingénuo e punha-se a edificar cidades utópicas e a escrever constituições políticas. É certo que dizia fazê-lo como os poetas fazem tragédias e comédias. Ressentimentos de poeta frustrado serão, então, a REPÚBLICA e AS LEIS, será então a POLÍTICA? De Platão é possível, pois sabemos que escreveu comédias e tragédias. De Aristóteles impossível, pois não consta que alguma vez se tenha dedicado ao teatro. E em Maquiavel não se pode suspeitar que haja frustração, ele que é o autor da MANDRÁGORA.

5. Situando-nos agora no terreno mais acessível ao vulgar entendimento, consideremos que as nações, com seus estados e Repúblicas, têm origem, existência e fim no tempo que corre, e admitamos que um momento houve em que uns tantos humanos se agruparam e formaram numa sociedade. Admitamos que essa terá sido a origem das nações. Fizeram-no movidos por algum daqueles interesses que o vulgar entendimento mais facilmente compreende e aceita: seja a defesa de afinidades étnicas para a sobrevivência num mundo hostil, seja a combinação de esforços e meios para a prosperidade comum. No primeiro caso, o grupo formar-se-á como nação, no segundo como república, e a respectiva organização virá a constituir o Estado.

Ora acontece que as afinidades étnicas se diluem rápida e inevitavelmente no tempo, nas vicissitudes, alterações e mudanças que ele traz, na mesma natureza dessas afinidades que se quebram e esvaem pela dispersão que acompanha a variedade das relações pessoais e familiares; com o casamento, ou seu equivalente, os filhos separam-se dos pais e as famílias dissolvem-se.

A mesma dispersão e dissolução se dá nas repúblicas: os interesses económicos que deram origem ao agrupamento são ainda mais variáveis e alteráveis do que os interesses étnicos. Em ambos os casos, na existência do Estado que as organiza, a efemeridade é manifesta e inevitável. Que faz, então, que elas perdurem para além do esvaimento dos motivos que as originaram e só efemeramente as podem conservar? Que faz que adquiram perenidade e se tornem a substância real e viva do próprio tempo em que perduram, tornem história o que, sem elas, seria mera sucessão e decorrer? O que isso faz é combinarem-se elas, a nação e a república, com elas o Estado, combinarem-se numa unidade que transcende os limites da transitoriedade característica dos agrupamentos naturais e económicos. Tal unidade, ao mesmo tempo que as transcende, nelas se entifica e adquire existência no mundo. E a entidade que assim se forma não tem sua realidade presa ao efémero, encerrada nos limites do presente que transita de um breve passado para um próximo futuro, mas no pensamento.




É, portanto, uma entidade espiritual, e tem-lhe sido dado o nome de Pátria para significar o domínio do pai, que é o Espírito Santo. Em paralelo, Leonardo Coimbra propôs, para a nação, o nome de Mátria, ou domínio da Mãe, que é a Natureza.

6. Caracteriza-se esta entidade espiritual por negar o que há de negativo no ócio das nações e no negócio das repúblicas.

A primeira negatividade que a Pátria nega é a sujeição da sua existência às alterações e mudanças características e constantes na natureza e na economia; assim obedece ao preceito aristotélico de que “o desejo de mudança é sinal de perversidade”.

A segunda negatividade que nega é toda a limitação ao que, nos indivíduos ou pessoas e nas relações entre eles, constitui a sua íntima, autêntica e humana realidade. Trata-se de uma negatividade que só a Pátria pode negar porque essa realidade é o pensamento, actividade do espírito, e a Pátria é uma entidade espiritual.

Estas duas negações implicam duas afirmações. A primeira implica a afirmativa determinação, à existência da nação e da república, de finalidades que transcendem os naturais limites nacionais e republicanos e se lhes sobrepõem. Implica a segunda a organização do Estado, e do Direito que ele tem por razão de ser efectivar, como realização da liberdade. Com efeito, a liberdade reside primordialmente, se não exclusivamente, na presença manifesta do pensamento. Dir-se-á, como teremos de vir a dizer demoradamente, que o pensamento é o portador da liberdade, e o espírito surge com a liberdade.

7. Eis, então, por que dizemos que só há civilização onde há filosofia ou, mais radicalmente, que é a filosofia a origem e a substância da civilização. Assim dizíamos porque, como se nos tornou agora evidente, a civilização é o que as nações e as repúblicas realizam para além do que há de efémera necessidade nas nações e de fortuito nas repúblicas, o que realizam quando se combinam na unidade da Pátria. Desta entidade espiritual depende tudo isso que, na actividade das nações e repúblicas, está para além dos seus limites e consiste no pensamento. Ora a primeira condição para haver autêntico pensamento é ter ele o saber de si, assumir-se como pensamento do pensamento. O pensamento do pensamento é a filosofia.

Mandala Tibetano

8. Dizendo que só há civilização onde há filosofia, dizemos afinal que só há uma civilização. É que só é filosofia a que derivou daquele princípio socrático segundo o qual o que mais importa, o que primeiro importa, e tudo daí depende, é saber o que seja o pensamento. Outras formas, outros modos de pensamento existem, decerto, em quase toda a parte onde existem homens, e a elas se tem também chamado “filosofia”. Tal se dá, por exemplo, com o “orientalismo”, cuja impossível apreensão intelectual mais faz aumentar o fascínio que exerce em ambientes ou mais suspicazes da autêntica filosofia, ou que lhe são mais renitentes, ou mais desviados dela, ou mais entregues seja a uma teologia encerrada na fidelidade a uma religião, seja no cientismo mais confiante na certeza do que na verdade, seja enfim ao travesti de liberdade com que se passeia, feliz e contente, a irresponsabilidade da arte mais leviana e celebrada. O fascínio do “orientalismo”, em cujas fórmulas enigmáticas, repetidas à saciedade, se procura adivinhar profundas e inefáveis sabedorias, chega a levar os eruditos a atribuírem-lhe a remota e longínqua inspiração, até a secreta origem, do que de mais genial, ou apenas decisivo, deu forma à civilização.

Certo é, todavia, que tais formas de filosofia, se filosofia lhes podemos chamar, são tão pouco o pensamento do pensamento que nas suas expressões mais significativas, sejam as directamente orientais, sejam as que põem a filosofia suspensa de uma mística do inefável, como acontece no idealismo alemão, todas elas se dedicam exclusivamente a saber o que é o ser. Não tanto a saber como a simplesmente o afirmar. Não tanto a afirmá-lo como a suspender dele tudo o que há, depois negar tudo que há e, por fim, identificar o ser com o não-ser para acabarem por negar o próprio ser. Se “filosofia” temos de lhes chamar, diremos que são elas “filosofia do ser”.

Todavia, quem diz filosofia diz amor do saber, e todo o saber autêntico é saber da verdade, não do ser. Toda a filosofia é, pois, uma teoria da verdade. É como teoria da verdade que a “filosofia portuguesa” se expõe (in Leonardo, Revista de Filosofia Portuguesa, n.º 2, Ano I, Junho de 1988, pp. 4-7).

Continua


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

José Marinho

Escrito por António Telmo








«REVISTA PRINCÍPIO: "Agostinho da Silva disse, numa das suas frequentes entrevistas, que os mesmos que, hoje, exaltam Fernando Pessoa são os que o silenciariam se ele fosse vivo"

TOMÉ NATANAEL: Reparem como o patriotismo de Fernando Pessoa é considerado um aspecto menor do que escreveu. Até D. Afonso V (Pessoa pensava que até D. João II) Portugal foi regido pelos Rosa-Cruzes; tal é, pelo menos, o ensino da Mensagem. A monarquia, com D. João III, passou para as mãos dos seus inimigos. Há o análogo disto na Europa, com a diferença que, nesta, a mutação dá-se mais cedo, quando aqui reinava D. Dinis. É então que se começa a trabalhar para a implantação do socialismo pela propaganda da noção de igualdade. Levou séculos, mas foi fácil. Bastou fazer passar a inveja por generosidade. O socialismo é, pois, obra dos Rosa-Cruzes. Tornou-se necessário para combater aqueles que se tinham apoderado da monarquia.

Hoje, porém, qualquer tentativa de derrubar os governos socialistas é aproveitada por estes últimos, que aparecem como os verdadeiros representantes da Pátria. Compreende-se assim que o monarquismo de Fernando Pessoa e o republicanismo de Sampaio Bruno sejam a mesma coisa. Não sei se me fiz compreender...».

«Conversando com Tomé Natanael» (entrevista inserta em António Telmo, Viagem a Granada).


«Os Budistas, para trabalharem para a convergência dos homens para o Segundo Advento, apresentaram sempre Jesus aos seus sequazes como um Adepto, pois, se o apresentassem como Deus, ou como Deus e Adepto ao mesmo tempo, nem seriam compreendidos nem aceites pelas populações budistas. Precisavam manter nelas o respeito preparador de Jesus; fizeram-no pondo-o como respeitável no nível que seria compreendido. Só a Teosofia é que, finalmente, declarou o Segundo Advento, e, ainda assim, como deveras lhe compete, não insiste muito na outra face da Figura, na face transcendente e divina.

Os Rosa-Cruz, por outra parte, tendo de ministrar, embora veladamente, o mesmo ensinamento a outras populações, apresentaram-no de diverso modo. Não se referiram, senão de modo tão velado que só o compreendesse quem pudesse compreendê-lo, a Jesus, ao Adepto; apenas aludiram ao Cristo, ao Filho de Deus. Assim nada, no que diziam, feria a fé católica ou cristã dos seus leitores.

Do mesmo modo não aludiram os Rosa-Cruz, em seus escritos, claramente à doutrina da reincarnação, elemento físico do ocultismo todo. Tal doutrina, embora contida em verdade no verdadeiro cristianismo, não está nele dada esotericamente. Ensiná-la seria ferir as populações cristãs, erguer o ódio das Igrejas cristãs, prejudicar a preparação que os seus livros serviam de efeituar». 

Fernando Pessoa (in António Quadros, Fernando Pessoa – Iniciação Global à Obra).






Zoroastro



«Entre os Egípcios, como entre os Persas da religião mazdeana de Zoroastro, como depois de Jesus, em Israel, como para os cristãos dos dois primeiros séculos, a ressurreição foi interpretada de duas maneiras: uma material, absurda; a outra espiritual, teosófica. A primeira é uma ideia popular, adoptada pela Igreja, depois da repressão do gnosticismo. A segunda é a ideia profunda, a ideia dos iniciados. No primeiro caso, o corpo material volta à vida, o que é, numa palavra, a reconstituição do cadáver decomposto ou disperso. Isso era o que se supunha que iria acontecer com a volta do messias no dia do juízo final. É inútil acentuar o materialismo grosseiro e absurdo de tal concepção.

Para o iniciado, a ressurreição tinha um significado diferente: ela relacionava-se com a doutrina da constituição ternária do homem, significando a purificação e a regeneração do corpo sideral, etéreo e fluídico, que é o próprio organismo da alma e de algum modo a cápsula do espírito. Essa purificação pode ocorrer desde esta vida, pelo trabalho interior da alma e um certo modo de existência. Para a maioria dos homens, ela só se efectua depois da morte. Isso para aqueles que de um modo ou de outro aspiraram à justiça e à verdade. No outro mundo, a hipocrisia é impossível. Lá, as almas aparecem como elas realmente são. Manifestam-se fatalmente sob a forma e a cor da sua essência. Se são más, aparecem tenebrosas e feias. Se são boas, aparecem irradiantes e belas. Tal é a doutrina exposta por Paulo, na Epístola aos Coríntios. Ele diz formalmente: "Há um corpo animal, há um corpo espiritual" (CORÍNTIOS, XV, 39-46). Jesus diz isso, simbolicamente, porém, com mais profundeza, para quem sabe ler entre as linhas, na entrevista com Nicodemos. Ora, quanto mais espiritualizada a alma, maior será o seu afastamento da esfera terrestre; quanto mais longínqua a região cósmica que a atrai, por sua lei de afinidade, mais difícil a sua manifestação aos homens.

Assim, as almas superiores só se manifestam aos homens no estado de sono profundo ou de êxtase. Então, fechados os olhos físicos, a alma, meio liberta do corpo, algumas vezes vê almas. Acontece entretanto que um grande profeta, um verdadeiro filho de Deus, manifesta-se aos seus de uma maneira sensível, em estado de vigília, a fim de melhor persuadir e impressionar os seus sentidos e imaginação. Nesse caso, a alma desencarnada consegue dar, momentaneamente, ao seu corpo espiritual, uma aparência visível por meio de um dinamismo particular que o espírito exerce sobre a matéria, mediante forças eléctricas da atmosfera e forças magnéticas dos corpos vivos.

Foi o que aconteceu com Jesus, segundo parece. As aparições mencionadas pelo Novo Testamento entram, alternadamente, numa ou noutra dessas categorias: visão espiritual, aparição sensível. É certo que, para os apóstolos, elas tiveram o carácter de uma verdade suprema. Seria mais fácil eles duvidarem da existência do céu e da terra do que da sua comunhão viva com Cristo ressuscitado. Essas visões comoventes do Senhor eram o que havia de mais radioso e mais profundo na consciência deles.






A ressurreição, entendida no sentido esotérico, como acabei de indicar, era ao mesmo tempo a conclusão necessária da vida de Jesus e o prefácio indispensável à evolução histórica do cristianismo. Conclusão necessária pois Jesus tinha anunciado isso muitas vezes aos profetas. Se ele teve o poder de aparecer-lhes depois da morte, com aquele esplendor triunfante, foi graças à pureza e força inata da sua alma, centuplicada pela grandeza do esforço e da obra realizados.

Visto do exterior e do ponto de vista terrestre, o drama messiânico termina na cruz. Embora sublime, falta-lhe o cumprimento da promessa. Visto de dentro, do fundo da consciência de Jesus, do ponto de vista celeste, ele tem três actos. A Tentação, a Transfiguração e a Ressurreição marcam os pontos altos. Em outros termos, essas três fases marcam: a iniciação do Cristão, a revelação total e o coroamento da obra. Correspondem àquilo que os apóstolos e os cristãos iniciados dos primeiros séculos chamaram os mistérios do Filho, do Pai e do Espírito Santo».

Eduardo Schuré («Os Grandes Iniciados»).


«Cristianismo é coisa dificílima e cristão homem raríssimo.

(...) Mas tudo está corrupto no homem porque lembramos a Cristo e queremos ser cristãos. É muito difícil, senão impossível, que as coisas fossem de outra maneira. E entretanto ser cristão retira a tudo o sentido e leva-nos a conhecer o espírito pelas exterioridades e a repetir em vez de criar.

O segredo de Cristo é que foi ele, sem querer ser o análogo do que antes fora».

José Marinho («Ensaios de Aprofundamento e outros textos»).




José Marinho


Lembro-o melhor na Brasileira do Rossio, junto a uma das colunas do velho templo maçónico, que hoje é Banco e então era Café, nos meus anos moços. Movia a cabeça com o garbo de uma águia, atento e flexível aos sopros invisíveis do Espírito, uma espécie de núncio apostólico da luz única. Aquela cabeça era um sol.






Tenho a honra de ter pertencido ao círculo que a sua palavra traçava. Naquele Café de mulheres perdidas, de actores vencidos, de traficantes e de chulos, de bombistas sem préstimo ou de revolucionários sem emprego, a filosofia, que não encontrávamos na Universidade, era uma lâmpada. Formávamos roda sobre a mesa preta, traçávamos o círculo por entre nuvens de fumo. As káfkicas baratas, pré-históricas, tão antigas como o tempo, corriam por todo o lado. À esquerda e à direita, ladeando o rectângulo da grande sala, havia límpidos espelhos paralelos que multiplicavam as imagens até ao infinito.

José Marinho produzia em quem teve a ventura de o conhecer a impressão de se estar, não perante um homem, mas perante o próprio pensamento. A postura do corpo, a maneira de olhar, a subtil e doce ironia do sorriso, o movimento aéreo das mãos,o próprio jeito de compor a gravata acompanhavam o movimento do seu espírito reflexivo. Era muito difícil segui-lo por onde ia. Quando um de nós, entusiasmado com uma ideia, lha dizia com alguma empáfia, não o contradizia, deixava-o para trás para que imaginasse à frente outras e melhores ideias e isto com um simples "Já passei por aí". Ele ensinou-nos a única religião irrefutável: a de uma inteligência cujo acto é impossível se não regressa continuamente à origem, ao segredo do próprio pensar, ao ponto sem dimensão donde tudo emerge. O pensamento nele era a demonstração de Deus. Por isso foi para nós, seus discípulos, um dos últimos rosacruzes.

Escreveu nessa época a Teoria do Ser e da Verdade, onde, pela visão unívoca e pela cisão, une, numa sucessão de logismos e de intuições, segundo o processo mental da corrente alterna, o que de mais revelador significam a cruz e a rosa. Nunca, porém, nos foi dado racionalizar a filosofia de José Marinho, de tão ligada ao seu misterioso ser singular, tão sua e de Deus e por isso inacessível.

Quinze anos volvidos, nos últimos meses que passou connosco, quis a fortuna que todos os dias almoçássemos juntos. Vi-o pela derradeira vez nesta vida numa cama de hospital. Levei os meus dois filhos, ele com cinco, ela com oito. A magreza de Marinho era impressionante. Era já só espírito. Dois dias depois falecia. Os médicos disseram que morreu em êxtase.

Nos últimos anos da sua vida, foi funcionário da Fundação Gulbenkian. Exactamente, FUNCIONÁRIO DE PSICOLOGIA, uma monstruosidade concordante com um mundo em que se desalojam Cafés para se edificarem Bancos e se evanesceu de todo a ideia arqueológica de iniciação filosofal.

Funcionário de psicologia! E de psicologia científica!... Com que suspicaz e penetrante ironia, mas também infinita cautela e até alguma caridade para seus confrades doutos, se referia ele à vil ocupação inglória do tempo da vida, em que fingia ou fazia por seguir uma ciência definitivamente refutada em todos os livros de gente e, portanto, também nos seus. Este conflito entre a secreta, séria e honrada obediência à luz da verdade e amor aos seus próximos que, enquanto homens e mulheres, participavam e comungavam, por este ou aquele modo, dessa mesma verdade, explica em grande parte o seu estilo de viver, em que compreensão e interrogação apareciam como um só movimento.

Fundação Gulbenkian


Entende-se assim por que José Marinho não tenha concitado o ódio dos outros homens. Um por um, evidentemente, na terrível miséria cheia de dignidade do seu seu individual. Mas o ser genérico dos homens reunido pela força dos egrégores, a que os poetas chamam molusco e a teologia diabo, na impossibilidade de o absorver e integrar, haveria de catapultá-lo para lá das portas da morte.

Que Deus tenha em paz a sua alma! (in Viagem a Granada, Fundação Lusíada, 2005, pp. 217-218).


terça-feira, 27 de agosto de 2013

Para Álvaro Ribeiro: sete notas a dez anos cada

Escrito por Agostinho da Silva









«(...) O paradoxo é maneira de dizer que, por se afastar da linguagem vulgar e do senso comum, desperta o pensador para uma reflexão fecunda. O paradoxo é valioso mas perigoso, porque pode também desfiar paralogismos e sofismas que encobrem a mais pérfida geração do erro».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«Dá-nos Agostinho da Silva uma imagem de si que é a imagem do filho pródigo antes de regressar a casa de seus pais. A casa que abandonou é a escola de Leonardo Coimbra, a Renascença Portuguesa, a mitologia de Pascoaes, a filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Sempre a casa lhe esteve e está aberta, com o lume aceso e o pão na mesa. Amuos de Menino - ele é que é o Menino dos "Impérios" - prendem-no lá fora ao frio de um cientismo que deu o que não tinha a dar, à secura de um racionalismo sergista de que já não se vê o que ficou e coisas semelhantes que são o que mais há por esse mundo das universidades, das academias, das instituições, das teocracias sem Deus onde Agostinho parece dizer que gosta de fazer figura».

Ernesto Palma («Agostinho da Silva, filho pródigo»).


«Luís Machado - Professor, em termos do seu percurso, o senhor cursou a Escola Superior para ficar habilitado a leccionar no ensino oficial, e só mais tarde é que faz o doutoramento, não é verdade?

Agostinho da Silva - Não, fiz o doutoramento antes. Um dia passei pelo Rossio e cruzei-me com o homem das Conferências do Casino, o António Augusto Salgado Júnior, que já no Porto era um dos homens que mais sabia de literatura portuguesa, tanto ou mais que os próprios professores da Faculdade. O Salgado logo me veio cumprimentar e alertou-me para o problema da discussão da tese de douramento no Porto; informou-me que o prazo estava quase a acabar, pois faltavam apenas três ou quatro meses. Não sei se sabe, mas a Faculdade de Letras do Porto tinha sido extinta por decreto. Então o Salgado disse-me:

" - Olhe, eu vou fazer o doutoramento, porque quero mesmo seguir a carreira universitária. Agora quanto a si, você é que sabe".


Respondi-lhe:


" - A mim não me interessa muito, porque quem deu cabo da Faculdade do Porto foi a Universidade de Coimbra e a Universidade de Lisboa, de maneira que quando eu puder rebentar com elas, rebento. Carreira também não tenciono seguir, mas sou contra injustiças..."


De repente pensei melhor e disse para mim: "Quem sabe se um dia realmente um doutoramento até não me vai ser útil". E disse-lhe:


" - Também vou!"



Templo de Poseidon


" - Olhe, então vamos os dois!", respondeu ele. Tive assim de preparar, à pressa, uma tese onde defendia que os Romanos nunca tinham ido ter com os Gregos e que estes não tinham ideia do decorrer do tempo da história. Nunca mais li aquilo. Hoje acho que ela deve ser muito ruim, mas com tão pouco tempo para a preparar, tinha de ser mesmo assim, e lá fui doutorar-me ao Porto, na minha universidade...

Na cerimónia, entre a assistência, estava o Doutor Joaquim de Carvalho, que apesar de ser um homem da Universidade de Coimbra não se confundia com o resto da universidade, porque estava à parte; por isso conservei relações com o Joaquim de Carvalho. Um dia escreveu-me para me dizer que tinha assistido ao meu doutoramento. Logo a seguir tive uma bolsa para ir para Paris».


«A Última Conversa com Agostinho da Silva. Entrevista de Luís Machado».


«E o impossível atravessava a religião do povo na Idade Média, outro dos elementos desse paraíso perdido que há a recuperar, segundo o Professor, ou seja o culto do Espírito Santo, o culto do imprevisível, com a coroação do menino imperador, a comida gratuita e a libertação dos presos. Que coisa melhor pode querer Portugal para o futuro? Seguindo Agostinho da Silva, Cristo prometera que depois dele viria o Espírito Santo, o Consolador. O povo português, segundo o Professor, antecipava esse futuro e instaurava desde logo na terra o reino do Espírito Santo.


E, numa daquelas tiradas bem agostinianas, afirmava: "a imaginação estava à solta. Isto é, o povo português, no princípio da Idade Média, já tinha a ideia que tiveram os estudantes franceses no seio dos movimentos de Maio de 68!". A imaginação ao poder, a imaginação a governar a vida!».

Antónia de Sousa («O Portugal de Agostinho da Silva», Comunicação apresentada no Colóquio Internacional sobre Agostinho da Silva "O Mundo avança na medida em que alguém pergunta" realizado nos Paços do Concelho, em Lisboa, 14 e 15 de Fevereiro de 2001).





Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Che Guevara em Cuba (1960).










A destruição provocada pelo Maio de 68.












«Que Santo António foi luz do mundo porque foi verdadeiro português e que foi verdadeiro português porque foi luz do mundo. Bem pudera Santo António ser luz do mundo sendo de outra nação; mas uma vez que nasceu português, não fora verdadeiro português se não fora luz do mundo, porque o ser luz do mundo nos outros homens é só privilégio da Graça; nos portugueses é também obrigação da natureza».

Padre António Vieira («Sermões»).





Para Álvaro Ribeiro: sete notas a dez anos cada


1. Acrescentando mais um defeito àqueles que já me conhecem e aos que cuidadosamente oculto, direi que não pertenço ao número dos que, se elaboram uma hipótese, logo a abandonam no caso de de lhe não encontrarem documento de prova. Se ela é lógica ou tal me parece, aí persisto, convencido de que algum dia a pesquisa descobrirá o que falta. Ou, se do futuro se trata, já que vou muito por Vieira e sua História, fico seguro de que os tempos, realizando-se, me virão confirmar. Acedo naturalmente a que tratem esta confiança como um defeito novo.

2. Nestes termos, e já que o nosso Amigo anda muito, ao que penso, nas águas do Estagirita, fantasio que a polémica entre Platão e Aristóteles é, na Grécia, o primeiro embate entre a Europa e o que hoje se usa chamar de Terceiro Mundo. Doutro modo: entre uma freima de transcendentalização do homem e a segurança de que o importante é realizá-lo pleno na plenitude de sua vida sensível, palavra que prefiro a real; entre o triângulo ideal e aquele que se risca na areia, se entrevê nas nuvens, ou se forja no ferro; para termos um pouco de arqueologia: entre a cerâmica do despojamento geométrico e aquela dos cretenses envolvida de vagas, algas e polvos e espumas; entre o indo-europeu (e aqui quase apetece dizer indo-germânico) alto, louro e dolicocéfalo e o mediterrâneo atarracado, trigueiro – etimologicamente «fenício» –, o braquicéfalo mesmo.


Templo de Apolo (Delfos).


3. De Grécia entenderam pouco os Romanos, mas deles próprios muito; apostaram decididamente no Mediterrâneo, com um simbólico muro de Adriano a defender Inglaterra e suas minas, muro continuado para leste pelo Reno e pelo Danúbio, e, quanto ao Sul, lhes foi fronteira o Saara; embora respeitassem tanto quanto possível, o Mare Nostrum vertebraram-no, por amor do Império, em direito, burocracia e legiões, e o culcaram de estradas, que tinham o enorme defeito de não vencerem o mar; foi-lhes marco final aquele altar erguido na Finisterra de Galiza ao Deus Sol atufando-se em sangue num horizonte que temiam. Se na Grécia venceu, e muito, o velho Platão e teve até a primeira vitória quando os cristãos procuraram, para além do milagre, uma filosofia, foram os romanos, mais que tudo, aristotélicos, mesmo sem filosofarem, coitados, que os não tinham os deuses fadado para tal.

4. A grande invenção de Portugal, no tempo em que existiu pleno, e espero que a tal volte de agora por diante, foi a de pagar um bocado da estrada romana e o transformar em caravela, barco de aventura e de pesquisa, logo substituído pela nau, para o domínio e o lucro, com seus bordos de artilharia e seus porões de pimenta. A muita costa, para seu bem e seu mal, levaram esses navios a Roma de que eram herdeiros. Levaram, porém, e igualmente, uma Grécia alargada, já que estava no pensamento de Albuquerque, pela invenção de uma raça cósmica em seu misto império, fazer do mundo inteiro uma cidade-estado, de algum modo englobando as Leis e a República de Platão e as preocupações constitucionais de Aristóteles. Como também em naus andou Camões, platónico e aristotélico; ao que creio mais platónico do que aristotélico quando se encontrava doente, pobre ou triste e desesperava de sua humanidade; e da dos outros, com sobradas razões.

5. Nunca houve, porém, filosofia portuguesa que fizesse que insisto português, e principalmente o seu comportamento de operário, asceta e sábio. O resto tem sido a interminável polémica que divide em bandos agressivos e de quase igual incompreensão os intelectuais portugueses, fazendo que uns desprezem geometria e lógica, que vão outros ao ataque dos que, por messiânicos, continuamente tentam o que é só para os outros, impossível. Renovam-se, claro está, as formas exteriores, persistem os motivos de dentro, os que já vêm dos gregos, com uns acrescentos, ou umas heranças, do que andou nos Mistérios, transparece na Carta VII ou na teoria da tragédia; estão lá, Platão e Aristóteles, nos nautas que partem e no velho que brada; nos entusiasmos pelo Renascimento alemão e italiano e nas queixas de que andam pardaus a correr por Cabeceiras de Basto; nos adeptos de Trento e no Sebastianismo de Vieira; no iluminismo dos estrangeirados e nos «impérios» do Espírito Santo, refugiados em Açores e Brasil, ou nas guerrilhas que expulsam o françês pedreiro-livre; no grupo da Seara Nova de Sérgio e de Proença e no que desperta no Porto com Leonardo Coimbra e do Porto se abala com este Álvaro Ribeiro, setentão hoje. Mas de síntese nada. Será ela impossível de pensar e a teremos apenas – e ainda bem – de a ver como vivência?






6. É certo que há José Marinho e seu «insubstancial substante», o que avança sobre Spinoza, mas, sendo já bastante, não basta ainda e aqui nos lembraremos do Poeta – «baste a quem basta o que lhe basta o bastante de lhe bastar», e que, no largo horizonte de Brasília, vai Eudoro de Sousa dando suas vigorosas e subtis marteladas de alto artista na noção de complementaridade, ao mesmo tempo teleológica e física. A verdade, no entanto, é que complementar chama a ideia de algum vazio que se trata de encher, quando afinal já existe o pleno e é ele o seu complementar, e que insubstancial substante é já a divisão em categorias do que deve ser uno e é ao mesmo tempo, indestrinçavelmente, as duas coisas. Não vejo, em pensamento que se explicite, saída para o beco em que se meteu a actividade lógica quando, como era de sua obrigação, foi ao fim de si própria. Mas sairá mesmo, porque acredito muito naquilo que não pode suceder.

7. Devo, por outro lado, dizer que me interessa pouquísimo que o português – o que fala e escreve Português, seja de Amarante ou Salvador, de Dili ou de Luanda – elabore e publique filosofia, concorrendo para que haja no mundo livros demais, homens de menos. A poesia de Camões, a palavra de Vieira, os mitos, místicos ou não, de um Fernando Pessoa prende-me apenas na medida em que revelam gente completa que não podou em fórmulas, foi o que foi em cada momento em que o foi, não se pôs a caçar o céu, com risco de apanhar apenas nuvem, quando se irmanava com a terra, nem se agarrou ao solo, só para não escandalizar os outros, correndo aí o perigo de se cobrir de poeira, quando o que lhe apetecia era namorar mesmo ideia pura (sem fome, se possível). Acabemos com a polémica por a ignorarmos santamente, sendo ora platónicos ora aristotélicos, insubstanciais substantes e complementares de nós próprios, indefiníveis e vincados, inexistentes e de um bruto peso, sem um escaninho em que nos metam e neles todos cabendo, tão amplos que os enchamos e tão exíguos que haja sempre lugar à multidão. Dificuldade esta, a de botar português em quadrícula, que o autor modestamente oferece aos pedagogos, aos notários e arquivos de identificação. Mas dificuldade sem a qual jamais seremos ponte alguma entre este mundo branco agonizante – mas renovável – e o de mestiços, amarelos e pretos que vai surgindo para a liberdade e para a vida (in «As Portas do Conhecimento», Dispersos e Escolhidos de Álvaro Ribeiro, IAC, 1987, pp. 367-369).



terça-feira, 6 de agosto de 2013

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Fédon ou da imortalidade da alma (ii)

Escrito por Platão











«Os contrários podem ser claros porque são distantes, mas por isso mesmo diremos que não há mérito em reconhecer facilmente as relações de contrariedade. Mérito há, sim, em inteligir a mediação imperceptível e irrepresentável, em negar o vago, em desenhar o que outros não podem ou não querem ver, até ao momento da demonstração metafísica, científica ou técnica. A audácia de pensar por tríades caracteriza efectivamente a arte de filosofar.

É sabido que a doutrina aristotélica do movimento mediador entre contrários, doutrina oposta à da infinidade da rectilínea deslocação, resultou de um aprofundamento da lei de enantodromia, formulada por Heraclito. Assim em lógica, aquela relação, a que alguns regressivamente chamam juízo, terá de apelar para uma correlação que lhe garanta a característica racional. Duas relações formam uma correlação que a consciência há-de apreender na clareza dos quatro elementos, correlação que em matemática se designa por proporção.

A analogia, no significado de movimento intelectual para cima, para o logos, é correlação que pressupõe uma relação inferior e uma relação superior. Situar a interrogação ante a analogia, em vez de a situar perante a alternativa, representa já um grande progresso da razão e o modelo de ensino para os adolescentes. O pensamento científico, o movimento do pensamento científico, em grande parte depende das analogias.

Convém, todavia, exigir sempre que os dois termos de cada relação dual estejam ordenados de harmonia com a realidade, isto é, não confundir os contrários com os opostos, os opostos com os polares, etc. Ninguém dirá, por exemplo, que o Homem é o contrário da Mulher. A analogia tornar-se-á fecunda exactamente pela comparação de umas relações com outras relações, isto é, de comparação dos contrários com os opostos, dos opostos com os polares, etc., segundo uma doutrina de correspondências.

A sombra do positivo é sinal da luz do normativo. Os valores incitam o pensamento a reflectir, quer dizer, a comparar o real com o ideal. Toda a realidade está sempre a ser valorada pelo homem, segundo o seu grau de cultura, e difícil é separar os juízos de existência dos juízos de valor».

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).


«Observou Pitágoras, estudando a harmonia, que obedecidas certas relações, ela se verificava. Essas relações constituem os chamados "número de ouro", de um papel importante em todas as artes e em seus períodos superiores.

Dessa forma, é a harmonia o ideal máximo dos pitagóricos, a qual consiste em ajustar os elementos diversos da natureza».

Mário Ferreira dos Santos («Tratado de Simbólica»).







EQUÉCRATES - E também nós, que sem lá termos estado, o escutamos de ti. Mas que foi o que se disse de seguida?

FÉDON - Se bem me lembro, depois de se ter admitido e acordado também sobre a existência real das ideias, e que as demais coisas recebem a sua denominação por delas participarem, Sócrates perguntou: - Se tal é a tua doutrina, ao afirmares que Símias é maior que Sócrates e mais pequeno que Fédon, não dizes existir em Símias ao mesmo tempo a grandeza e a pequenez?

- Sim.

- Mas então concordas com certeza - prosseguiu Sócrates - que a afirmação Símias é maior do que Sócrates, não corresponde à verdade, literalmente? Porque Símias não é maior por natureza do que Sócrates, mas sim pela grandeza que nele se encontra; nem maior do que Sócrates, por Sócrates ser Sócrates, mas pela pequenez que Sócrates possui, relativamente à grandeza daquele.

- É verdade.

- Tão pouco é Símias excedido por Fédon, pelo facto de Fédon ser Fédon, mas porque Fédon possui grandeza em relação à pequenez de Símias.

- Assim é.

- Assim sendo, Símias estando no meio de ambos, recebe tanto o qualificativo de pequeno, enquanto a sua pequenez é superada pela altura de um, como de grande, enquanto a sua grandeza excede a pequenez do outro.

Sorrindo, Sócrates comentou:

- Pareço estar a falar como quem redige um contrato. Mas na verdade, a coisa é tal como eu digo.

Símias concordou.

 - Eu falo assim, porque desejo que partilhes da minha opinião. Com efeito, é evidente que não apenas a grandeza em si consente ser em simultâneo grande e pequena; também a grandeza que há em nós jamais acolherá a pequenez, ou deixa de existir na presença dela, mas não a receberá, nem admitirá, para se tornar algo de diferente do que antes era. Um exemplo: eu que uma vez recebi a pequenez, não posso ser grande, continuando a ser o que sou. Pelo contrário, a grandeza, sendo grande, não consente ser pequena. De igual modo, a pequenez existente entre nós, jamais admite ser grande, nem vir a sê-lo; nem algum outro contrário, continuando a ser o que era, admite ser ou vir a ser ao mesmo tempo, o seu contrário; ou se afasta ou perece nesse processo.




- Isso - afirmou Cebes - parece-me bastante evidente.

- Um dos presentes, objectou, então, quem foi já não me recordo:

- Pelos deuses! Não reconhecemos na nossa discussão anterior, exactamente o contrário do que se diz agora, que é do mais pequeno que nasce o maior e do maior o mais pequeno, e que os contrários são sempre gerados a partir dos seus contrários? Mas agora, parece-me que estamos a afirmar que tal jamais pode acontecer.

Sócrates, inclinou a cabeça e escutou:

- Falaste como um homem - disse - mas não atentaste à diferença entre o que se acabou de dizer e o que se disse antes. Dizíamos então que de uma coisa contrária nascia outra contrária; e agora que o contrário em si mesmo não pode tornar-se no seu contrário, considerado tanto em nós, como na natureza. Antes, meu amigo, falámos das coisas que contém contrários, designando-as com os nomes daqueles; agora referimo-nos aos contrários em si, por cuja presença as coisas designadas recebem o seu nome. E destes últimos afirmámos que jamais podem ser gerados uns dos outros.

Ao mesmo tempo fixou o olhar em Cebes e perguntou:

Acaso, Cebes, te perturbaram também as objecções do nosso amigo?

- Não - disse Cebes - não desta vez. O que não quer dizer que não haja muitos objectos que me perturbem.

- Concordamos portanto - tornou Sócrates - que o contrário jamais pode ser o contrário de si mesmo.

- Concordamos inteiramente - respondeu Cebes.

- Prossigamos pois, disse Sócrates: vê se concordas comigo também neste ponto. Há alguma coisa que designamos com os nomes de quente e de frio?

- Sim.

- Acaso, é o mesmo que denominas de neve e de fogo?





- Não, por Zeus!

- Mas então, o quente é algo distinto do fogo, e o frio é algo distinto da neve?

- É verdade.

- Creio então ser tua opinião, que jamais a neve como tal, após admitir o quente, como dizíamos anteriormente, jamais poderá continuar a ser o que era, ou seja, neve, e ao mesmo tempo, quente; mas ao aproximar-se o calor, ou lhe cederá o seu lugar, ou deixará de existir.

- É evidente.

- Por sua vez, também o fogo, ao aproximar-se-lhe o frio, se retirará ou deixará de existir, mas jamais após admitir o frio, poderá continuar a ser o que era, ou seja fogo, e ao mesmo tempo, frio.

- Isso é verdade - responde Cebes.

- É possível então - continuou - que em alguns exemplos análogos, suceda não só que a ideia em si se aproprie do seu próprio nome para sempre, mas que  haja ainda outra coisa que, diferente dela, possua todavia a forma dela, enquanto existir. Mas vejamos ainda exemplos, onde, quem sabe, se possa clarificar o que digo. Deve o ímpar ter sempre este nome ímpar, com que agora o designamos, ou não?

- Com certeza.

- E pergunto isto: acaso é esse nome exclusivo do ímpar, ou haverá também algum outro entre os seres, que não sendo o ímpar, deve ser contudo sempre designado com este nome, por a sua natureza ser tal, que nunca se aparta do ímpar? Refiro-me ao que sucede com a tríade, um exemplo entre outros. Examinando este número não te parece que o seu nome próprio deva sempre servir para o designar e também o de ímpar, ainda que ímpar não seja o mesmo que tríade? Desta mesma natureza do três é o 5 e a metade dos números que, ainda que não sejam o mesmo que ímpar, é sempre cada um deles ímpar. Por outro lado, 2, 4 e a totalidade da série, embora não sejam sinóminos de par, são todavia sempre pares. Concordas ou não?

- Sem dúvida, respondeu ele.



- Agora - prosseguiu Sócrates - atenta ao que tenho intenção de te mostrar. É o seguinte: parece que não só os contrários em si não se aceitam; mas há também tudo aquilo que, sem ser contrário, alberga sempre estes contrários, e que tampouco admitem a ideia contrária à que reside nelas; mas quando esta sobrevem, ou perecem ou se retiram. Ou não devemos nós dizer do 3, que perecerá ou sofrerá qualquer outra vicissitude, continuando a ser 3, preferentemente a tornar-se par.

- É indubitável - respondeu Cebes.

- E não é menos certo - continuou - que 2 não é o contrário de 3.

- Não, com efeito.

- Portanto, não só as ideias contrárias, não suportam a aproximação mútua, mas também há algumas outras coisas que não se sujeitam a tal aproximação.

- É muito certo o que dizes - conveio Cebes.

- Queres então - prosseguiu Sócrates - que na medida em que sejamos capazes, determinemos estes últimos contrários?

- Acaso podem ser eles, Cebes - disse ele - que forçam aquilo de que tomam posse, não só a albergar a ideia que lhe é própria, mas também a do seu contrário?

- O que queres dizer?

- O mesmo que há instantes. Sabes certamente, que as coisas em que a ideia do 3 se encontra, não podem apenas ser 3, mas também são ímpar.

- Por certo.

- Por conseguinte, dizemos, que essa realidade do 3, jamais pode admitir a ideia contrária à ideia que nela opera.

- Pois não.

- Mas o resultado não foi produzido pela ideia de ímpar?

- Sim.



Pitágoras de Samos (A Escola de Atenas).




- E o contrário desta ideia é o par?

- É óbvio.

- O 3 por conseguinte, jamais participará da ideia de par.

- Claro que não.

- Então a tríade não participa do par.

- Não participa.

- Portanto, a tríade não é o par.

- É claro.

- Agora proponho definir que espécie de coisas, não sendo em si contrárias, não aceitam todavia essa qualidade contrária, tal como a tríade que não sendo o contrário do par, não o aceita, pois leva em si sempre o contrário deste, do mesmo modo que a díade contém o contrário do ímpar, o fogo o contrário de frio, e assim muitos outros exemplos. Vê se aceitas esta definição: não só o contrário não aceita o seu contrário, mas também aquilo que sofre em si algo contrário a isso em que a ideia se apresenta, tão pouco admitirá a ideia contrária à que nele está implicada. Recordo-te outra vez, pois não é mau ouvi-lo repetidamente. O número 5 não aceitará a qualidade do par, nem o seu dobro, o 10, a do ímpar. Este, contrário ao outro, não acolherá todavia a qualidade do ímpar. Nem tampouco o um e meio e as demais fracções análogas, admitirão a do inteiro, o que também sucede com o terço e as demais fracções desta natureza - se é que me segues e estás de acordo comigo.

- Estou em acordo total e sigo-te - afirmou.

- De novo voltando ao princípio - continuou Sócrates - responde-me, sem empregar para responder, as mesmas palavras da minha pergunta, imitando-me somente. Falo-te deste modo, porque, à margem daquela resposta segura que primeiramente dei, à luz do que falámos agora, vejo uma outra segurança. Se pois me perguntares: Que é que existe no corpo que o torna quente?, não te darei aquela resposta segura e ignorante: é o calor, mas uma mais inteligente, de acordo com o que dissemos agora: é o fogo. E se de novo me perguntares: Que é que existe no corpo que faz com que adoeça?, não te responderei que é a doença, mas a febre; ou ainda: Que existe no número para o tornar ímpar?, não te diria que é a imparidade, mas: a unidade, e assim por diante. De modo que, vê se já compreendes suficientemente o que quero dizer.

- Muito suficientemente - respondeu Cebes.

- Responde-me então - prosseguiu Sócrates -. O que é que, existindo num corpo é a causa de ele estar vivo?

- A alma.

- E acaso sucede sempre assim?

- Sim disse ele.

- Então, entrando a alma num corpo, leva sempre consigo a vida?



Morte de Sócrates



- Sim, leva - respondeu.

- E existe algo oposto à vida, ou não?

- Sim, existe.

- O que é?

- A morte.

- Portanto, a alma jamais aceitará o contrário do que lhe está sempre inerente, segundo se reconheceu no que antes falámos.

- É com toda a razão evidente - respondeu Cebes.

- E então? Ao que não admite a ideia de par, como o chamávamos há momentos?

- Chamávamos-lhe ímpar - respondeu.

- E ao que não recebe em si o justo, nem a música?

- Injusto, um e Inculto, o outro - respondeu.

- Bom. E ao que não acolhe em si a morte, como o denominamos?

- Imortal - respondeu Cebes.

- E a alma não acolhe em si a morte?

- Não.

- Portanto a alma é imortal.

- Sim, é imortal.



Eros e Psique




- Seja - disse ele -. Podemos assim dizer que isso fica demonstrado?

- Seja - disse ele e de modo satisfatório Sócrates.

- E então Cebes? Se o ímpar lhe fosse necessário ser imperecível, poderia não ser imperecível o número 3?

- Sem dúvida.

- E se o não quente fosse necessariamente imperecível, quando da neve aproximassem o calor, não escaparia, ficando sã e salva e sem se fundir? De certeza não deixaria de existir, nem aceitaria o calor.

- Isso é bem verdade - respondeu.

- Do mesmo modo, penso que se o não-frio fosse imperecível, sempre que algo frio se aproximasse do fogo, jamais se apagaria nem aqueceria, mas continuaria não-quente.

- É necessário - disse.

- Acaso então - prosseguiu Sócrates - não é forçoso também assim a respeito do que é imortal? Sendo este também imperecível, é impossível que quando a morte se abate sobre a alma, ela pereça; porque, e é uma consequência do que antes dissemos, a alma, não aceitará a morte nem pode estar morta, assim como o 3 não será, dizíamos, par, nem tampouco o ímpar, nem o fogo se fará frio, nem o calor que existe no fogo. Porém que impede - poderia alguém objectar - que o ímpar não se torne par, pela aproximação do par, como reconhecemos, mas que ao perecer surja em seu lugar o par? A quem tal objectasse, não poderíamos ripostar que não perece, visto o não-par não ser imperecível. Se porém tivéssemos reconhecido isso, facilmente responderíamos que, perante a proximidade do par, o ímpar e o 3 para longe se afastam. E do mesmo modo argumentaríamos a respeito do fogo e do calor e dos demais contrários. Ou não?

- Com toda a certeza.

- Logo, se acerca do imortal, reconhecemos que é  imperecível. a alma será, além de imperecível, imortal, caso contrário seriam necessários outros argumentos.

- Mas não há necessidade de outra, pelo menos quanto a este ponto - respondeu Cebes - já que dificilmente alguma outra coisa não admitiria a destruição, se o que é imortal e eterno, a acolhesse.

- Pelo menos, a divindade - disse Sócrates - e a própria ideia da vida, bem como tudo o que seja imortal, ficaria reconhecido por todos, que jamais perecem.

- Todos, por Zeus! - afirmou Cebes -. Pelos homens e ainda com mais forte razão, segundo creio, pelos deuses.



Zeus



- E sendo o imortal imperecível, a alma, se é que é efectivamente imortal, como poderá não ser imperecível?

- É de todo necessário.

- Quando, portanto, a morte sobrevem ao homem, segundo parece, é o que há de mortal nele que morre, mas a parte imortal subtrai-se à morte e afasta-se a salvo e indestrutível, retirando-se da morte.

- É evidente.

- Portanto, Cebes - concluiu - a nossa alma é imortal e imperecível; e de verdade subsistirão as nossas almas algures noutro mundo... (in ob. cit., pp. 139-150).