segunda-feira, 27 de junho de 2011

O Conde de Cagliostro (ii)

Escrito por Camilo Castelo Branco





Conde de Cagliostro



Admitido assim aos mistérios da seita, não deixou, em todo o tempo que residiu em Londres, de frequentar aquelas diversas lojas; porém, antes de sair dali, comprou a um livreiro alguns manuscritos que diziam ou pareciam ser de um tal Jorge Cofton, por ele inteiramente desconhecido. Viu que tratavam da maçonaria egipciana, mas com um sistema que tinha muito de mágico e supersticioso.

Propôs-se então o nosso Cagliostro criar, debaixo destes traços, um novo rito de maçonaria, tirando-lhe, porém, (disse ele), quanto tinha de mau, que vinha a ser a superstição e a mágica. Com efeito, levou a bom termo o seu desígnio, e o rito por ele fundado e propagado em tantas partes do mundo grandemente contribuiu para a sua celebridade. Disse-se noutra parte qual o impulso desta sua determinação, que foi abrir uma fonte copiosa de contribuições, já em dinheiro, já em jóias e roupas. Quem já nada cria em matéria de fé, que temor podia ter no meio da multiplicidade das seitas maçónicas? Pensou unicamente em realizar, à sombra desta novidade, mais estrondosas extorsões.

Para que se possa compreender tudo o que no decurso de tantos anos e de tantos lugares obrou nesta matéria, é necessário expor o plano do sistema, ou rito egipciano, por ele instituído, cotejando-o fielmente com o livro que ele compôs, e que apresentou como um código completo. Indo-se buscar a sua casa, solenemente o reconheceu e confessou que por ele sempre se tinha regido no exercício da maçonaria; que este mesmo livro lhe serviu de norma às iniciações que fizera em diversas lojas, e que vários exemplares deixara nas Lojas-Madres que fundou em diferentes cidades, como veremos.

Os leitores distinguirão bem, sem a ajuda das nossas reflexões, qual e quanta seja a malícia do seu autor, e a fraude que esconde debaixo das mentirosas divisas de piedade, de caridade e de subordinação às leis. Estes são os caracteres da sua impiedade infalivelmente superior e do mais detestável de todos os sistemas maçónicos. O livro, escrito em francês, tem o ressaibo de seu idioma. Cagliostro seria capaz de tanto? Certamente que não. É certo, pelo que consta, que ele inventou e forneceu matéria, porém, para escrever, serviu-se de pessoa de talento, não menos cega que ele em coisas de fé, animada dos encantos de sua vaidade, de seus discursos e operações.

Prometeu ensinar a seus sequazes o sistema e conduzi-los à perfeição por meio da regeneração física e moral, e assim fazer-lhes encontrar a matéria-prima ou a pedra filosofal, e a inocência, que consolidam no homem as forças da mais sã mocidade, tornando-o imortal; mais uma vez de posse disto, o homem adquire um Pentágono que o restitui ao estado de inocência primitiva, perdido pelo pecado original.

Finge Cagliostro que a maçonaria egipciana foi iniciada por Enoch e Elias, que a propagaram por diversas partes do mundo, e que, devido ao giro dos anos, se tinha degradado muito da sua primitiva pureza e esplendor. Aquela já tinha sido reduzida pelos homens a uma simples murmuração, e a outra pelas mulheres a uma total destruição, por não terem ordinariamente lugar na comum maçonaria. Enfim, o zelo do Grão-Copta (nome próprio dos sumos sacerdotes egipcianos) propunha restituir ao seu primitivo lustre a maçonaria, num e noutro sexo.

Expõem depois os estatutos os requisitos que devem exigir-se aos que querem ser admitidos aos três distintos graus, funções e catecismo dos aprendizes, companheiros e mestres, e o número de que comporá cada classe; os sinais distintivos com que se devem reconhecer entre si; os oficiais a quem cabe presidir e convocar a sociedade; o tempo de suas respectivas reuniões; a criação de um tribunal encarregado de julgar as questões que possam ocorrer entre lojas e as faltas de seus respectivos membros; aquele estreito vínculo de união com que são obrigados a proteger-se os irmãos em particular, e todas as lojas em geral, e as muitas cerimónias que se devem observar rigorosamente, assim na admissão dos indivíduos a cada um dos três graus indicados, como nas celebrações das lojas.




Em tudo isto há seu tanto ou quanto do sacrilégio, da profanação, da superstição e da idolatria que praticam as outras seitas da maçonaria ordinária; invocações do santo nome de Deus; prostrações e adorações à venerável cabeça da loja; sopros, aspirações, incensos, perfumes, exorcismos aos candidatos e aos vestidos que hão-se envergar, emblemas da sacrossanta Trindade, da Lua, do Sol, da plaina, do esquadro, e outras mil semelhantes iniquidades, bem conhecidas de todos. Na maçonaria de que tratamos, há alguma coisa ainda que, pela novidade, apresenta a mais abominável extravagância.

Já falámos do Grão-Copta, fundador ou restaurador da maçonaria egipciana, e diremos, a propósito, que Cagliostro não recuou em insinuar que, debaixo deste nome, estava a sua pessoa, e, com efeito, todos assim o reconheciam. Neste sistema, o Grão-Copta é igual ao Eterno Deus: a ele se rendem os actos mais solenes de adoração; a ele se atribui a autoridade de comandar os anjos; ele se invoca em todas as ocorrências; tudo se obra em virtude do seu poder, que se assegura ser-lhe singularmente comunicado por Deus. Porém, ainda há mais: em diversas cerimónias que se realizam nesta maçonaria, está prescrita a reza do Veni Creator Spiritus, o Te Deum e alguns Salmos de David. Chega a tal extremo a temeridade, que no salmo Memento Domini David, et omnis mansuetudinis ejus, o nome de David é substituído pelo do Grão-Copta!

Nenhuma religião é excluída da sociedade egípcia: o hebreu, o calvinista, o luterano, o católico, podem indiferentemente ser admitidos, porque acreditam na existência de Deus e na imortalidade da alma, e acham-se já alistados na maçonaria ordinária. Os homens que chegam ao grau de mestres tomam o nome dos antigos profetas, e as mulheres o das sibilas. O juramento que se exige aos primeiros é o seguinte: Eu prometo, obrigo-me e juro de não revelar jamais os segredos que me forem comunicados neste Templo, e de obedecer cegamente aos meus superiores. O das mulheres é concebido assim: Eu, juro em presença do grande Eterno Deus, de minha mestra, e de todas as pessoas que me ouvem, de não revelar jamais, nem fazer entender, escrever nem fazer escrever, tudo quanto se passa aqui à minha vista, condenando-me a mim mesma, no caso de imprudência, a ser castigada segundo as leis do grande fundador e de todos os meus superiores: prometo igualmente a mais exacta observância dos outros seis mandamentos que me impuseram: o amor de Deus; o respeito a meu soberano; a veneração pela religião e pelas leis; o amor a meus semelhantes; uma reverência sem reserva à nossa ordem, e a mais cega submissão aos regulamentos e leis do nosso rito, que me sejam comunicados por minha mestra. Ao passar ao terceiro grau de mestre ou mestra renova-se o juramento, porém o livro não refere a forma.

É sabido que na maçonaria ordinária há o costume de dar ao iniciando dois pares de luvas, um para si, e outro para que o dê à senhora que mais estima. O Grão-Copta, adoptando semelhante costume, junta a particularidade de se cortarem às mulheres, no acto da entrada, uns poucos de cabelos, que lhes restituem acabada a função, os dêem ao homem que mais estimam. Particulares e sacrílegas são igualmente as formas com que se admitem candidatos à posse de seus respectivos graus. Referiremos somente o que respeita à mulher aceite ao grau de aprendiza, e outra correspondente ao homem que sobe ao grau de companheiro. Na primeira, a mestra dá um sopro na cara da candidata, prolongando-o desde a fronte até à barba, e pronunciando estas palavras: Eu vos dou este sopro para fazer brotar e penetrar em vosso coração a verdade que nós possuímos; eu vo-lo dou para fortificar em vós a parte espiritual; eu vo-lo dou para confirmar-vos na fé de vossos irmãos e irmãs, segundo as obrigações que tendes contraído. Nós vos criamos filha legítima da verdadeira adopção egípcia e da loja, etc.; nós queremos que vós sejais reconhecida nesta qualidade por todos os irmãos e irmãs do rito egipciano, e que vós gozeis das mesmas prerrogativas; nós vos damos o poder para ser desde agora em diante e para sempre mulher franco-maçon e livre. Quanto aos homens que sobem ao grau de companheiro, o mestre fala-lhes assim: Pelo poder que tenho do Grão-Copta, fundador da nossa Ordem, e pela graça de Deus, eu vos confiro o grau de companheiro e vos constituo custódio de novos conhecimentos, os quais vos participaremos em os nomes sagrados de Xalion, Melion e Talhagramaton.






No caderno da seita dos iluminados, impresso em Paris no ano de 1789, refere-se que estas últimas palavras foram sugeridas por Cagliostro, como santas e arábicas, de um certo jogador de peloticas, que dizia estar assistido de um espírito, que era alma de um hebreu cabalista, o qual por arte mágica tinha morto o padre antes da vinda de Jesus Cristo.

Os maçónicos ordinários têm por protector S. João Baptista, e por isso o homenageiam, ao contrário do rito de Cagliostro, onde é S. João Evangelista (neste dia foi Bálsamo preso em Roma) o festejado, dizendo ele que em virtude da grande afinidade que há entre o Apocalipse e as diversas passagens do mesmo rito. Delas convém aqui falar, para plena inteligência da impiedade do sistema e das operações em que continuamente se exercitou, como veremos.

Na passagem dos homens ao grau de mestres prescreve-se a seguinte execranda função: toma-se um menino ou menina que esteja no estado de inocência (a que se dá, respectivamente, o nome de pupilo ou pomba), a qual recebe, comunicado pelo venerável, o poder de que, antes da queda do homem, estava investida, e em especial o de mandar os sete espíritos puros que dizem existentes no trono divino e que regem os sete planetas, assim nomeados no sistema ou livro de que vimos tratando: Anael, Rafael, Gabriel, Uriel, Zobiaquel, Anaquiel.

Conduzida a pupila à presença do venerável, esta dirige, juntamente com os membros da loja, orações a Deus para que se digne permitir-lhe o exercício do poder que lhe foi comunicado pelo Grão-Copta, a fim de que possa obrar segundo os mandamentos do venerável e servir de mediadora entre ele e os espíritos que se chamam intermediadores. Depois, vestida com um hábito talar branco, adornada de faixa de turquesa e cordão encarnado, e aspirada com um sopro, encerram-na num Tabernáculo, que é um lugar apartado do Templo, armado de branco, tendo por fora uma porta de entrada, pela qual se há-de ouvir a voz e, no interior, uma pequena mesa onde ardem três velas. Renova o venerável as orações, e começa a exercer aquele poder que diz ter recebido do Grão-Copta, obrigando os sete anjos a comparecer perante a pomba. Quando esta anuncia a sua presença, aquele ordena-lhe, em virtude do poder que Deus conferiu ao Grão-Copta e o Grão-Copta lhe comunicou a ele, que pergunte ao anjo Anael se o candidato tem os méritos e os requisitos necessários para se elevar ao grau de mestre, e, sendo a resposta afirmativa, passa a outras cerimónias e funções necessárias para a elevação do iniciando.

A mesma cerimónia se prescreve para a elevação das mulheres ao magistério, mas com alguma diferença; à pomba, colocada, como se disse, no Tabernáculo, é-lhe ordenado que faça comparecer um só dos sete anjos e que lhe pergunte se será permitido levantar o véu com que está coberta a inicianda. Seguem-se outras supersticiosas cerimónias, e depois o venerável diz à pomba que mande comparecer os outros seis anjos, aos quais se dirigirá nos seguintes termos: Pelo poder que o Grão-Copta conferiu a minha mestra, e pelo que eu dela obtive, ordeno-vos, anjos primitivos, que consagreis estes hábitos, fazendo-os passar por vossas mãos. São estes hábitos os vestidos e insígnias da Ordem, e juntamente uma coroa de rosas secas. Quando a pomba verifica que os anjos realizaram a consagração, ordena-se-lhe que faça comparecer Moisés, a fim de que também abençoe os ditos vestidos, e tenha nas mãos a coroa de rosas durante o resto da cerimónia. Depois lançam-se pela janela do Tabernáculo os vestidos, as insígnias, e, entre elas, as luvas que levam escrito no meio: eu sou homem; e tudo entrega à candidata, Seguem-se outras perguntas à pomba, especialmente para dizer se sim ou não Moisés teve sempre na mão a coroa, e, respondendo que sim, põe-se-lhe na cabeça. Finalmente e após outras práticas igualmente sacrílegas, faz-se uma outra pergunta à pomba: se Moisés e aos sete anjos foi grata a promoção. Invocada a vinda do Grão-Copta para que também a abençoe e aprove, fecha-se a loja.



Moisés, o "salvo das águas"



Não será importuna uma breve digressão, que possa servir de desengano àqueles que porventura tenham tido a desgraça de cair nesta cegueira. O Grão-Copta, o restaurador da maçonaria egipciana, o conde de Cagliostro, mostra em diversas partes do seu sistema ter em grande conta o patriarca Moisés. No entanto, o próprio Cagliostro declarou espontaneamente terá alimentado sempre em seu ânimo uma insuperável antipatia contra o mesmo Moisés. Em sua opinião, Moisés foi um ladrão, por ter tirado aos egipcianos seus vasos; e, em face dos mais claros argumentos com que o refutaram, procurando convencê-lo do seu erro, pérfida e obstinadamente sustentou seu modo de ver, o que faz supor ter visos de verdade o que foi dito por sua mulher - que a antipatia de seu marido por Moisés procedia de origem mui diversa, qual era a de ele não comparecer a seus trabalhos maçónicos. No entanto, amara sempre os hebreus como a si mesmo, e costumava dizer que é a gente mais bela do mundo.

Mas voltemos ao nosso intento.

O fim da sua maçonaria, como por mais de uma vez temos dito, consiste na perfeição do homem, meio pelo qual promete conduzir os sequazes à regeneração moral e física, depois que tenham subido ao grau de mestres. Para obter uma e outra, prescreve duas distintas quarentenas, que vêm a ser: um retiro de quarenta dias pela primeira vez, e uma cura corporal de outro tanto tempo, pela segunda. As práticas impostas para uma e para a outra formam um complexo que é uma demonstração triunfante da iniquidade do sistema. A descrição que vamos fazer justificará a nossa proposição.

O que pretende obter a regeneração moral, que significa a inocência primitiva, deve subir a uma montanha altíssima, à qual dará o nome de Sinai, e no seu cume construirá um pavilhão, dividido em três planos ou estâncias, que se denominará Sião. A câmara superior medirá dezoito pés quadrados, tendo quatro janelas ovais por cada lado, cada uma só porta de entrada. A segunda câmara, situada no meio, será perfeitamente redonda, sem janelas, e capaz de acomodar treze pequenas camas; uma só lâmpada, colocada no meio, alumiará, e não haverá ali móvel algum que não seja necessário. Esta segunda câmara chamar-se-á Arazat - nome da montanha sobre a qual se assentou a arca, em sinal de repouso que está reservado só aos maçons eleitos de Deus. - Finalmente, a terceira câmara terá capacidade conveniente para servir de refeitório e, ao redor, três gabinetes; em dois deles guardar-se-ão as provisões e tudo o mais que preciso for, e no terceiro os vestidos, as insígnias e os instrumentos maçónicos da arte, segundo Moisés.

Juntas as provisões e os instrumentos necessários, encerram-se treze mestres no pavilhão, sem mais poderem sair durante quarenta dias, que é quanto demoram os labores e trabalhos maçónicos, observando em cada dia a mesma distribuição de horas: seis serão empregadas na reflexão e repouso; três na oração e holocausto ao Eterno, que consiste em dedicar-se todo a si mesmo com a maior força do coração, tendo em vista a maior Glória de Deus; nove nas sagradas operações, tais como a preparação da carta virgem e a consagração dos instrumentos que devem fazer-se todos os dias; as últimas seis na conversação e restabelecimento das forças perdidas, tanto físicas como morais. Passado que seja o dia trigésimo terceiro destes exercícios, começarão os encerrados mestres a gozar do favor de comunicar visivelmente com os sete anjos primitivos, e conhecer o selo e a cifra de cada um destes entes imortais. Um e outro serão por eles mesmos provados na carta virgem, composta, ou da pele de um cordeirinho recém-nascido, purificado em pano de seda, ou da secundina de uma criatura do sexo masculino, nascido de uma hebreia, purificada igualmente, ou de papel ordinário, benzido pelo fundador.



Este favor durará até ao dia quarenta, no qual, concluídos os labores, começará cada um a gozar do fruto deste retiro, isto é, cada um recebe, de per si, o Pentágono, ou a carta virgem, sobre a qual os anjos primitivos imprimiram suas cifras e selos.

Fortificado com isto, e feito assim mestre e cabeça do exército, sem socorro de algum mortal, seu espírito encher-se-á de fogo divino, e seu corpo ficará puro como o do menino mais inocente; sua penetração não terá limites; seu poder será imenso; não aspirará a outra coisa mais que a um perfeito repouso para chegar à imortalidade e poder dizer de si: Ego sum qui sum.

Além do Pentágono sacro, terá outros sete diferentes, dos quais poderá dispor a favor de sete pessoas, homens ou mulheres, que sejam de sua maior estimação. Estes Pentágonos secundários só têm impresso o selo de um dos sete anjos; portanto, quem o possui não pode exercer império sobre outro que não seja este, e fá-lo-á não em nome de Deus, como possuidor do primeiro Pentágono, senão em nome do mestre de quem o recebeu, obrando por seu poder, do qual pelo outro ignora o princípio.

Vejamos agora o seguimento da regeneração, ou perfeição física, com a qual pode a pessoa chegar, ou à espiritualidade de 1557 anos, ou prolongar a vida sã e tranquila até que Deus o queira chamar a si. Quem aspira a tal perfeição, deve, cada cinquenta anos, retirar-se no plenilúnio de Maio, com um amigo ao campo, e ali, encerrado numa cela ou alcova, sofrer, durante quarenta dias, uma dieta rigorosa, com escassos alimentos, consistindo em sopas ligeiras, ervas tenras, refrigerantes, laxativos, e bebidas de água destilada ou da chuva de Maio. No décimo sétimo dia deste retiro, feita uma pequena sangria, tomará certas gotas brancas, que não explica de que sejam compostas, seis pela manhã e seis de tarde, acrescentando mais duas pelo dia adiante, até ao dia trinta e dois, em que procede a uma pequena sangria ao nascer do Sol; no dia seguinte mete-se na cama até concluir a quarentena, e ali sobe ao primeiro grau da matéria-prima, aquele mesmo que Deus criou para tornar o homem imortal e que este perdeu pelo pecado, não podendo reavê-lo senão pelo favor do Eterno ou pelos exercícios maçónicos. Tomado este grau, o que houver de ser renovado perde o conhecimento e a fala por três horas e, convulsionado, exsolve-se numa grande transpiração e evacuação; depois, tornando a si e mudando a cama, há-de ser confortado com uma substância composta de uma libra de carne sem gordura e várias ervas refrigerantes.

Se o confortivo o põe em bom estado, no dia seguinte dá-se-lhe o segundo grau de matéria-prima numa tigela de substância, cujos efeitos, ao contrário da primeira, lhe ocasionarão uma grande febre com delírio, caindo-lhe a pele, os cabelos e os dentes. No dia seguinte, trinta e cinco, se o doente tem forças, tomará banho, nem quente nem frio, que não pode exceder uma hora. No dia trinta e seis, num vaso de vinho velho e generoso, tomará o terceiro grau de matéria-prima, que o porá num sono doce e muito sossegado. É então que nasce outra vez a pele e começam a aparecer os dentes e o cabelo. Tornando a si, deve entrar num novo banho aromático, e lavar-se, no dia trinta e oito, num banho de água ordinária, na qual se deitará nitro. Tomado o banho, vestir-se-á e passará pela sala, tomando, no dia trinta e nove, algumas gotas do bálsamo do grão-mestre em duas colheres de vinho tinto.

No dia quarenta, finalmente, sairá de casa, já de todo renovado. Para complemento da história, não deixaremos de advertir que um e outro método estão prescritos, igualmente para as mulheres, e que, na parte correspondente à regeneração física se manda, a cada uma delas, retirar para a montanha ou para o campo com a única companhia de um amigo, o qual deve prestar-lhe todos os ofícios necessários, em particular aqueles que correspondem à crise da cura corporal.













É esta a trama do seu sistema ou maçonaria egipciana, que muito pela rama explanamos, a fim de corresponder à brevidade que prometemos. Da outra análise que sobre o dito sistema se tem feito, resulta, iniludivelmente, a sua impiedade, superstição e sacrilégio; porque, além de reunir em si tudo o que há de pior nas comuns maçonarias, tem ainda, a torná-lo mais repulsivo, essa indigna sedução tendente a inspirar aos homens o sistema físico e moral, investindo cara a cara, e sem rebuço, com os dogmas mais sólidos da religião (in ob. cit., pp. 44-52).


sábado, 25 de junho de 2011

O Conde de Cagliostro (i)

Escrito por Camilo Castelo Branco








«José Bálsamo, mais conhecido pelo título de conde de Cagliostro, veio também a Portugal, disfarçado sob o título de conde de Stephens. Este famoso aventureiro era um cavalheiro da indústria que se filiou na Maçonaria com a intenção de utilizar em seu proveito a Maçonaria de Adopção [Ramo da Maçonaria Moderna destinada às mulheres]. Para esse fim fundou em Paris, em 1782, uma Loja que tomou o nome de Loja-Mãe de Adopção da Alta Maçonaria Egípcia. Era presidida pela esposa de Cagliostro e ele próprio tomava nela o título de Grande Copta.

Cagliostro entrou em contacto com as melhores famílias de Lisboa; mas apesar disso não conseguiu escapar ao faro de Manique, que ordenou a sua expulsão. Seguiu então para Itália e, tendo sido detido em Roma, em 1790, morreu na prisão em 1795».


Manuel Borges Grainha («História da Franco-Maçonaria em Portugal»).



José Bálsamo, Conde Alexandre de Cagliostro, nasceu em Palermo a 8 de Junho de 1743. Consta haver tido por mestre um alquimista de nome Altotas, como ter
 ainda sido o restaurador da Maçonaria Egípcia. Foi, além disso, considerado um charlatão por se atribuir a virtude de comandar os anjos, quando não obrar em nome do Deus eterno. Seja como for, o ocultista italiano produziu funda impressão na corte de Luís XVI, logrando, inclusive, ter o seu nome estampado num dos mais notáveis romances de Alexandre Dumas, onde nos é dado entrever, por intermédio de José Bálsamo, uma futura imagem da morte de Maria Antonieta numa garrafa de cristal.

Envolvido no processo do colar, o afamado ocultista retirou-se para Roma onde, por incumbência do Santo Ofício, lhe fora atribuída a pena capital, depois transformada em prisão perpétua. De resto, a resolução definitiva ficara a cargo de Pio VI, conforme se averba no seguinte passo:

«José Bálsamo, réu confesso e convencido de muitos delitos, e incurso nas censuras e penas publicadas contra os hereges formais, dogmatizantes, heresiarcas, mestres e sequazes da magia supersticiosa, e igualmente nas censuras e penas estabelecidas tanto nas constituições apostólicas de Clemente XI e de Benedito XIV contra aqueles que de qualquer modo favoreçam e promovam a sociedade e conventículos dos franco-maçons, como no édito da Secretaria de Estado contra os que em Roma ou outro qualquer domínio Pontifício tiveram nela parte: usando de graça especial, comuta-se-lhe a pena de relaxá-lo ao braço secular (pena de morte) em cárcere perpétuo numa fortaleza, onde deverá ficar estreitamente retido, sem esperança de obter mais graça; mas, tendo abjurado de todos os erros na prisão em que actualmente se encontra, determino que seja absolvido das censuras, impondo-se-lhe as devidas e saudáveis penitências.

Quanto ao livro manuscrito
, que tem por título Maçonaria Egipciana, solenemente o condeno, porque contém ritos, proposições, doutrinas e sistemas que conduzem à sedição e à destruição da religião cristã, e é supersticioso, blasfemo, ímpio e herético, pelo que deve ser publicamente queimado pelo ministro da Justiça, juntamente com os instrumentos pertencentes à mesma seita. Com uma nova constituição apostólica se confirmarão e renovarão, não só as constituições dos Pontífices predecessores, mas também o referido édito da Secretaria de Estado, que proíbem a sociedade e conventículos dos franco-maçons, mencionando em especial a seita egípcia e a outra vulgarmente chamada dos iluminados, estabelecendo-se contra todas as pessoas que nelas se juntem, ou por qualquer modo as auxiliem, as mais graves penas corporais».

Ora, uma tal sentença, que para Camilo Castelo Branco «corresponde plenamente a todos os ditames da justiça, da equidade, da prudência, da religião e da tranquilidade pública, não menos para o estado Pontifício, que para o mundo inteiro», queda inserta no seu livro José Bálsamo, O Conde de Cagliostro. Camilo é, pois, peremptório, a respeito de quem toma por charlatão, impostor, ateísta, sacrílego, materialista, incrédulo e sobretudo indigno do santo matrimónio por ministrar a Lourença Feliciana, sua mulher, a máxima com que amiúde a corrompia para obter jóias e dinheiro: Que o adultério não era pecado numa mulher que se entregava por interesse, não por amor, a outro homem.





No seu livro, Camilo não destrinça a Maçonaria operativa da Maçonaria especulativa. Por outras palavras, não distingue a Maçonaria medieval, corporativa e mesteiral da Maçonaria iluminista e racionalista transviada em facções, regras, ritos e lojas de perfil ou feição protestante. No entanto, averba o carácter impiedoso inerente a várias espécies de Maçonaria, como a da já referida Maçonaria Egípcia fundada ou restaurada por José Bálsamo, ou a que, congeminada pelos iluminados e atreita à destruição da catolicidade e das monarquias, dá pelo nome de estreita observância; finalmente, temos a Maçonaria da alta observância, aparentemente propensa à arte hermética mas, no fundo, subversiva e revolucionária.

Não há, pois, como fugir ao facto de a Maçonaria ter decaído e degenerado nos dois últimos séculos. Exemplo disso é o Grande Oriente Lusitano, o mesmo que, em nome da democracia e da república positivista, começou por alçar uma estátua ao feroz e cruel Marquês de Pombal, para, assim, na história mais recente - que é a história espúria do jacobinismo, do ataque à Igreja Católica e da pregação socialista - ter igualmente contribuído para amordaçar Portugal na teia de poderes e organizações internacionais. Mas essa é outra história que transcende o contexto histórico em que jaz o ilustre novelista de Oitocentos.

Resta então atender, ainda que brevemente, ao Conde de Cagliostro, segundo Camilo Castelo Branco.

Miguel Bruno Duarte





EM QUE SE DÁ UMA BREVE IDEIA DA MAÇONARIA EM GERAL, E UMA DESCRIÇÃO EM PARTICULAR DA MAÇONARIA EGÍPCIA


«Muitas vezes [José Bálsamo] usou também de um misterioso silêncio; mas a alguns que lhe perguntavam por seu nome, ou por sua condição, tomava o partido de responder: Ego sum qui sum; e quando apertavam muito com ele sobre esta matéria, o mais em que condescendia era pôr por escrito a sua cifra figurada numa serpente, que tinha na boca uma maçã trespassada com uma seta».


... A maçonaria é um agregado de pessoas vulgares e de costumes soltos, que se juntam em sociedade, ou, para melhor dizer, em sítio determinado. No ano de 1723, foi pela primeira vez impresso em Londres o livro das suas constituições por Guilherme Hunter: ali se lê, que naquela cidade e seus arrabaldes se contavam já vinte casas particulares destes sectários, cada uma das quais tinha seu decano, e mandava todos os anos um deputado a uma assembleia para a eleição de um superior a quem todos estavam sujeitos.

A maior preocupação dos seus dirigentes foi ocultar a verdadeira origem ou modelo que se propuseram seguir, para melhor dissimular seu objectivo e fim, que no referido livro impresso em Londres, se diz ser o de fazer florescer a arquitectura. Depois, inicia-se a história por Adão, criado à imagem de Deus, que é o grande arquitecto do Universo: no decurso do tempo Moisés e Salomão recebem o nome de grandes mestres, e assim continua discorrendo, idade por idade, por todas as nações do mundo e primeiros monarcas, especialmente aqueles que têm sido amantes e protectores da Arquitectura.

Em outros livros, impressos, em particular, por aqueles que quiseram defender esta seita, intentou-se trazer sua origem, ou de alguns Templários que ficaram refugiados na Escócia, os quais, por motivos de cruzadas, achando-se muitas vezes misturados com os infiéis, se viram obrigados a convir em certos sinais para reconhecerem-se, ou de Tomás Cramnero, que se fez chamar Flagellum Principum e que no ano de 1558 foi bispo apóstata favorecido de Ana Bolena e depois queimado, ou de Oliveiro Cromwel, a quem chamavam o famoso libertador dos reinos, ou do antigo rei Artur.

As casas de reunião denominam-se lojas. Seguindo sempre a alegoria da arte mecânica, tem diversas classes e graduações: uns são moços, outros trabalhadores, outros mestres; e assim se distinguem os moços, que por outro nome são aprendizes, companheiros e mestres. Em muitas lojas há maiores graus, e são: arquitecto, mestre e outros semelhantes. Dos veteranos, isto é, dos graus mais elevados, escolhem-se os oficiais, que têm diversos títulos, como de secretário, irmão terrível, venerável e outros. As lojas pertencentes a um mesmo rito todas se comunicam entre si, e correspondem-se com uma loja-madre, cujo caporal, ou presidente, se chama grande oriente, e este envia a todas as suas instruções e oportunos regulamentos.


Os membros de uma classe celebram suas reuniões e realizam as suas funções separadamente das outras; daqui vem que os aprendizes não sabem, nem devem saber, o que fazem os companheiros, nem estes o que pertence aos mestres. Para conservar um tal sistema, os indivíduos da seita reconhecem-se entre si por alguns sinais recíprocos, e toques de mãos, e também por algumas palavras proferidas alternadamente, sílaba por sílaba: e assim cada uma das classes tem distintos sinais, toques, e palavras. Umas e outras mudam também segundo a variedade dos ritos das lojas.

De um grau sobe-se a outro, com intervalo de tempo. Muitas e complicadas são as cerimónias que se fazem para o recebimento, e respectivo acesso aos graus, que sempre têm lugar na loja. Em diversos livros impressos encontra-se o plano; (...) Ali há muito de ridículo, mas muito mais de superstição, de profanação: e de abuso das coisas sagradas. Três circunstâncias são aqui assinaladas principalmente. A primeira: a obrigação que contraem os indivíduos, de profundo e inviolável segredo, debaixo de um terrível juramento. A segunda: a cega obediência que prometem a qualquer ordem do seu superior. A terceira: uma incorporação e reunião entre eles, que, superando ainda os vínculos de uma natural fraternidade, um ocorre prontamente às necessidades do outro, em qualquer lugar, tempo, e circunstâncias.

Qual deva ser o resultado destas combinações, cada um de per si mesmo pode prevê-lo. Alguém que fez suas observações sobre o carácter dos seus componentes, e especialmente dos seus caporais, julga-os a todos ou ineptos em ciências, ou depravados nos costumes, ou incrédulos da verdadeira fé. Quem tiver conhecimento de algum, facilmente avaliará a importância desta reflexão. Nós, deixando de parte todas as especulações, falaremos de puro facto, e sem mistério. Por muitas denúncias voluntárias, de prisões, de testemunhas e outras apuradas notícias, que com os respectivos documentos se conservam em nossos arquivos, vê-se claramente que os seus ofícios de sociedade são mentirosos, suas especulações falsas; alguns professam uma descarada irreligião, e outros tratam de sacudir o jugo da subordinação e destruir as monarquias. Este é, indubitavelmente, o fim a que todas obedecem, porém nem a todas, nem a todos, nem a um mesmo tempo se comunica o grande segredo, sem que primeiro os caporais e directores tenham esquadrinhado bem o coração e regulado as inclinações de cada indivíduo. Antes procuram cativar-lhes os ânimos com a lisonja de descobertas portentosas ou podem remir o homem das suas misérias, concedendo-lhes o uso daquelas paixões, que permitem dar relevo a todo o infame prazer. Isto não pode causar admiração, sabendo-se que ali domina o partido democrático, que tem por fito atacar e destruir as monarquias.

É, portanto, bem recomendável a vigilância e zelo dos Romanos e Pontífices em ter condenado e proscrito esta sociedade. A santa memória de Clemente XII na sua Constituição, que começa In Eminenti, publicada aos 6 de Abril de 1738, fulminou sobre ela e seus respectivos adeptos excomunhão ipso facto incurrenda, sem alguma declaração e reservada ao mesmo Pontífice, Preter quam in mortis articulo... À pena espiritual juntou também a Constituição o terror das penas temporais, mandando todos os ordinários, superiores eclesiásticos e inquisidores da fé velar sobre tais sectários e castigá-los condignamente: Tam quam de haeresi vehementer suspectos.

Clamem a todo o gritar os incrédulos que isto foi um fanatismo da Religião. O amor e a observância dela, foi uma das causas que animou aquele sábio Pontífice a pensar de tal modo, vendo os gravíssimos danos que adviriam especialmente de uma reunião de pessoas de todas as seitas, e a importância de um juramento de profundo segredo, que só entre eles é conhecido; e viu com Cecílio Natel sobre Minúncio Félix, que honesta semper publico audent selera secreta sunt. Reflectiu que os conventículos sempre foram interditados por todas as leis, assim canónicas como civis, e que em qualquer domínio ou governo os reconhecem perniciosíssimos à tranquilidade pública e à segurança do Estado.






Desta forma procurou Clemente XII cuidar no bem universal de todo o mundo. Porém, nos seus estados fez ainda mais: quis que se publicasse, como se publicou, um édito com data de 14 de Janeiro de 1739, no qual, debaixo de irremissível pena de morte, proibiu reunir-se, escrever-se ou falar-se da Sociedade dos Livres-Muratores, como perniciosa, suspeita de heresia e sedição, sujeitando à mesma pena o que solicitasse ou intentasse ser nela admitido, ou lhe prestasse ajuda, favor, conselho ou casa; impõe finalmente a todos a obrigação de revelá-lo, sob pena de incorrer nas penas corporais e pecuniárias a arbítrio, em caso de transgressão.

O imortal Benedito XIV, animado do mesmo zelo, na ocasião do concílio universal, ano de 1750, compreendeu quanto se tinha propagado a desordem e o dano produzido pelos chamados pedreiros-livres, e soube-o com aquela certeza que lhe subministraram as sinceras confissões de muitos estrangeiros, os quais, passando a Roma para conseguir indulgências, recorreram a ele para obterem a absolvição da excomunhão fulminada na bula de seu predecessor. Este confirmou-a também e publicou-a de novo per extensum, como sua Constituição, que começa: Providas Romanorum Pontificum de 18 de Maio de 1751.

As potestades seculares, antes e depois, têm pensado do mesmo modo. Deixemos, pois, as rigorosas proibições feitas no ano de 1737 em Manheim, pelo sereníssimo Eleitor Palatino, em Viena, em 1743, em Espanha e Nápoles em 1751, em Milão em 1757, em Mónaco em 1784 e 1785, e também em outros tempos na Sabóia, Génova, Veneza, Ragusa, e outras. Não nos limitaremos só aos países apostólicos, mas também trataremos dos outros.

Por um irrefragável documento conservado nas actas do Santo Ofício, consta que a Porta Otomana, no ano de 1748, foi informada de que um francês criara, em Constantinopla, lojas de pedreiros-livres, isto em casa de um mercador inglês, tendo também convidado os turcos para nelas ingressarem. O capitão Baxá deu ordens terminantes para que a sociedade fosse encerrada, presos os seus adeptos e incendiada a casa. Tomada a tempo esta disposição, foi tal o terror dos sectários, que desbarataram imediatamente o mobiliário e nenhum deles falou mais em tal. Juntamente, foi intimidado o inglês dono da casa para que não tornasse a admitir, se a não queria ver reduzida a cinzas. A Porta Otomana informou do facto os embaixadores das cortes estrangeiras que estavam contentes com a tolerância das igrejas para uso da religião católica; foi também intimado o francês que era superior ou cabeça, para que saísse imediatamente da cidade, e de facto logo embarcou, sem mais se ouvir novas dele.

Parece que o que até aqui se tem dito é bastante para descobrir o disfarce debaixo do qual se quer esconder esta sociedade, e para todos se resolverem seriamente a livrar-se deste contágio.

Se acaso fica na incerteza do que até agora se tem exposto, ouvirá brevemente as coisas que, no presente processo, disse Cagliostro, ao qual não se pode negar um pleno conhecimento da matéria, como quem por tantos anos viveu entre os maçónicos e é considerado por eles como um génio sobrenatural.

Ele disse que são muitas as seitas em que está dividida a maçonaria, mas duas são as mais frequentes: a primeira chama-se da estreita observância, e pertence aos iluminados; a segunda da alta observância. Aquela professa uma absoluta incredulidade, obra magicamente, debaixo do especioso título de vindicar a morte do grão-mestre dos Templários, tendo principalmente por objecto a destruição total da religião católica e das monarquias. A outra, aparentemente, emprega-se em indagar os arcanos da Natureza para aperfeiçoar a arte hermética, especialmente na pedra filosofal; porém, a absoluta subordinação a seu superior e o vínculo do juramento do segredo, indicam que os seus fins são combater o estado e a tranquilidade pública.






Nesta segunda classe, confessou Cagliostro ter-se adscrito em Londres, e igualmente sua mulher, tendo ambos tido suas patentes; Cagliostro pagou a sua com cinco guinéus. Num mesmo dia foram admitidos aos três graus que compõem a loja, que vem a ser, como já se disse: aprendiz, companheiro e mestre, e receberam os arneses pertencentes ao ministério, isto é, mandil, faixa, estola, esquadro, compasso e outros mais. À mulher deram uma cinta ou liga, dizendo-lhe que era aquela a insígnia da ordem, e nela estavam escritas estas três palavras: união, silêncio, virtude, e lhe foi mandado que devia dormir aquela noite com ela, cingindo-a a si. Refere largamente Cagliostro as funções e cerimónias observadas na admissão aos ditos graus. Já dissemos que o plano anda impresso em vários idiomas (...). Antes do aceite, exigem-se algumas provas de valor do indivíduo que deve ser admitido. Nas que deu Cagliostro, duas foram capazes de mover, não sabemos se o enfado, se o riso. Primeiramente estava na sala uma corda atada de um lado a outro, sendo ele obrigado a dar um salto para, com a mão, se agarrar a ela, ficando assim obrigado por algum espaço de tempo; mas, como era pesado, isto custou-lhe, sentindo alguma dor e ficando-lhe a mão extensa. Depois taparam-lhe os olhos e deram-lhe uma pistola descarregada, mandando-lha carregar com pólvora e bala, o que fez; porém, quando ouviu que a devia disparar contra a testa, como era natural mostrou toda a repugnância. Foi-lhe então tirada com desprezo das mãos e levaram-no a ir prestar juramento. Na solenidade e importância deste, induziram-no a que descarregasse, como já lhe tinham mandado, a dita pistola, que em seguida lhe deram. Com efeito, descarregou-a, estando também com os olhos tapados, e sentiu o golpe na cabeça sem lhe fazer a menor lesão; ele observou, em outras admissões, que esta experiência era uma ficção, porque, quando se dá ao iniciando, pela segunda vez. a pistola, esta está descarregada, e quando vai dispará-la, outro dispara a carregada, e outro, com um ligeiro instrumento, dá um golpe na cabeça do vendado, que desta forma fica julgando que o tiro lhe acertou, admirando-se por ficar ileso.

A forma do juramento que pronunciou é a seguinte: Eu, José Cagliostro, em presença do grande arquitecto do Universo, e na de meus superiores, como também da respeitável sociedade em que me acho, obrigo-me a fazer tudo quanto me for mandado por eles, e portanto juro, debaixo das penas estabelecidas pelos ditos meus superiores, obedecer-lhes cegamente, sem perguntar o motivo, e de não revelar os segredos, nem por palavra nem por escrita, nem os arcanos que me forem comunicados (in José Bálsamo, Conde de Cagliostro, Hugin, 2001, pp. 39-44).

Continua


quarta-feira, 22 de junho de 2011

«Sou um repudiado pela cultura oficial»

Entrevista a Orlando Vitorino








No prefácio a Tongatabu e Nem Amantes nem Amigos (Teoremas, 1977), congratula-se «o autor por o destino o haver dado a tão deslumbrante língua portuguesa». Contudo, trata-se de uma língua que, «ainda usada como viva», ou já confinada ao «vozear babélico de uma multidão», surge, de facto, como uma língua já morta depois de ter sido, quer em capacidade descritiva quer em capacidade conceptiva, a primeira de entre todas as línguas europeias modernas. Tal é, pois, o que Orlando Vitorino, dizendo o que sabe, bem como sabendo o que diz, assegura num duplo sentido: o primeiro denotando que as palavras, adulterado o significado étimo e conceptual, decaíram num prosaísmo vocabular de intuitos meramente utilitários e comunicativos; o segundo mostrando que é hoje possível escrever e falar, a par da língua igualmente morta dos clássicos, com palavras cujo espírito de liberdade porventura vale e significa o que as palavras sagradas valiam e significavam para os sacerdotes que, durante mais de mil anos, acreditaram na revelação de Deus.

Ora, a entrevista que se segue, inserta em A Tarde (n.º 871, II Série, 4/11/85), dá disso inolvidável testemunho nas palavras de quem
fora efectivamente «repudiado pela cultura oficial». Aliás, a diferença entre cinema de festival ou cinema de autor, ou ainda entre filosofia portuguesa e cultura marxista universitária, constitui, por si só, o que mais importa saber. De resto, fica também aqui um anexo comprovativo da passividade das instituições do Estado perante as ilegalidades cometidas pelos “candidatos do sistema” nas eleições presidenciais de 1986.

Miguel Bruno Duarte





«Sou um repudiado pela cultura oficial»


Realizador de cinema? Diz-me que não, não é. «Sou um homem da cultura», corrige. A sua primeira, e única, longa metragem, a adaptação para o cinema de «Nem Amantes, nem Amigos», tem doze anos e nunca foi estreada para o grande público. Porquê? «Os distribuidores não a querem, impõem condições...» Se calhar, o seu filme é mau... «Pois olhe que quem o viu considera-o uma obra-prima». Estes distribuidores...! «Faço cinema de autor, sabe? E eles preferem o outro, o de festival. Rende mais, dá mais dinheiro». Entretanto há as curtas metragens. E subsídios? «Qual quê? Quando aprendi a fazer cinema pedi um subsídio e negaram-me. Até hoje. A última vez foi há dois anos. Havia 70 pedidos de subsídios e ganharam cinco realizadores: todos eles comunistas». Pouca sorte, não? «Sou um repudiado pela cultura oficial», afirma. Orlando Vitorino, 60 anos. Actualmente é candidato à Presidência da República. Na manga, um filme em preparação: o da sua candidatura presidencial. Título: «Como se ganha ou como se perde uma eleição». A entrevista, no discurso directo.


«O cinema português não tem espectadores»


A TARDE – Que tipo de cinema se faz em Portugal?

Orlando Vitorino – O cinema de festival. Ou seja, um cinema que não interessa nada ao público, que não tem espectadores e que apenas serve para os seus autores levarem esses filmes aos infinitos festivais que há por todo o mundo, ganharem aí um prémio, fazerem publicidade com ele e obterem, assim, no ano seguinte, um novo subsídio.

A TARDE – Qual a diferença entre cinema de festival e cinema de autor?

Orlando Vitorino – Neste último, o realizador utiliza o cinema para expressar uma realidade que ele próprio constrói, que ele faz, sem condicionamentos. Tal como um poeta escreve um poema, um romancista um romance. No cinema comercial, ou no de festival, o termo realizador é apenas uma designação industrial: há uma grande indústria de cinema, dentro dela existem várias funções e uma delas é a do realizador. Muitas vezes, o realizador é apenas um operário, recebe um texto, um guião, os actores e limita-se a orientar e ordenar tudo aquilo. Por outro lado, o realizador que não entra no meio industrial, que recusa descaracterizar-se, nunca chega a ter êxito.

A TARDE – Nunca? Tem a certeza?


Ingmar Bergman


Orlando Vitorino – Abro uma excepção, por exemplo, a Ingmar Bergman. Mas veja o caso do Bogdanowitch, o realizador de «Romance em Nova Iorque». Ele é, na minha opinião, um dos maiores realizadores do cinema actual, e, no entanto, não tem êxito, nunca foi premiado. Os prémios têm sido atribuídos a obras inferiores, pelo menos inferiores àquelas que ele realiza.


«Amadeus»
– Uma obra menor


A TARDE – E quais são essas obras inferiores?

Orlando Vitorino – Cito duas mais recentes: «A Casa do Lago», com Henri Fonda, e «Amadeus», do Milos Forman.

A TARDE – Em conclusão: o bom realizador é o que faz, a partir da sua própria sensibilidade, do seu próprio texto, o filme que depois dá ao público. É isto?

Orlando Vitorino – Exacto, é a sua obra de arte. Mas não tem, necessariamente, de a dar a conhecer. Eu posso fazer um filme admirável e não pretender exibi-lo.

A TARDE – E porque não? Seria um esforço inglório, não?

Orlando Vitorino
– Não vejo porquê. Da mesma forma que um poeta pode escrever um poema e não o publicar, eu posso fazer um filme e não o exibir.

A TARDE – Não me parece que seja a mesma coisa. No cinema o caso toma outras proporções. Escrever um poema não implica custos materiais. Exige apenas sensibilidade, papel e tinta. Criar, montar e realizar um filme já implica encargos financeiros, por sinal bastante elevados.


Os subsídios e as queixas dos realizadores


Orlando Vitorino – Isso é outra história. Sabe qual o valor dos subsídios dados pelo IPC? São, em média, de quarenta mil contos.

A TARDE – Muito? Pouco?

Orlando Vitorino – Imenso. E, no entanto, os respectivos realizadores queixam-se, vão lamentar-se para os jornais de que os filmes não prestam porque os subsídios são muito pequenos. Veja: o Manuel de Oliveira recebeu 200 mil contos de subsídio para o seu último filme! Sabe de quanto necessitei para fazer o meu? De 300 contos! Um filme de 35 mm, com 15 actores, entre eles do melhor que cá temos: Lígia Teles, Delfina Cruz, Lia Gama, António Duarte, Andrade e Silva, etc.

A TARDE – Mas foram 300 contos há doze anos.

Orlando Vitorino – Pois sim. Mas na altura os realizadores recebiam subsídios no valor de dez mil contos.


«Nem Amantes, nem Amigos» – uma «obra-prima» por 300 contos


A TARDE – E com esses 300 contos conseguiu o filme que queria?

Orlando Vitorino – Fiquei perfeitamente satisfeito. De resto, a maior parte das pessoas que puderam ver este filme considera-o uma obra-prima.

A TARDE – Porque é que este filme nunca foi estreado? Não quis ou, pelo contrário, ninguém se interessou por ele?

Orlando Vitorino
– Contactei dois distribuidores para o efeito. O primeiro achou o filme demasiado intelectual, sem interesse para o público. O segundo quis impor condições a alterar a história do filme, e eu não aceitei. Desisti. E desde então, «Nem Amantes, nem Amigos» tem sido exibido a pedido de grupos de estudantes, para festas, para escolas de fotografia, etc. Sexta-feira passada foi exibido no Pathé, anteriormente tinha estado na Cinemateca, etc. Posso acrescentar que empresto o filme sem cobrar dinheiro. Nunca obtive com ele lucros materiais.


«Sou um homem da cultura»





A TARDE – Afirma não ser realizador de cinema. Como se define?

Orlando Vitorino – Dispenso os rótulos. Digamos que sou um homem da cultura. E a cultura manifesta-se de muitas maneiras. Faço cinema como posso fazer teatro. Aliás, este filme foi tirado de uma peça de teatro. Não há cultura autêntica sem uma fundamentação filosófica.

A TARDE – A propósito, como adquiriu a sua formação filosófica?

Orlando Vitorino
– Formei-me na Faculdade mas lá não aprendi rigorosamente coisa nenhuma. Tudo o que sei aprendi através da linha de uma cultura portuguesa não reconhecida e abafada pela cultura oficial. Essa linha, que eu considero a maior de todas, inicia-se com Teixeira de Pascoaes e Leonardo Coimbra. A sua segunda geração reúne nomes como José Régio, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Santana Dionísio. Eu incluo-me na terceira geração, a dos discípulos. Evidentemente que são tudo nomes repudiados. Para nós não há apoios, subsídios, nada.


Os repudiados


A TARDE – Acha então que o seu trabalho só não é reconhecido por se inserir na linha de pensamento e/ou estilo de Teixeira de Pascoaes?

Orlando Vitorino
– Somos marginalizados pela cultura oficial.

A TARDE – E o que é a cultura oficial?

Orlando Vitorino
– São as instituições, as universidades, o ensino marxizado, é o considerar-se a cultura como um instrumento da política.

A TARDE – Mas formou-se em Filosofia numa dessas instituições.

Orlando Vitorino – Sim. Mas apenas por chantagem social. O ensino em Portugal não presta para nada. Apenas se salva a instrução primária, e mesmo essa estão a tentar destruir.


O candidato


A TARDE – O que leva a candidatar-se à presidência da República?

Orlando Vitorino – Uma das principais razões é alterar esta situação da cultura. Além disso, é bom não esquecer que a política portuguesa está a ser orientada e dirigida por agentes de doutrinas estrangeiras. De más doutrinas estrangeiras. Estamos hoje a viver condicionados por quatro estruturas criadas pelo comunismo gonçalvista: a reforma agrária; as nacionalizações (80 por cento da economia está nacionalizada); a marxização do ensino e o controlo da informação. É tudo isto que eu pretendo anular com a minha candidatura.





O optimismo de Orlando Vitorino


A TARDE – Mas não acha que, à partida, as hipóteses de vir a ser eleito são, praticamente, nulas?

Orlando Vitorino
– E porque são nulas?

A TARDE – São-no praticamente porque o nome de Orlando Vitorino nada ou quase nada representa junto do eleitorado. E não é fácil competir com nomes como Mário Soares, Freitas do Amaral ou Lourdes Pintasilgo.

Orlando Vitorino – Mas esse três senhores só são conhecidos porque a máquina publicitária e política que têm por trás os tornou conhecidos.

A TARDE – Seja. Mas candidatam-se já conhecidos, e bem. O que não é o seu caso...

Orlando Vitorino
– Claro que não. E é evidente que vão fazer tudo para que os candidatos independentes não possam ter lugar. Veja o caso da RTP: entrevistou esses três senhores e, naturalmente, e segundo a lei que obriga a que todos os candidatos sejam tratados da mesma maneira, pensei que também eu seria entrevistado. A resposta da RTP à minha carta foi que a televisão portuguesa «já escolheu os seus candidatos». Como vê, esta é mais uma prova de que a lei eleitoral não está a ser respeitada.

A TARDE – Ainda assim, vejo-o muito optimista. Acredita mesmo que possa a vir a ser eleito? Não será uma perda de tempo?

Orlando Vitorino – Veremos...


Anexo: o caso da RTP


Em 15 de Julho de 1985, Orlando Vitorino envia ao Presidente da RTP uma carta em que lhe pergunta qual a data em que ele, como candidato presidencial, seria entrevistado, uma vez que a RTP havia já entrevistado os candidatos presidenciais M. L. Pintasilgo, M. Soares e F. do Amaral e uma vez que a Lei Eleitoral obriga a RTP a dar igual tratamento a todos os candidatos.

Em 2 de Agosto de 1985, o Presidente da RTP envia a seguinte resposta:

Exmo. Senhor
Dr. Orlando Vitorino
Rua Eça de Queirós, 22-4.º Esq.
1100 LISBOA

Exmo. Senhor

Em resposta à carta de V. Ex.ª de 15 do corrente, que mereceu a minha melhor atenção, cumpre-me transcrever o esclarecimento que, a propósito, me foi prestado pelo Director de Informação:

“1. A Direcção de Informação da RTP efectuou entrevistas com personalidades de relevo na vida política nacional que, pelos apoios conhecidos e pelas sondagens divulgadas, têm surgido como as mais capazes de alcançar o que, hoje não passa de intenção: a candidatura efectiva à Presidência da República.

2. Os critérios jornalísticos que presidem à escolha dos entrevistados são da exclusiva responsabilidade da Direcção de Informação da RTP e resultam da apreciação da importância relativa, em termos de informação, dos potenciais candidatos à Presidência. Não se integram, portanto, na propaganda eleitoral de cada um deles.

3. A lei determina igualdade de tratamento obrigatória durante a campanha eleitoral. De momento, apenas existem intenções de candidatura.

4. A seu tempo, a Direcção de Informação da RTP esquematizará entrevistas a todos os candidatos efectivos à Presidência”.

Com os melhores cumprimentos.

O PRESIDENTE DO CONSELHO DE GERÊNCIA

a) Manuel João da Palma Carlos.







Em 12 de Agosto de 1985, Orlando Vitorino envia ao Presidente da RTP a seguinte resposta:

Exmo. Senhor
Dr. Manuel João da Palma Carlos
Presidente da RTP
LISBOA

Exmo. Senhor

Recebi em 2 do corrente uma carta, sem data, que V. Ex.ª me dirigiu para me informar do privilégio que a RTP decidiu conceder a certos candidatos presidenciais – os Srs Freitas do Amaral, M.L. Pintasilgo e Mário Soares – entrevistando-os e noticiando-os demorada e frequentemente, e da atitude contrária que adopta para com os candidatos independentes – como eu, o Gen. Altino de Magalhães, o escritor Vasconcelos e Sá ou o industrial António Champalimaud – ignorando-os simplesmente. Ao afirmar e expor esta discriminação, a carta de V. Ex.ª constitui a declaração formal e iniludível de que a RTP está apostada em destruir a legitimidade do exercício do primeiro orgão da soberania nacional. Trata-se de uma posição de tal gravidade que não posso deixar de dizer a V. Ex.ª o seguinte:

1. O facto de a RTP privilegiar certos candidatos é motivo suficiente para condicionar os resultados eleitorais, dada a influência decisiva que a RTP pode ter na formação da opinião pública.

2. O facto de a RTP ser uma empresa estatizada, envolve toda a organização do Estado, em especial o Governo, na responsabilidade por esse condicionamento do resultado das eleições.

3. O facto de V. Ex.ª, como Presidente da RTP, vir reconhecer e defender o privilégio concedido àqueles candidatos, constitui uma manifestação inaudita de abuso do poder e equivale à declaração de que o exercício da soberania não tem origem na livre expressão da vontade popular.

4. O facto de a declaração de V. Ex.ª, com o correspondente comportamento da RTP, estar em conflito aberto com as determinações da Lei Eleitoral, é razão mais do que suficiente para ser requerida ao Tribunal Constitucional a anulação ou a não aceitação das candidaturas privilegiadas.

Resta-me informar V. Ex.ª de que envio cópias desta carta, bem como da que me dirigiu, às seguintes entidades:



Presidente da República
Presidente da Assembleia da República
Primeiro Ministro
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Cardeal Patriarca de Lisboa
Arcebispos de Braga e Évora
Presidente do Tribunal Constitucional
Comissão Nacional de Eleições
Conselho da Comunicação Social
Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas
Chefes e Comandantes Militares
Comunidade Económica Europeia
Conselho da Europa
Embaixadores dos países de regime não totalitário
Candidatos à Presidência da República
Agências Internacionais de Informação
Amnistia Internacional
Directores dos orgãos de comunicação social.

O Candidato independente à Presidência da República

a) Orlando Vitorino



segunda-feira, 20 de junho de 2011

Quem foi que inventou o Brasil?

Escrito por Olavo de Carvalho







Zero Hora, 11 de junho de 2006

Se todos os meios de produção são estatizados, não há mercado. Sem mercado, os produtos não têm preços. Sem preços, não se pode fazer cálculo de preços. Sem cálculo de preços, não há planejamento econômico. Sem planejamento, não há economia estatizada. “Comunismo” é apenas uma construção hipotética destituída de materialidade, um nome sem coisa nenhuma dentro, um formalismo universal abstrato que não escapa ileso à navalha de Occam. Não existiu nem existirá jamais uma economia comunista, apenas uma economia capitalista camuflada ou pervertida, boa somente para sustentar uma gangue de sanguessugas politicamente lindinhos.

Desde que Ludwig von Mises explicou essas obviedades em 1922, muitas conseqüências se seguiram.

Os líderes comunistas, por mais burros que fossem, entenderam imediatamente que o sábio austríaco tinha razão, mas não podiam, em público, dar o braço a torcer. Tolerando doses cada vez maiores de capitalismo legal ou clandestino nos territórios que dominavam, continuaram teimando em buscar algum arranjo que maquiasse o inevitável. Eduard Kardelij, ministro da Economia da Iugoslávia, chegou mesmo a imaginar que seria possível uma comissão de planejadores iluminados determinar um a um, por decreto, os preços de milhões de artigos, desde aviões supersônicos até agulhas de costura. A idéia jamais foi levada à prática, porque se assemelhava demasiado ao método português de matar baratas jogando uma bolinha de naftalina em cada uma. Os soviéticos permitiram que o capitalismo oficialmente banido continuasse prosperando na sombra e respondesse por quase cinqüenta por cento da economia da URSS. Daí o enxame de milionários que emergiram da toca, da noite para o dia, quando da queda do Estado soviético: eles jamais teriam podido existir num regime de proibição efetiva da propriedade privada.

Alguns grandes capitalistas ocidentais tiraram da demonstração de von Mises algumas conclusões mais agradáveis (para eles próprios). Se a economia comunista era impossível, todos os esforços destinados nominalmente a criá-la acabariam gerando alguma outra coisa. Essa outra coisa só poderia ser um capitalismo oculto, como na URSS, ou um socialismo meia-bomba, uma simbiose entre o poder do Estado e os grupos econômicos mais poderosos, um oligopólio, em suma. As duas hipóteses prometiam lucros formidáveis, aquela pela absoluta ausência de impostos, esta pela garantia estatal oferecida aos amigos do governo contra os concorrentes menos dotados. Se a primeira ainda comportava alguns riscos menores (extorsão, vinganças pessoais de funcionários públicos mal subornados), a segunda era absolutamente segura. Foi então que um grupo de bilionários criou o plano estratégico mais maquiavélico da história econômica mundial - inventaram a fórmula assim resumida ironicamente pela colunista Edith Kermit Roosevelt (neta de Theodore Roosevelt): “A melhor maneira de combater o comunismo seria uma Nova Ordem socialista governada por ‘especialistas’ como eles próprios.” Essa idéia espalhou-se como fogo entre os membros do CFR, Council on Foreign Relations, o poderoso think tank novaiorquino. A política adotada desde então por todos os governos americanos (exceto Reagan) para com o Terceiro Mundo, na base de combater a “extrema esquerda” mediante o apoio dado à “esquerda moderada”, foi criada diretamente pelo CFR. O esquema era infalível: se os “moderados” vencessem a parada, estaria instaurado o monopolismo; se os comunistas subissem ao poder, entraria automaticamente em ação o Plano B, o capitalismo clandestino. A “extrema esquerda”, apresentada como “o” inimigo, não era na verdade o alvo visado, era apenas a mão esquerda do plano. O verdadeiro alvo era o livre mercado, que deveria perecer sob o duplo ataque de seus inimigos e de seus “defensores” os quais, usando o espantalho da revolução comunista, o induziam a fazer concessões cada vez maiores ao socialismo alegadamente profilático da esquerda “boazinha”.







Reduzir o leque das opções políticas a uma disputa entre comunistas e socialdemocratas tem sido há meio século o objetivo constante dos bilionários inventores da Nova Ordem global. O Brasil de hoje é o laboratório dos seus sonhos.


sexta-feira, 17 de junho de 2011

Espelho dos Reis

Escrito por Álvaro Pais




Sé Catedral de Silves


«No século XIV foi Bispo de Silves D. Álvaro Pais, clérigo natural de Santarém, que antes exercera o cargo de Secretário do Papa João XXII, em Avinhão. Era homem extremamente culto, autor de vários trabalhos, entre os quais Do Poder Papal e Colírio da Fé contra as Heresias. Defendeu sempre a supremacia do poder papal sobre o dos reis».

Garcia Domingues





A TIRANIA, FORMA DEGENERADA DE PODER

Além disso, se o governo injusto dos tiranos não é exercido por um só, mas por vários, chama-se, em grego, no caso de exercido por poucos, oligarquia, isto é, o principado de poucos, quando, evidentemente, poucos, diferindo do tirano só no número, oprimem a plebe por causa das riquezas.

Se, porém, o reino ou governo iníquio é exercido por muitos, chama-se, em grego, democracia, isto é, poder do povo, quando, evidentemente, o povo dos plebeus oprime com seu poder os ricos e os nobres. Desta maneira, realmente, o povo inteiro é como um só tirano.

Semelhantemente, importa distinguir o reino ou governo justo. Se for bem administrado por alguma multidão, toma o nome comum de politia. E, se for administrado por poucos virtuosos, chama-se em grego aristocracia, isto é, o melhor poder, ou o poder dos melhores, os quais por isso se chamam optimates (nobres) [...].

Se, porém, o governo justo pertencer somente a um, o reino chama-se propriamente monarquia [...]: «o meu servo David reinará sobre eles e será um só pastor de todos eles».

(...) bom governo alguns conseguiram-no por recto caminho, e outros por perverso caminho.

Rectamente chega uma pessoa ao governo, quando é posta à frente das outras por geral e comum consenso da multidão [...], ou por especial mandado do próprio Deus, como sucedeu no povo israelítico [...], ou por instituição daqueles que fazem as vezes de Deus, como deve ser no povo cristão [...].

Perversamente chega uma pessoa ao governo, quando, ou por paixão de dominar, ou pela força, ou por dolo, ou por suborno, ou por qualquer outro meio indevido, usurpa o poder real [...].

Sucede, porém, que, algumas vezes, alguém alcança indevidamente o poder, e, no entanto, se torna, depois, bom e verdadeiro governante, ou por consenso dos súbditos, ou por autoridade do superior [...]. Ora, assim como sucede ser-se recto e perverso no modo de adquirir o poder do rei, assim também o mesmo sucede no uso do poder adquirido. Uns usam rectamente o poder que têm, e outros mal. Daqui provém uma quádrupla distinção.

De facto, o reino de uns é recto, quanto ao modo de aquisição, e quanto ao uso.

De outros, o reino ou governo é perverso, quanto àquelas duas condições.

De outros, o governo é recto, quanto ao modo de aquisição, mas perverso quanto ao uso. Isto, no entanto, raramente acontece, porque dificilmente terão bom fim as coisas que tiveram mau princípio [...].


Por consequência, são justos e legítimos aqueles reinos em que o modo de adquirir o poder, e o uso deste, são rectos. Estes reinos estão sob a Providência de Deus, como bons que são. E são injustos aqueles reinos, em que aquelas duas coisas ou uma delas falta. Estes reinos estão sob a Providência de Deus, como maus que são. Deus, porém, permite tal governo, ou para provação dos bons, ou para castigo dos maus, ou por outras causas que Ele conhece [...]. Segundo este princípio, deve-se dizer que, visto que entre os gentios alguns rectamente alcançaram o poder régio e dele rectamente usaram, por isso, entre eles, houve alguns reinos legítimos e justos a seu modo e segundo o Direito Civil.

Pelo que diz o Filósofo [Aristóteles] que, entre os governos que curam do seu bem próprio, o tirano é o pior, porque procura mais o próprio e despreza o mais comum. Ora, assim como o reino do rei é óptimo, assim o reino do tirano é péssimo. Convém, pois, para que o reino seja justo, que pertença a um só, pois que assim é mais forte; mas se faz declinar o regime para a injustiça, convém que pertença a muitos, para que seja mais fraco e mutuamente se eliminem. Donde Salomão (Provérbios, XIII): «Entre os soberbos há sempre contendas». Por conseguinte, entre os regimes injustos, o mais intolerável é a democracia, isto é, o poder do povo, visto que todo o povo é como um tirano, conforme acima disse e se torna evidente para quem considera os males provenientes dos tiranos. Ora, o tirano é, segundo Gregório e Isidoro, aquele que não possui justamente o poder, mas o usurpa, e quer ser temido e busca os interesses pessoais. E, porque o tirano só cuida de si, desprezando Deus e o bem comum, segue-se que oprime de diversos modos, conforme as diversas paixões a que está submetido para obter alguns bens. De facto, porque domina com a paixão da ambição, rouba os bens dos súbditos. Por isso, Salomão: «O rei justo levanta o seu país; o homem avaro destrói-o» (Provérbios, XXIX, no princípio). Se está submetido à paixão da ira, por uma insignificância faz derramar sangue. Pelo que em Ezequiel, XXII: «Os seus príncipes, no meio dela, eram como lobos que arrebatam a presa, para derramar o sangue».

Por consequência, o Sábio aconselha que se evite este regime, dizendo (Eclesiástico, IX): «Conserva-te longe daquele homem que tem o poder de matar», isto é, daquele que matará não pela justiça mas pelo poder, conforme a vontade da sua paixão. Assim, pois, nenhuma segurança pode existir, antes tudo é incerto, quando há abandono do direito.

E o tirano não só oprime os súbditos nas coisas corporais, como também lhes impede os bens espirituais. De facto, aquele que ambiciona mais ser superior aos outros do que ser-lhes útil impede todo o proveito [...]. Receando a elevação de todos os súbditos como um prejuízo para a sua iníqua soberania [...] esforçam-se os tiranos para que os seus súbditos, tornados valorosos, não concebam o sentimento da magnanimidade e suportem o seu iníquo governo. Esforçam-se ainda para que eles não tenham paz entre si, a fim de que, desconfiando uns dos outros, não possam planear alguma coisa contra o seu domínio. Procuram, efectivamente, os tiranos que os seus súbditos não se tornem poderosos e ricos, para que isto não venha a prejudicá-los, e para que vivendo sem a caridade possam dizer contra si: «Folgamos com a iniquidade, não folgamos com a verdade» [...].

Daqui advém que, devendo oss governantes levar os súbditos à prática das virtudes, perversamente invejam as suas virtudes, e de propósito as impedem, para que poucos virtuosos se encontrem sob a sua tirania. Portanto, diz bem o Papa Leão: «A integridade dos chefes é a saúde dos vassalos» [...]. E, segundo Aristóteles, encontram-se homens fortes junto daqueles em que os mais fortes são honrados. E Túlio: «Jazem na humildade, e pouco progridem, as coisas que são por alguns reprovadas». É também natural que os homens criados debaixo do medo degenerem em ânimos servis [...] e se tornem pusilânimes para toda a obra útil e corajosa, como se vê nas províncias, por exemplo na Itália, muito tempo sujeitas a tiranos (...).

Cruz de Portugal (Silves).







E não há que admirar, porque o homem, governando sem a razão e segundo as paixões da sua alma, em nada difere das alimárias. [...] Por isso, os homens escondem-se e fogem do tirano como das feras cruéis. Porque o melhor e o pior governo consiste na monarquia, isto é, no principado de um só, a dignidade régia, devido à malícia dos tiranos, torna-se a muitos odiosa. Alguns, de facto, ambicionando o reino caem em sevícias de tiranos, e muitos regentes exercem a tirania, sob pretexto da dignidade real. Disto temos claros exemplos na república romana. Na verdade, expulsos os reis pelo povo, porque não podia suportar o seu governo, ou melhor, o seu fausto e tirania, os Romanos instituíram os cônsules [...], e outros magistrados, pelos quais começaram a ser governados e dirigidos. [...] E, como refere Salústio, é incrível lembrar quanto, depois de alcançar a liberdade, a cidade romana em pouco tempo cresceu. De facto, quase sempre acontece que os homens vivendo sob o poder dos reis mais lentamente se esforçam pelo bem comum, por julgarem que a sua aplicação ao bem comum não traz utilidade a eles próprios, mas a outrem, sob cujo poder vêem que estão os bens comuns. Quando, porém, não vêem que o bem comum está em poder de um só, não se dirigem para ele como coisa de outrem, antes qualquer um se aproxima dele como coisa sua. Donde mostra a experiência que uma cidade administrada por bons governantes tem mais poder, algumas vezes, do que um rei com três ou quatro cidades, como sucede na Itália; e que pequenos serviços exgidos pelos reis são mais dificilmente suportados do que grandes encargos impostos pela comunidade dos cidadãos - o que se verificou na república romana. De facto, como escreve Tito Lívio por toda a Primeira Década, a plebe era alistada para o serviço militar e pagava o estipêndio aos soldados, e, quando o erário não tinha dinheiro para isto, os recursos privados acudiam às necessidades públicas, a ponto de oferecerem os anéis de ouro e colares de adorno, que eram as insígnias da sua dignidade, para fundirem muito ouro na república romana. Mas, porque se cansavam com as contínuas dissensões que chegaram a transformar-se em guerras civis, com as quais lhes foi tirada das mãos a liberdade para que muitos haviam trabalhado, começaram a submeter-se ao poder dos imperadores, que não quiseram chamar-se reis, por ser este um nome odioso aos Romanos.

Ora, alguns destes procuraram exercer fielmente segundo o costume real, vinda a república romana a ser aumentada e mantida com a sua dedicação. Mas a maior parte deles, tornando-se tirana para com os súbditos, e ociosa e fraca perante o inimigo, reduziu a república ao nada.

Semelhante evolução também se deu no povo dos judeus. Primeiramente, enquanto eram governados por juízes, os inimigos roubavam-nos por todos os lados, e cada um fazia o que a seus olhos parecia bem, como se diz por todo o Livro dos Juízes, e no fim do último capítulo. Porém, tendo-lhes Deus dado reis, a instâncias suas, e não por vontade d'Ele [...], desviaram-se, por maldade dos reis, do culto de um só Deus, e acabaram por ser reduzidos ao cativeiro [...].

Por conseguinte, os perigos de uma e outra coisa são iminentes, quer dominem os tiranos e se evite o óptimo governo do rei, quer, enquanto se deseja o poder real, este se converta na maldade tirânica. Portanto, visto que é preferível o governo de um só, que é o melhor, e visto que acontece que este se converte em tirania, que é o pior, conforme se colhe do que fica dito, deve-se diligentemente trabalhar para que o rei não se transforme em tirano. Donde importa que aqueles que têm o encargo de eleger o rei ou o imperador, provejam para que não seja provável o rei desviar-se para a tirania. Por isso, o Senhor procurou [...] um homem segundo o seu coração e ordenou-lhe que fosse o chefe do seu povo. [...].

Em seguida, deve-se dispor a governação do reino, de maneira a subtrair-se o ensejo de tirania ao rei já substituído. Tempere-se de tal modo o seu poder, que não possa facilmente cair na tirania.


A MONARQUIA, MELHOR FORMA DE GOVERNO


Castelo de Silves




... é da essência de um reino que seja um só a governar, e que este seja pastor e rei que procure o bem comum da multidão, e não o seu. Ora, porque há muitas comunidades (a saber: de casas, aldeias, cidades e reinos), aquele que governa uma comunidade perfeita, isto é, uma cidade ou uma província, chama-se rei por antonomásia [...], e aquele que governa uma casa, pai de família [...].

Do que fica dito, vê-se que o rei é aquele que governa a multidão de uma cidade ou província para o bem comum. Por isso, diz Salomão (Eclesiastes, V): «e há além disso um rei que impera sobre toda a terra que lhe está sujeita».

Isto visto, há que inquirir o que mais convém a uma província ou a uma cidade: se vários, se um só.

Ora, importa considerar este problema em função do fim do regente. A intenção de todo aquele que governa bem deve ser a de procurar a felicidade dos súbditos. Porém, o bem e felicidade de uma sociedade está na conservação da sua unidade, que se chama paz. Não existindo esta, desaparece a utilidade da vida social [...]. Além disso, uma multidão em discórdia torna-se prejudicial a si mesma, e nada de honroso realiza [...].

Por isso, o Apóstolo, depois de recomendar a unidade da multidão dos fiéis, diz na Epístola aos Efésios, IV: «Sede solícitos em manter a unidade do espírito pelo vínculo da paz». E o Salmo [CXXXII]: «Eis quão bom e quão suave é viverem os irmãos em união» [...].

Ora, é evidente que mais pode realizar a unidade aquele que é uno em si do que vários, tal como a causa mais eficaz do aquecimento é aquilo que é quente de per si. Logo, é mais útil o governo de um só que o de vários. Item, diz-se que muitas coisas se unem por aproximação à unidade. Logo, um só é melhor que dois ou vários, por isso que mais se aproxima da unidade.


Ponte Romana de Silves



Além disso, aquelas coisas que são segundo a natureza optimamente se comportam. Todo o reino natural é governado por um só. E na pluralidade dos membros há um, isto é, o coração que comanda o movimento dos outros; e nas partes da alma há uma força natural que governa as demais, a saber, a razão. As abelhas têm um só rei. E no universo há um só Deus, criador e regedor de todas as coisas. [...]

Com efeito, toda a multidão deriva de um só, e o número começa em um, e, depois, multiplica-se [...]. E um só foi o primeiro homem criado, de que vieram todos os da mesma natureza [...].

Isto prova-se pela experiência. As províncias ou cidades, que não são governadas por um só, debatem-se em dissenções e flutuam sem paz, para que se veja realizar aquilo de que o Senhor se queixa pelo Profeta (Jeremias, XII): «Numerosos pastores destruíram a minha vinha». Esses tais, antes se devem chamar lobos.

Ao contrário, as províncias e cidades que são governadas por um só rei gozam de paz geral, florescem em justiça, e alegram-se na abundância das coisas. Por isso, o Senhor, por meio de seus profetas, promete, como grande dádiva, que lhes dará um só chefe, e que um só príncipe haverá no meio deles (Ezequiel, XXXVII).

Item, segundo o Profeta, a virtude única é mais forte que a dispersa. Porém, vários governantes sobre a mesma multidão não mantêm a paz da multidão, se não forem unidos e concordes. Segundo o Filósofo, se um deseja isto, outro deseja mais aquilo. Porém, um único governante, seguindo a virtude, poderá conservar melhor a paz dos cidadãos, e não poderá tão facilmente perturbá-la, pois que mais facilmente concorda um consigo mesmo do que muitos uns com os outros, segundo esta setença «com ninguém concordará aquele que consigo mesmo está em desacordo», pois que onde há multidão, reina a confusão e a divisão. [...]

Por outro lado, a diversidade das almas segue a diversidade dos corpos [...], porque tantas as cabeças, quantas as sentenças [...], e as vontades dos homens são várias [...] E o Moralista: «É próprio de cada uma buscar o que é seu, e não se vive com uma única opinião». E Ovídio: «São tantos os caracteres nos peitos humanos, quantas as figuras existentes no mundo». E também porque um só príncipe que se aplica ao bem comum olha mais por este, do que se forem muitos a dominar; e também segundo a virtude, porque quantos mais forem tirados da comunidade, tanto o resto é menos comum, e quantos menos forem, tanto menor é o comum (in Álvaro Pais, Editorial Verbo, 1992, pp. 78-86).