terça-feira, 31 de maio de 2011

Arte de Ser Português (ii)

Escrito por Teixeira de Pascoaes





"Camões na Gruta de Macau"



MANIFESTAÇÕES DA NOSSA ACTIVIDADE EM QUE MELHOR SE REVELA A ALMA PÁTRIA


NA LITERATURA


«Quem ler alguns dos nossos grandes escritores, Camões, Bernardim, António Ferreira, Gil Vicente, Vieira, Camilo e António Nobre, vê que a sua sensibilidade é, por assim dizer, dualista; tem essência e forma e, ante elas, vibra com a mesma intensidade. Quero dizer: a sua emoção nasce do contacto de suas almas humanas com a parte material e espiritual das coisas e dos seres contemplados. E desses dois contactos resulta uma só impressão que lhes dá vida e actividade ao génio literário» (7).

E digo génio literário, porque o escritor é muito mais espontâneo e emotivo do que intelectual (8), o que imprime verdadeiro encanto às suas obras nascidas directamente da Inspiração e para sempre animadas de íntimo calor. Elas ganham, em expressão vivente, o que lhes falta em força dialéctica e construtora de pensamento. E por isso, em Portugal, é pequeníssima a distância entre a literatura culta e a popular.

O escritor português tem o sentimento inato da Paisagem, porque ela responde às suas íntimas qualidades rácicas. Nos romances de Camilo, por exemplo, as personagens estão, para a terra natal, numa relação de parentesco apenas igualada pelas árvores... A Mariana do Amor de Perdição é a mais pura flor silvestre, a obscura flor de sacrifício nascida para ser trilhada; a pequenina Virgem das nossas povoações rurais, que tem, na sua beleza de humildade, aquele casto amor silencioso que se esconde no coração, e ali vive para não morrer...






A esta divina donzela camiliana, responde o Povo cantando:


Se eu não amo deveras,
Deus do céu me não escute,
Estrelas não m'alumiem,
A terra não me sepulte

Eu fui aquela que disse:
Ou contigo ou com a terra!
Se não casasse contigo
Queria morrer donzela

O meu coração do teu
É mui ruim de afastar
É como a alma do corpo
Quando Deus a quer levar.


A Joaninha de Garret lembra uma Flor desabrochando a ouvir cantar um rouxinol...

E a Menina e Moça de Bernardim é toda ermo crepúsculo, queixume de zéfiro outonal... É a alma etérea dos ermos em vulto de humana formosura...

Sobressaem, no romance nacional, os tipos femininos, porque a nossa sensibilidade panteísta visiona a criatura através da Natureza que é mulher.

Mas, na Poesia aparece a alma de um Povo, no que ela tem de mais profundo e misterioso.

É por intermédio dos poetas que o génio popular se vai fixando em figura viva, cada vez mais perfeita.




O poeta é o escultor espiritual de uma Pátria, o revelador-criador do seu carácter em mármore eterno de harmonia.

Devemos considerar divina a missão dos poetas, quando não mintam ao seu destino sublime.

Se a Ciência é a realidade das coisas fora de nós, a Poesia é a sua realidade dentro em nós. A Ciência vê; a Poesia visiona, transcendentaliza o objecto contemplado; eleva o real ao ideal; é criadora, e as suas criações ficam a viver, a pertencer à Natureza que, nelas, se excede e acrescenta às suas formas do domínio Científico, a beleza espiritual.

A Poesia converte matéria em espírito; e, por isso, ela intervém na criação da alma pátria, definindo e sublimando as suas qualidades, e tornando-as, ao mesmo tempo, universais e duradouras.

A obra mais representativa da Raça, por mais espontânea, é o Cancioneiro Popular. Nele transparece encantadoramente a fusão dos contrastes: dor e alegria, vida e morte, espírito e matéria, e a própria divinização da Saudade.


De qualquer sorte que existas,
És a mesma divindade;
Ventura quando te vejo
Se te não vejo, saudade!


O Cancioneiro Popular (9) não é apenas uma obra satírica e amorosa, como tem sido considerado: é, antes de tudo, uma obra religiosa, anunciando o nosso misticismo panteísta (10).


Ó sol, torna-te amanhã,
Eu quero ver-te nascer!
Só a vós é que eu adoro,
Só por vós quero morrer!

Eu sou filho das estrelas,
Junto ao céu fui criado,
Perdi-me na noite escura,
Fui em teu peito encontrado.

Meu coração é um rio
Cheio de águas, mete medo!
Seca-se o meu coração,
Rega-se o teu arvoredo!




Os versos da última quadra, de uma grandeza cósmica difícil de encontrar nos maiores poetas, traduzem a paixão do amor sulcando o coração humano como um rio caudaloso. A água do coração identificada com a das fontes! O amor e a dor disputando às nuvens a graça de fecundar e florir a terra!

No Cancioneiro há também a tragédia do Mistério:


Ó noite que vais crescendo,
Tão cheia de escuridão,
Tu és a flor mais bela
Dentro do meu coração!


Nesta cantiga se desvenda a qualidade sublime da alma popular, que integra a dor lusíada na dor universal, e é mais um aspecto do seu poder saudosista ou do seu parentesco íntimo com as coisas.

O deus Pã, o velho deus alegre das florestas, cobre-se de sombras, e aparece à alma do Povo. É o Medo profundo e mítico, povoando a noite de aparições, dramatizando fantasmaticamente a Natureza. É o medo que nos põe em convivência com o outro mundo, com as almas bem-amadas que partiram, encomendadas, de noite, pela Quaresma, dos altos píncaros solitários:


Irmãos! alerta! alerta!
Que a morte é certa
E a hora incerta!


E este medo saudoso, fonte inesgotável de Poesia, que atingiu na obra de Bocage uma das suas mais belas expressões líricas, não adquiriu ainda a sua forma verdadeira -, forma dramática e trágica; e por isso, o consideramos a origem futura de um grande teatro português.



Manuel Maria Barbosa l'Hedois du Bocage (1765-1805).



Este Medo, esta Dor fantasma, terrível por indefinida e ansiosa por inatingível, não encontrou ainda o seu Ésquilo.

O Cancioneiro Popular tão pobre como Poética, representa a maior riqueza de Poesia que possuímos. Nele vive tão inteira a alma pátria, que, pelo seu estudo, se pode reconstruir espiritualmente Portugal. E dele pode nascer o romance, o poema, a tragédia, o drama, a filosofia, a estátua, a lei do Estado.

O Cancioneiro e a obra camoniana constituem os dois fundamentos indestrutíveis da nossa Raça. Logo que a Mocidade os compreenda, subordinando-lhes o seu espírito, e obrando a profunda reforma política, religiosa, económica e literária de que a Pátria necessita para se erguer, definida e viva, da nódoa estrangeirada em que a deliram, e apagaram, então, sim, voltaremos, de novo, a ser Alguém...

E com a poesia popular estão de acordo os nossos poetas. O seu lirismo elegíaco, desde Bernardim a António Nobre é longínquo e nubloso: sebastianista. Dentro dele, paira a sombra do Mar, a Aventura na sua aurora de tristeza, a tentação do Remoto e do Mistério.

E o seu amor é o amor saudoso, o dolorido culto da mulher santificada pela ausência (11), contemplada através de uma lágrima que lhe transmuda o corpo carnal em vulto de lembrança. O coração português adora, sobretudo, a imagem da bem-amada. Na sua íntima tendência mística despe a mulher do hábito material e transitório, e adora-a, extasiado, em alma ou presença de saudade.


Chamaste-me a tua vida,
Em tua alma quero ser!

Cancioneiro Popular


Este amoroso platonismo, este vago sentido etéreo das coisas na sua pureza imaterial e original, dá uma delicadeza divina à obra lírica da Raça, e é um sinal da sua religiosidade saudosista. Por isso, todos os nossos líricos verdadeiros são poetas místicos. Divinizam o Amor, imaterializando o seu objecto, por meio de uma ausência real ou imaginária.

Tal sentimento da Mulher anima o nosso culto à Virgem Maria que se humaniza e aproxima de nós, com o Menino Deus nos braços, ou jaz de dor aos pés da Cruz. É a Esposa casta e a Mãe amantíssima, alma da Família, pessoa espiritual de Deus:


E teu filho, madre, esposa,
Horta nobre, frol dos céus,
Virgem Maria.
Mansa pomba gloriosa,
Ó quão chorosa,
Quando o seu filho e Deus
Padecia!

Gil Vicente


Pois que seria, Virgem, quando vistes
Com fel nojoso e com vinagre amaro
Matar a sede ao Filho que paristes!

Camões






O idealismo saudoso, no qual se fundem o espírito e a matéria, a vida e a morte, é o nosso próprio misticismo,


Adeus, minha saudade,
Espelho do meu sentido (12).


a essência do nosso Cristianismo (in ob. cit., pp. 65-73).


Notas:

(7) Cfr. O Espírito Lusitano, p. 9, e O Génio Português, Ed. da Renascença Portuguesa, Porto, 1913, p. 17.

(8) Eis porque a ideia subentendida na Raça, o nosso «ideal colectivo» derivante da nossa natureza moral, vive disperso em nuvens de sentimento e vagas claridades instintivas, na Arte e na Literatura. Daí a sua existência ignorada e incompreendida, que tanto compromete o progresso moral da Pátria, que hesitou no seu caminho, transviando-se.

(9) Cfr. o meu artigo «Camões e a Cantiga Popular», in A Águia, vol. III, p. 177.

(10) Há portugueses que chamam a este ingénito misticismo da nossa raça nebulosidades germânicas!!!

(11) Eis a nossa costela quixotesca. Na verdade, Dom Quixote, no seu divino criador, Miguel Cervantes, participa da alma galega, nossa irmã nos velhos celtas. Daí o seu valor peninsular. A Saudade não é estranha a Dom Quixote, e Cervantes adorou Camões.

(12) Cfr. o citado Cancioneiro Popular.







Dulcineia del Toboso



Continua


domingo, 29 de maio de 2011

Arte de Ser Português (i)

Escrito por Teixeira de Pascoaes




Ponte de Amarante






DA ALMA PÁTRIA E SUA ORIGEM


A alma lusíada tem a sua origem na fusão de antigos Povos que habitaram a Península, e na Paisagem.

Esta bela flor espiritual brotou de uma haste que mergulha as raízes na terra e no sangue, entre os quais se estabeleceram verdadeiros laços de parentesco.


A PAISAGEM


É na região de Entre-Douro-e-Minho, que o Portugal de terra se mostra em alto e nítido relevo. É ali, portanto, que devemos estudar a Paisagem, como fonte psíquica da Raça.

Quem atingir as alturas do Marão, o seu píncaro mais elevado (1400 metros acima do mar) onde está edificada a pequena ermida da Senhora da Serra, avista, para as bandas do nascente, o escuro e montanhoso Trás-os-Montes; e, para os lados de noroeste e nordeste, o Minho viridente. Depois, aproximando o olhar, descobre, nesta mesma direcção as terras vizinhas do Tâmega que participam de Trás-os-Montes pelo acidentado do terreno e do Minho pelo verde e alegre colorido dos seus vales e pradarias.

O doloroso drama transmontano e o bucólico idílio minhoto, fundem-se, na região do Tâmega, numa paisagem original que é o próprio busto panteísta do génio dos lusíadas.

Se exceptuarmos as planícies do Alentejo, monótonas, como que anoitecidas de um vago e antigo sonho mourisco, e os desnudos planaltos transmontanos de uma hostil e amarela aridez judaica, a paisagem portuguesa (1) é quase toda igual à banhada pelo Tâmega.

Entre-Douro-e-Minho é o coração de Portugal casado ao sentir ingénito da Raça.

A reflexão da paisagem no homem é activa e constante. A paisagem não é uma coisa inanimada; tem uma alma que actua com amor ou dor sobre as nossas ideias ou sentimentos, transmitindo-lhes o quer que é da sua essência, da sua vaga e remota qualidade que, neles, conquista acção moral e consciente.

Por isso, a paisagem representa um grande papel na nossa existência; tem sobre nós como que um poder de herança, igual ao dos fantasmas avoengos.

O estudo da sua influência moral sobre o homem, creio que está, infelizmente, por fazer - o que torna incompleto o conhecimento da alma humana, deixando, na sombra, a origem e a natureza de alguns sentimentos e instintos (2) (o da beleza e o do crime, por exemplo, nas suas formas panteístas) de certas modificações que sofrem, de certas nuances que adquirem, etc.


O SANGUE


Empregamos esta palavra como significando Herança.


Serra do Marão


Os rubros glóbulos sanguíneos trazem, dentro da sua microscópica esfera, antigos espectros que ressurgem e vão definindo o carácter dos indivíduos e dos Povos.

Gritam no sangue velhas tragédias, murmuram velhos sonhos, velhos diálogos com Deus e com a terra, esperanças, desilusões, terrores, heroísmos, que desenham, em tintas vivas, o cenário e a acção das nossas almas.

O sangue é a memória, presença de fantasmas, que nos dominam e dirigem.

À voz do sangue responde a voz da terra; e este diálogo misterioso mostra os caracteres da nossa íntima fisionomia portuguesa.

A Ibéria foi primitivamente povoada por diversos Povos de que descendem os actuais castelhanos, vascos, andaluzes, galegos, catalães, portugueses, etc.

Aqueles Povos pertenciam a dois ramos étnicos distintos, diferenciados por estigmas de natureza física e moral.

Um dos ramos é o ariano (gregos, romanos, godos, celtas, etc.); e o outro, é o semita (fenícios, judeus e árabes).

O Ária criou a civilização greco-romana, o culto plástico da Forma, a beleza concebida dentro da Realidade próxima e tangível (3), o Paganismo; o Semita criou a civilização judaica, a Bíblia, o culto do Espírito, a unidade divina, a beleza concebida para além da Matéria.

O Ária cantou, nos cumes do Parnaso, a verde alegria terrestre, a infância, a superfície angélica da Vida; o Semita glorificou, nos cerros do Calvário, a dor salvadora que nos eleva para o céu, o céu da Redenção, pelo sacrifício do individual ao espiritual (4).

Vénus é a suprema flor do Naturalismo grego; a Virgem Dolorosa, a suprema flor do Espiritualismo judaico. A primeira simboliza o amor carnal que continua a vida, esta, o amor ideal que a purifica e diviniza.

O Ária (celtas, gregos e romanos) trouxe, portanto, à Ibéria o Naturalismo, e o Semita, (árabes e judeus) o Espiritualismo (5).

Povos destes dois ramos étnicos tão diferentes, misturam-se na Península, originando as antigas Nacionalidades que Castela submeteu à sua hegemonia, com excepção de Portugal. Todavia, conservam uma certa independência moral (6) revelada pelos idiomas ainda hoje falados na Espanha.

Portugal resiste, há oito séculos, ao poder absorvente de Castela. Demonstra este facto que, de todas as velhas Nacionalidades peninsulares, foi Portugal a dotada com mais força de carácter ou de raça.


E este seu carácter, trabalhado depois pela Paisagem, resultou ou nasceu da mais perfeita e harmoniosa fusão que, neste canto da Ibéria, se fez do sangue ariano e semita.

Estes dois sangues, equivalendo-se em energia transmissora de heranças, deram à Raça lusitana as suas próprias qualidades superiores, que, em vez de se contradizerem - pelo contrário - se combinaram amorosamente, unificando-se na bela criação da alma pátria.


DA ALMA PÁTRIA E SEU CARÁCTER


Já vimos que a maior parte da paisagem portuguesa está de acordo com o génio ariano e semita, pela aparência alegre e dolorosa dos seus ermos montes emsombrados de árvores, subindo de viridentes campinas, ou espraiando-se em planaltos luminosos.

É uma paisagem de contrastes que se abraçam e beijam com amor. Também a alma pátria é uma alma de contrastes que se abraçam e beijam com amor. E neste amor que os casa, encontra ela, por assim dizer, a alma da sua alma, a parte mais etérea e sublime da sua fisionomia religiosa que ao Futuro compete definir, concretizar em formas reais.

Na alma da Paisagem, como na do Povo, existe Cristianismo e Paganismo: Religião.

A dor múrmura dos pinheirais sombrios, a mágoa silenciosa dos ermos escalvados e o verde riso das campinas representam, na Paisagem, a tristeza espiritual e o sentido alegre e plástico do mundo, que dão vulto ao génio dos lusíadas.


A alma pátria é, portanto, caracterizada pela fusão que se realizou, na nossa Raça, do princípio naturalista ou ariano e do princípio espiritualista ou semita, e pelas qualidades morais da Paisagem que, em vez de contrariar a herança étnica, a acentua e fortalece.

E este carácter do génio lusíada idealmente se completa pela sua feição religiosa que, absorvendo a ideia cristã e a pagã, deste dualismo extrai a sua unidade sentimental, aquele sentimento saudoso das Coisas, da Vida e de Deus, que anima de original e mística beleza a nossa Arte, Poesia, Literatura e Cristianismo (in Arte de Ser Português, Assírio & Alvim, 1998, pp. 51-62).


Notas:

(1) Muito se tem escrito, em prosa e verso, acerca da paisagem de Coimbra. Toda de melancólica suavidade, dilui-se em meigos tons que se combinam numa doce fisionomia parada e contemplativa, e traduz propriamente o indeciso alvorecer do nosso génio, a tristeza da meia sombra matutina, a lágrima alvorante dos nossos primeiros elegíacos.

«Mas a região de Entre-Douro-e-Minho define-se pela combinação amorosa ou dramática dos seus contrastes». Veremos, adiante, como estes coincidem com os da alma pátria.

(2) Em Trás-os-Montes, paisagem dolorosa, há mais crimes de morte do que no Minho, paisagem alegre e feliz.

Ali, a navalha que mata, converteu-se no cacete, no ramo de árvore que faz barulho. O instrumento criminal vegetalizou-se, e a «pancada» ou «paulada» é, por assim dizer, o crime de ofensa corporal paganizado...

(3) ... admitimos duas realidades: a realidade - meio («animal») e a realidade - fim («espiritual»). ... este «dualismo» se converte em «unidade» no sentimento característico da «alma pátria» - inesgotável fonte de beleza e pensamento filosófico, religioso e social.

(4) E assim o amor filial e o amor pátrio, representados por um idêntico sentimento de sacrifício, se cristianizam; e aqueles dois amores tornam-se, como já dissemos, as duas primeiras formas de amor a Deus que é a atitude ideal de todos os nobres sentimentos.

(5) Cf. O Espírito Lusitano ou o Saudosismo, Ed. da Renascença Portuguesa, Porto, 1912, pp. 8-9.

(6) Principalmente a Catalunha, esse belo Povo nosso irmão, a quem devemos a mais fraterna simpatia, e ainda a Galiza que, em virtude da sua herança celta, tem o parentesco mais íntimo com os povos do Minho. O rio deste nome não separa as duas províncias... A límpida corrente, reflectindo as duas margens, parece casá-las numa lágrima eterna de saudade...




Continua


quinta-feira, 26 de maio de 2011

O Bateleur (iii)

Escrito por António Telmo








HISTÓRIA SECRETA DA LINGUÍSTICA


Veio o dia, finalmente, em que o antiquário me expôs, com todos os pormenores, a sua teoria da conspiração, até ali apenas insinuada em tudo o que dizia.

As suas ideias neste domínio lançaram-me num mundo de perplexidades. Darei o relato do que me disse e, só depois, mostrarei as conclusões a que cheguei pessoalmente. O que lhe ouvi foi o seguinte.

A linguística nasceu na Alemanha no início do século XIX. Foi imaginada com o fim de fabricar um instrumento suficientemente poderoso para destruir o prestígio da língua hebraica e a glória do seu alfabeto. Esse instrumento recebeu o nome de Fonética.

Porquê a Fonética? Porque só pela Fonética a linguística pôde estabelecer-se como uma ciência exacta e, portanto, irrefutável. A língua, pois que é o domínio de uma actividade invisível e imprevisível, só pelo seu aspecto material parece poder tornar-se acessível a uma manipulação de tipo científico, entendendo por científico aquilo que Kant definiu com a sua distinção dos nómenos e dos fenómenos. A teoria do conhecimento kantista reflecte-se na esfera da linguística na oposição dos nomes e dos fonemas. A semelhança fonética entre nome e nómeno e entre fonema e fenómeno não é apenas ocasional. Se, no domínio da natureza, só há uma ciência possível que é a que tem por objecto os fenómenos, no domínio que é a da linguística só há uma ciência possível, a dos fonemas. Os nomes aparecem-nos como fonemas do mesmo modo que os nómenos nos aparecem como fenómenos, permanecendo ali onde são a coisa em si incognoscíveis. Os fonemas, dado que constituem a materialidade da língua, podem ser contados, pesados e medidos. São determinações quantitativas. Além disso, são produções do corpo humano, ali onde ele funciona mecanicamente como aparelho físico emissor de sons. Pela Fonética, a separação da língua e do pensamento foi facilmente feita. A partir daqui, só houve que encontrar as leis que presidem às relações e às transformações dos fonemas.

Ao constituir-se, a Fonética atirou para o passado, isto é, fez passar à história, a concepção da língua que estava implícita na existência dos alfabetos semitas. Estes alfabetos não registam as vogais. As consoantes são concebidas como destituídas de som; só soam com uma vogal e, por isso, receberam dos antigos gramáticos o nome de consoantes. Por aqui se vê que o que imediatamente distingue a linguística da Kabbalah é a diferença entre a língua entendida como fonação e a língua entendida como audição. Os macacos não falam nem podem falar não é porque não possuam orgãos capazes de proferirem sons, mas porque não têm ouvidos para fonemas. É o facto de o homem possuir o ouvido que falta no macaco que lhe permitiu adaptar e utilizar, para a emissão e formação de palavras, orgãos que a natureza não produziu para falar, mas para comer, beber e respirar.






O fonema não é, pois, apenas um som; é um sentido. A Fonética apreende dele só a sonoridade, aquilo que nele é susceptível de conta, peso e medida.

Para evitar confusões, deveríamos dar aos fonemas o nome de elementos, como o faz Platão, para quem só as vogais são vozes (tá phonéênta). Os elementos, no sistema de interpretação da língua, que é o alfabeto hebraico (e todos os alfabetos semitas), são visíveis pelas letras e tornam-se sonoros pelas vogais. Antes da fala, está a escrita. Dada a fala, é a escrita que a interpreta. Daqui a importância, na Cabala dos gregos ou dos hebreus, dos textos sagrados ou poéticos.

Compreende-se assim que a Fonética, tal como foi concebida e formulada pelos alemães, combata metodicamente todas as classificações antigas dos fonemas, que procediam da letra para o som, e, em consequência, institua como seu único objecto a fala comum, a fala de toda a gente. Com efeito, só aqui a materialidade da língua se oferece plenamente. Compreende-se também que o registo das vogais no alfabeto feito, a primeira vez na história, pelos gregos seja por eles aplaudido como algo de profundamente decisivo para o progresso da cultura humana. Como se sabe, ou como se diz, os gregos receberam dos fenícios o seu alfabeto, mas introduziram nele as vogais.

Todavia, para realizar o segundo intento, o desprestígio da língua hebraica, a Fonética apresentou-se como uma ciência histórica e, como teve que lidar com línguas mortas, isto é, que não são actualmente faladas e de que se ignora a verdadeira pronúncia do tempo em que eram vivas, separou-se aqui daquele princípio sobre o qual se constituíra e teve de deduzir os fonemas falados dessas línguas, principalmente do latim, através das letras gravadas nos textos dos escritores. O seu verdadeiro fim estava, porém, em mostrar que o alemão e todas as línguas da Europa derivavam por sucessivas transformações de uma língua primitiva que recebeu o nome de indo-germânico. Mais tarde, os linguistas substituíram esta designação por outra mais compreensiva, a de indo-europeu.



O sânscrito, também chamado antigo indiano pelos alemães.



A associação da Germânia à Índia apareceu como cientificamente justificada pela descoberta do sânscrito, isto é, pela verificação de que o sânscrito pertencia à mesma família de línguas, àquela família que, por este caminho, se pretendia separar da família das línguas semitas. Aquilo que já estava presente na filosofia germânica e a caracterizava, o seu pessimismo orientalista, recebeu assim uma prova insofismável no campo da linguística.

Goethe tinha dito: "Eles têm o seu Adão e a sua Eva; nós temos os nossos". A linguística vai mais longe: o hebreu não só não é a língua mãe de todas as línguas, como se pretendeu durante tantos séculos, como é apenas uma língua ao lado de outras (o árabe, o fenício, etc.) formando o grupo semita, do qual existirá também uma matriz perdida no tempo, completamente distinta da que é o indo-europeu.

A Gramática Comparada das Línguas Indo-Germânicas foi publicada nos primeiros anos do século XIX. Algum tempo depois, Diels, outro alemão, estabeleceu a gramática comparativa das línguas românicas, pela qual se tornou um dogma científico a proveniência latina de todas elas. O século XIX foi, em linguística, o século da Fonética. Cem anos foram mais do que suficientes para que os fins propostos se realizassem.

Em 1916, um século preciso depois de Bopp, são publicadas as lições de Ferdinand Saussure com o título de Curso de Linguística Geral. Na mesma altura, Eduardo Sapir escreveu o seu magnífico livro sobre A Linguagem. Ambos reagem contra a doutrina, defendida na Alemanha por Hitler e na Inglaterra e na França pelos darwinistas, que explica a origem da língua pelas interjeições e pelas onomatopeias. O problema da origem da linguagem humana, dirá mais tarde Emílio Benveniste, é um falso problema. A única coisa de que podemos ter a certeza é de que onde quer que tenha havido sociedade sempre houve língua. Esta é, dizem todos os estruturalistas, um fenómeno social. Falar é comunicar.

Contra a tese da origem interjeicional e onomatopaica, Saussure vem afirmar que o significado e o significante estão de costas voltadas um para o outro. A Fonética, na medida em que ignora o significante ou se mostra incapaz de lá chegar, deve ser expulsa dos estudos linguísticos para ser integrada no domínio das ciências acústicas. Saussure propõe que, em seu lugar, seja estudada outra ciência, a Fonologia, em que os sons da voz humana possam ser classificados pela sua capacidade de distinção de significados. Em vez de fonema, começa a falar-se de traço distintivo. Os fonemas não significam, mas compõem entre si estruturas que funcionam como distintivos de significações. Classificados por este modo os sons da voz (o humana estava a mais), verifica-se que são muito poucos. Observa Saussure que os alfabetos são óptimas classificações dos traços distintivos.

Foi, mais ou menos isto, o que ouvi a Tomé Natanael. Ele via no estruturalismo o sinal de uma reacção judaica contra a linguística alemã, manifesta no repúdio da Fonética que cindia a língua do pensamento, na reabilitação dos alfabetos, na concepção da linguagem como comunicação que irmanava todos os homens no movimento messianista de criação de um verdadeiro universalismo.


AS PERPLEXIDADES DO APRENDIZ


As minhas cogitações, depois de lhe ter ouvido expor o que ele chamava a "história da linguística", tomaram um aspecto que vagamente me assustava. A velha história, renovada por Freud, de que o discípulo deseja subconscientemente a morte do mestre começava a esboçar-se. É uma sabedoria que parece dar razão àqueles que dizem ter sido Judas o discípulo amado de Cristo.

Bíblia Hebraica


Sentia em mim, embora ainda sob forma indecisa, qualquer coisa que nascia e lhe dizia "não ". Interroguei-me se o que estaria lá no fundo não seria o acordar do ódio latente do cristão-velho ao cristão-novo, aquele ódio antigo que faz de Portugal uma alma dividida e dilacerada. Tudo parecia passar-se no plano lúcido das ideias, mas não aprendera eu com Tomé Natanael que as acções são menos activas do que os pensamentos?

Eu sentia que, se seguisse pelos seus caminhos, me fixaria na medíocre subserviência do meu pensamento. Sabia, porém, que, enveredando por outros caminhos, teria de manter-me fiel à mesma estrela para que diante de mim se abrissem horizontes vastos como mares. A mesma estrela guia os navegantes, até quando vão por rotas contrárias.

O estruturalismo, sobretudo pela influência de Ferdinando Saussure e de Noam Chomsky, parecia-me bem mais perigoso do que a Fonética.

Não vou expor tudo o que pensei neste sentido. Direi apenas o essencial.

Quando Saussure funda o estruturalismo sobre a relação do significante com o significado, defende, afinal, aquilo que Hermógenes, vinte e três séculos antes, dissera no Crátilo sobre o convencionalismo dos nomes e, como o próprio antiquário me fez ver, Sócrates, condoído dele, leva-o pela mão até à porta do templo de Hermes. Se algum dia chegou lá a entrar, pôde então ver aquilo a que alude Sócrates no fim do diálogo, que os nomes primitivos ou elementares nasceram da contemplação e da imitação das ideias, que esses nomes-elementos compõem-se para formar a indefinida variedade dos nomes e dos verbos, que estes, ligando-se uns com os outros, dão origem às frases e que estas, caindo no domínio em que os homens fazem da língua um uso prático, são todo o sentido para as palavras que, de facto e só então, passam a funcionar como convenções. Saussure tem razão no plano em que se situa, mas também Hermógenes tinha.






A segunda coisa que Saussure fez foi explicar a frase como uma estrutura de sintagmas em que as palavras funcionam como convenções e não têm um sentido que seja seu, seu por ser o dos fonemas que a constituem. O seu sentido resulta da relação entre os sintagmas, relação em que verbos, nomes, preposições, advérbios estão em pé de igualdade, nenhum por si só faz o sentido e nenhum é por si só condição de haver frase. É assim que o estruturalismo julga atingir o fim para que foi criado: o assassínio do verbo.

E, todavia, o contrário é que é verdade, por mais simples e menos científico que se nos ofereça. Se eu digo "chuva", sem verbo subentendido, não digo nada; se eu digo "chove" toda a gente me entende. O verbo por si só pode formar uma frase; o nome não pode. Este facto corresponde, no domínio da morfologia, ao que se dá, em fonética, na relação das vogais e das consoantes. Se o verbo é a potência que transforma todas as outras palavras da frase em actos, compreende-se que se possa dizer o mesmo das vogais e das consoantes. Só a vogal é capaz de por si só formar uma sílaba; as consoantes tornam-se actos da voz pela potência sonora das vogais.

A crítica de Tomé Natanael à Fonética, por ter anulado a diferença de natureza da vogal e da consoante, deveria alargar-se ao estruturalismo por ter feito o análogo em morfologia.

Noam Chomsky levou ao extremo o caminho aberto por Saussure. Linguística geral o que é? É uma linguística ideal para todas as línguas. Chomsky pretendeu encontrar as fórmulas universais que explicassem todos os comportamentos do fenómeno linguístico, assim como quem quer estabelecer um sucedâneo da Física neste domínio. Identificou os conteúdos das fórmulas, formas ou formas (por favor, feche o o).

Ao menos, a Fonética estabeleceu leis a posteriori. Observou e comparou fenómenos, viu como eles se comportavam nestas e naquelas condições, deu-nos com essas leis uma ciência que perdurará enquanto perdurarem os fenómenos. Tomé Natanael acusava-a de ter "materializado" a língua. Mas o génio de uma língua, o seu espírito, o que faz que seja esta língua e não outra, não residirá precisamente nos seus fonemas, no modo como eles se associam e se repelem, no modo como vivem? Se eu ouvi um dia falar chinês, alemão, inglês e tenho bom ouvido, se volto a ouvir falá-las, saberei reconhecê-las, mesmo que não identifique uma palavra.



Mosteiro dos Jerónimos






Uma língua é, de facto, o seu génio fonético. Toda a morfologia em português resulta da acção desse génio criando ritmos para a significação. Onde isto se verifica com maior evidência é no domínio da conjunção verbal.

Há dois verbos em português que constituem o melhor exemplo do que afirmo: o verbo ser e o verbo ir. As formas destes verbos provêm de temas de verbos diferentes. O verbo ser provem de esse e de sedere; o verbo esse transporta do latim a raiz fu para as formas do perfeito. O génio fonético de Portugal formou de todas essas diferenças o mais harmonioso dos sistemas.

Não comuniquei a Tomé Natanael estas e outras reflexões que corriam no mesmo sentido de oposição às suas teses. Guardei-as comigo. Não que eu temesse a sua crítica. Aquelas ideias eram tão evidentes em mim que também não me sentia atraído pelo seu aplauso. O discípulo começava a libertar-se do mestre.

O que é que Tomé Natanael me diria se eu lhe confessasse isto? (in ob. cit., pp. 37-46).


terça-feira, 24 de maio de 2011

O Bateleur (ii)

Escrito por António Telmo







AS ESTRANHAS ETIMOLOGIAS DE PLATÃO


Não me fiquei pelo Crátilo. Voltei a ler todo o Platão. Foi uma boa companhia na ausência de Tomé Natanael que, por qualquer motivo, fora passar três meses no norte do país.

Tenho o hábito saudável de ler o prefácio só depois de ter lido o livro. Eu possuía as obras do filósofo grego em traduções das edições de "Les Belles Lettres" que oferecem a vantagem de serem acompanhadas pelo texto original e de incluírem, antes de cada diálogo, uma pormenorizada "notícia" escrita por um especialista da escola universitária francesa.

Ao ler a "notícia" que precede o Crátilo, fiquei pasmado por ver que as numerosas etimologias que cobrem mais de metade do diálogo não são, afinal, de Platão que as escreveu. Escreveu-as, mas não acreditava minimamente no seu valor. São imitações do que outros faziam em Atenas; constituem uma paródia composta pelo filósofo para ridicularizar um certo tipo de gramáticos, que o especialista tem dificuldade em identificar, mas que Platão conhecia muito bem.

Aquele procedimento na explicação da génese e do sentido dos nomes está tão longe dos modernos processos científicos de formar etimologias que o especialista logo o reconhece como incompatível com a poderosa e lúcida inteligência de Platão. É dada uma palavra, por exemplo, a palavra anthrôpos (homem) e Sócrates, sem qualquer hesitação, explica-a por anathrôn ha opôpé (aquele que examina o que viu). Estas três palavras, ao reduzirem-se a uma só, perdem uma quantidade de letras. Etimologias deste tipo cobrem, como disse, mais de metade do livro.

Para tornar a sua paródia mais incisiva diz-nos o especialista que Sócrates aparentou estar possuído pelo daimon de Eutyphron, um adivinho muito estúpido com quem pela manhã estivera a conversar. Há um diálogo que tem por título Eutyphron e que constitui a prova daquela estupidez.

Baseado neste facto, em certas frases aparentemente irónicas de Sócrates, na insistência deste em fazer suceder as "etimologias" umas atrás das outras para marcar bem a paródia, conclui o autor da "notícia" que o diálogo foi escrito para criticar os tais gramáticos.






Aconteceu-me, porém, ter lido o Fedro logo depois do Crátilo e aí encontrei o seguinte que deita por terra tudo quanto laboriosamente escreveu o especialista: "O melhor que nos é dado vem-nos por mediação do delírio, que é, sem dúvida, um dom divino. A profetiza de Delfos, as sacerdotisas de Dodona, quando estavam inspiradas pelo deus, deram aos gregos avisos que os encheram de benefícios na vida pública e na vida privada; mas, no seu estado de consciência normal, pouco sabiam ou nada. É necessário que lembre todos aqueles que, praticando a adivinhação que um deus inspira, disseram a tanta gente e tantas vezes o curso da sua vida futura? Seria perder tempo a dizer o que é evidente para todos nós".

"Eis o que vale a pena trazer aqui: os homens que, na antiguidade, estabeleceram os nomes não consideravam o delírio (manía) uma manifestação vergonhosa e um opróbrio. Se assim tivessem pensado, não teriam ligado este nome ao nome da arte por excelência que é a arte de adivinhar o futuro (manikê). Viam no delírio uma bela coisa, dado que provinha de uma dádiva divina, e por isso o nome de manikê. Os modernos, tendo perdido o sentido do belo, juntaram à palavra um t e deram à arte divinatória o nome de mantikê".

Quando o antiquário regressou do Norte, comuniquei-lhe o que tinha visto.

- Aí tem - disse ele - um exemplo bem claro do modo de proceder germânico.

- Mas o autor da "notícia" é francês...

- De formação alemã. Na Alemanha têm-se escrito centenas de estudos sobre o Crátilo a dizer o mesmo e muito antes de os franceses abrirem a boca. O que é revoltante é que essa mentira de dar o Crátilo como um diálogo imaginado para parodiar as etimologias que nele se estabelecem seja apresentada como o resultado de uma investigação rigorosamente científica, que os estudantes de filosofia universitária são obrigados a aceitar sob pena de serem reprovados. Onde é que está a objectividade? É ciência a que finge ignorar o que você viu no Fedro? As "etimologias" são ridículas para Platão. Porque as utiliza então noutros diálogos em momentos da mais perfeita seriedade?

Era a primeira vez que o via zangado, mas, de repente, calou-se e vi que a sua respiração era tranquila.

- O que eu não vejo - disse eu - é o que eles ganham em pôr Platão contra si próprio.

- Não vê? Julguei que, com o que eu lhe tenho mostrado, já estava em situação de o saber. Pretendem desprestigiar a Cabala, que usa exactamente os mesmos métodos de Platão na explicação dos nomes: a Temúria, a Guematria e a Notaria. Não a atacam directamente, mas indirectamente.

Vi perfeitamente onde ele queria chegar, à tal ideia da conspiração, mas levantava-se no meu espírito uma perplexidade. Havia outro modo de explicar os fins da erudição europeia, que a defendia e punha acima de qualquer crítica. Eu continuava a resistir à ideia da conspiração.




- Com Franz Bopp, (se não estou enganado ele foi o primeiro a estabelecer isso) o étimo de uma palavra é a palavra que lhe deu origem na passagem de uma língua para outra. Assim, por exemplo, a palavra senhor tem como étimo a palavra latina senior. Esta produção de uma língua a partir de outra língua obedece a rigorosas leis de transformação fonética, pelo que temos que considerar a etimologia uma verdadeira ciência. As etimologias de Platão, não o podemos negar, são por tal modo arbitrárias que bem devemos dizer que o daimon que inspirava Sócrates era o demónio da fantasia. É natural e até louvável que não se queira comprometer o superior pensamento de Platão com tais disparates.

Ouviu-me tranquilamente até ao fim.

- Não. Uma vez que o António Telmo verificou o que verificou, que as etimologias são de Platão e são para Platão verdadeiras explicações dos nomes, o que temos de compreender é como "o superior pensamento de Platão" pensa esses disparates.

- Como é que os garante... - murmurei.

- Exactamente. Olhe, vou-lhe ensinar uma coisa. Você diz que o que ali vemos em actividade é o génio da fantasia. De facto, como o próprio Sócrates o declara, podemos juntar letras, tirar letras, trocar letras. Parece assim muito fácil explicar qualquer nome e dar dele a explicação que quisermos. Experimente fazê-lo com, por exemplo, a palavra céu.

- O que é que devo fazer precisamente?

- O que Sócrates fez com os nomes que explicou: encontrar a palavra ou as palavras que estão escondidas na palavra céu, mas por tal modo que uma nova significação venha iluminar a significação corrente, enchê-la de profundidade.

Pus-me à procura e não encontrei nada.

- Como vê, não é fácil. Não é sequer possível num estado normal de inteligência. Se fossemos capazes de pensar a ideia do céu, eu não digo a ideia de céu, em ligação com a palavra que a designa, logo se apresentariam a exprimir o pensamento a que tivemos acesso as palavras foneticamente concordantes ou convergentes.

É o que Fernando Pessoa fez com a palavra Mensagem. Pensou-a à luz da ideia de levantar do chão o seu povo. Na sua qualidade de bateleur que faz da mentira uma verdade e da verdade uma mentira, sentou-se à mesa operativa de escritor e deixou-se possuir pelo daimon da analogia. Reconduzindo a palavra ao latim, jogou com as suas letras, desencobrindo os seus possíveis sentidos dentro da ideia vivente de Pátria concebida pelo seu espírito. Encontrou assim as seguintes significações: "MENS AGEM", "MENS AGITAT MOLEM", ENS GEMMA", "MENSA GEMMARUM", isto é, "A mente actua, "A mente remove as massas", "O ente pérola", "A mesa das pedras preciosas", aquela mesma mesa que é a mesa do bateleur (in ob. cit., pp. 31-35).



Fernando Pessoa



Continua


domingo, 22 de maio de 2011

O Bateleur (i)

Escrito por António Telmo








A CONSPIRAÇÃO DOS LINGUISTAS


... A linguística sempre me tinha aparecido como uma actividade intelectual neutra ou neutral nas grandes lutas dos espíritos que se ocupam de filosofia, de religião ou de política. Via nos linguistas uns seres humildes e trabalhadores tão inofensivos como os coleccionadores de selos ou de moedas que organizam catálogos para outros coleccionadores. Depois do que ouvi a Tomé Natanael, dizia para mim: "A linguística só tem interesse para os linguistas. Lêem-se uns aos outros. Formam entre si uma esfera fechada que roda sobre si mesma. Não pretendem sair dessa esfera para influenciar outras zonas de acção do pensamento. São dotados de uma grande paciência e de um grande interesse pela minúcia. Estudam as engrenagens da língua com o espírito de um relojoeiro perante a engrenagem de um relógio. A influência que possam ter no mundo é nula como a do relojoeiro: este não impede que o tempo continue inalteravelmente a passar, aqueles que se continue a falar como Deus dá".

Pus estas interpretações a Tomé Natanael que sorriu, olhando-me com amizade:

- A linguística é o que há de mais importante, porque o seu objecto é a palavra, sem a qual não poderíamos pensar e comunicar o nosso pensamento.

- Mas têm os linguistas consciência disso - perguntei eu - ao ponto de se entenderem entre si numa conspiração?

- Os menores não têm. São simples instrumentos.

Tentei resistir:

- A história da linguística tem sido contada muitas vezes e sempre da mesma maneira. Não há dúvidas de que se estabeleceu como ciência no princípio do séc. XIX, ao longo do qual se foi desenvolvendo até aparecer na forma do "estruturalismo" que domina todo o séc. XX. O que ficou para trás é pré-história.

- Até agora que eu saiba ninguém disse que o estruturalismo constitui uma reacção dos judeus contra a linguística alemã.

Sempre que ele mencionava elogiosamente os judeus, sentia-me incomodado interiormente; era como que uma sensação de uma ameaça indefinível que lembrava aquela que, no conto, o poeta tivera ao visitar a exposição [1]. Pareceu notá-lo, porque disse:

- Não pense que eu estou inteiramente de acordo com o estruturalismo. Sou um cabalista e, por isso mesmo, alguém em quem se concilia o judaísmo com o cristianismo. Eu nunca poderia subscrever esta afirmação de Emílio Benveniste: "Eu considero a praga a expressão blasfematória por excelência, inteiramente distinta da blasfémia como asserção difamante em relação à religião ou à divindade (assim a "blasfémia" de Jesus proclamando-se filho de Deus, Marc 14,64)".

Fiquei estarrecido.

- Emílio Benveniste escreveu isso?

Foi até a uma estante, tirou um livro, abriu-o numa dada página e entregou-mo. Voltei a ler o que ele dissera de memória. Era o segundo volume nas Edições Gallimard de Problemas de Linguística Geral. A página era a 254.

- Está aí a prova do judaísmo de um dos mais notáveis estruturalistas do nosso tempo. Mas repare nos nomes dos outros famosos: Jacobson, Noam Chomsky, Benjamin Lee-Worf, Eduardo Sapir... Há nos escritos destes homens evidentes relações com a Cabala, mas só Benjamin Lee-Worf se lhe refere explicitamente, dando-a como base do seu pensamento linguístico.

Não estava a compreender. Ele dissera, há instantes, que era um cabalista e, por isso mesmo, alguém em quem se conciliava o judaísmo com o cristianismo; mostrara, depois, como Benveniste se opunha ao cristianismo nos termos próprios de quem segue a religião de Moisés; dizia agora que os estruturalistas, entre os quais punha Benveniste, eram cabalistas, velada ou declaradamente. Mostrei-lhe estas contradições como se viessem da obscuridade do meu espírito.

Moisés e a serpente de bronze


Defendeu-se assim:

- A Cabala é uma coisa muito antiga. É propriamente a tradição secreta hebraica. Jesus Cristo foi o supremo cabalista, como pode facilmente ver-se nos Evangelhos. Os judeus ortodoxos desconfiam da Cabala, porque vêem nela uma possível garantia para o cristianismo. Você conhece os livros do maior historiador judeu da Cabala, G. G. Scholem? Deu-a como nascida no século XII, tirando-lhe assim o prestígio da sua antiguidade milenária; explicou-a como uma forma da gnose cristã com vestes hebraicas. A verdade, porém, é que há uma Cabala hebraica, tão antiga como Moisés; há uma Cabala cristã, tão antiga como Cristo e há a Cabala de Portugal, que é a minha, e que faz a síntese das duas. (Perdoe-me lembrar-lhe: não foi esta síntese que inspirou a sua Gramática Secreta da Língua Portuguesa?). Como Tomé, de meu nome, reactualiza-se em mim o irmão gémeo de Jesus e como Natanael o judeu sábio que o procurou. Mas você é Telmo e tem, por isso, de pensar-se à luz do que é Hermes. É a razão por que lhe dei a ler o conto e lho dei para que fizesse dele o que quisesse. Não lhe digo a relação com Hermes que há no conto. É você que tem que descobri-la.


A PRIMEIRA FIGURA DO TAROT


O que é que Telmo teria que ver com Hermes?

Depois de ter consultado vários dicionários onomásticos que nada me disseram, deparei por acaso com a explicação. É sempre assim. Estudamos, estudamos. Seguimos todas as pistas possíveis e imaginárias e um dia, quando já estávamos a ponto de desistir, deparamos por acaso com a solução do problema.

Eu tinha comprado um livro de Rodrigues Lapa de que não me lembro o nome. Cheguei a casa e pu-lo numa estante para o ler mais tarde. A minha cadela que tem um nome foneticamente parecido com o meu, o nome de Elba, ficou muito contente de me ver entrar e, observando que eu saía de novo sem a levar comigo, ficou furiosa. Foi-se ao livro onde ficara o cheiro das minhas mãos, arrancou-o da estante e rasgou-o com os dentes em pedaços. Quando, horas depois, regressei a casa, deparei com este miserável espectáculo. Apanhei do chão uma folha que me pareceu em melhor estado e vi, espantado, que ali estava a explicação do meu nome. Diz o ilustre filólogo que havia na Galiza, algures, o culto de Hermes. O cristianismo apropriou-se desse culto, interpretando o deus grego como um dos seus santos. De Santo Hermes veio Santo Ermo e depois Santo Elmo e por fim São Telmo. Fiquei assim a saber que Telmo era uma modificação de Hermes, graças à fúria da minha cadela e ao seu amor por mim. Mas o que é que isso tinha que ver com o conto?

Encontrei a resposta à minha pergunta num livro sobre o Tarot que comprara anos antes e nunca tinha podido ler. É um livro de uma portuguesa. Thereza de Melo, que tem por título completo O Tarot, A Arte de Adivinhar com Cartas. Ali, obtive a seguinte afirmação sobre a primeira figura do Tarot, aquela mesma que o protagonista do conto queria realizar em si:

"O mágico exprime o primeiro estado de consciência, a construção de uma personalidade que pode manifestar-se como expressão de uma vontade firme ou como um manejo de máscaras, ilusões e enganos. Em ambos os casos representa pictoriamente Hermes-Mercúrio.

"Hermes, filho de Zeus e Maia - o Céu e a Terra - é o mediador. Daí os seus atributos hermafroditas: fusão do masculino e do feminino; para os alquimistas, Mercúrio era um elemento neutro.

"Segundo uma lenda, tendo-se desgostado de seu irmão Apolo, Hermes deu-lhe uma lira para se reconciliarem e, em troca, recebeu uma vara cujo poder consistia em apaziguar as querelas e conciliar as oposições. Hermes encontrou-se com duas serpentes que lutavam ferozmente e interpôs a sua vara: as serpentes entrelaçaram-se à volta da vara, formando o caduceu. As duas serpentes simbolizam as duas formas de energia: masculina e feminina, e Hermes aparece como conciliador. Esta função de mediador leva-o a ser o mensageiro dos deuses, o intermediário por excelência. O seu dom da palavra e da eloquência dá-lhe a ambiguidade do verdadeiro e do falso. É um mago e, simultaneamente, um prestidigitador.

"Hermes está vinculado a Thot, que também traz um bastão característico da conciliação e da imortalidade.

"Também é interessante a conexão do Mago com o mito de Prometeu. Assim como Hermes tentou roubar o raio de Zeus, também Prometeu procurou roubar o fogo divino com um ramo oco de funcho (a vara que o Mago ostenta na carta?). A este Deus mediador se atribui o cômputo do tempo, a invenção do alfabeto e dos números, a medicina e a previsão do futuro.

"Em todos estes casos as conexões dos mitos apontam ao manejo do poder de conciliar os opostos - daí as figuras hermafroditas.

"O caduceu, a vara de Thot e o ramo de funcho de Prometeu simbolizam a vara do Mago: domínio da magia e da palavra, sinal de vontade. Esta personagem, é sempre rodeada pela ambiguidade do real e do ilusório, da verdade e da mentira, do saber e da astúcia.






"Atribui-se-lhe a letra Beth, que significa casa. Daí a conexão com Hiram e a Construção = Maçonaria".

Compreendi, ao ler este texto, que o antiquário me sugeria a imitação do deus. De leitor do conto eu passaria a actor.

A ideia não me agradou porque punha em perigo a minha inteligência. Os manicómios estão cheios de desgraçados que passeiam pelos corredores as sombras de Napoleão ou de Cristo. A vida dos homens que seguem, neste mundo, a atracção do espírito apareceu-me, de repente, como um manicómio. Sempre amei as manhãs lúcidas de Verão. Compreender ou não compreender essa é que é a questão. A outra, a de Hamlet, acaba sempre em tragédia.

O que me fascinava, neste conjunto de acontecimentos intelectuais que venho narrando, era que, sem que se visse que alguém o quisesse, todo ele se formava à volta da ideia de Hermes: era a descoberta da significação do meu nome, era o conto e a primeira figura do Tarot, eram as nossas conversas sobre a linguística.

Fui a casa do antiquário para lhe dizer isto mesmo que aqui pus, que não me interessava minimamente a imitação do deus, mas sim compreender o que ele ensinou aos homens sobre a linguagem.

- Não sei se é possível uma coisa sem a outra. Você já leu o Crátilo?

Respondi que sim, embora já não me lembrasse bem do que Platão ali dizia.

- Mas lembra-se, com certeza, de que o diálogo nasce e se desenvolve por causa do nome de Hermógenes. Tudo começa com uma discussão entre um jovem chamado Hermógenes e Crátilo, aquele mesmo que deu o nome ao diálogo. A opinião de Hermógenes é que os nomes que damos à multidão dos seres têm uma origem convencional. Assim, a flor chama-se flor, não porque haja qualquer relação directa ou indirecta entre os elementos da palavra, aquilo a que chamamos fonemas, e a essência da flor real, mas porque se combinou designá-la assim. Poderíamos dar-lhe qualquer outro nome. E é o que, de facto, argumentava ele, acontece com a variedade das línguas. Cada uma designa a flor de modo diferente.

Crátilo via naquela opinião de Hermógenes o sinal inequívoco de ele estar de fora perante a ciência das letras, a antiquíssima ciência, outrora ensinada aos homens por Hermes. À luz dessa ciência, à qual os iniciados davam escondidamente o nome de "hermética" e os profanos o de "gramática", a palavra flor era síntese de quatro fonemas, significativa do que era realmente a flor: um sopro de vida (o f) levantando (o l) o ser invisível da planta até à forma suprema de uma esplendorosa rotação (o o e o r).

Compreende-se assim que o Crátilo dissesse ao jovem, pois que o seu nome significa "da geração de Hermes", que não dizia nada quem o chamasse por Hermógenes.

Sócrates surge no momento em que a oposição entre os dois parece irredutível. Ele vem como o terceiro, como aquele que tem um ponto de vista superior ao do primeiro e ao do segundo. Não assume a atitude desdenhosa do iluminado Crátilo. Propõe-se logo iniciar Hermógenes na sabedoria transmitida pelo deus. O facto de se chamar Hermógenes é, ao contrário do que pensa Crátilo, o sinal de que o jovem tem, no próprio nome, a marca de uma predestinação hermética. Sócrates vai proceder de modo a que ele tome consciência de si como de uma manifestação do deus Pan, filho também de Hermes, segundo o mito. Todavia, a duplicidade de Pan, metade homem metade bode, uma vez assumida, pode levar ou à realização de uma natureza superior ou à degradação que conduz à subconsciência animal.

E concluiu:

- Como vê, também Platão ensina que uma coisa não é possível sem a outra. A verdadeira compreensão é sempre a relação do ser com o saber (in O Bateleur, Edições Átrio, 1992, pp. 21-29).


[1] Alusão a Fernando Pessoa visitando uma exposição de caricaturas apresentada por Almada Negreiros. Este episódio encontra-se descrito no Bateleur, nomeadamente em «Um Conto Exemplar».




Almada Negreiros



Continua


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Linguística

Escrito por Álvaro Ribeiro




Manuel Kant




A linguística, ou ciência dos fenómenos da linguagem, é tida pela maioria dos historiadores como fundada na primeira metade do século XIX e especialmente devida aos trabalhos dos sábios alemães. Esta tese, que se encontra em qualquer compêndio de filologia, comprova a verdade de que a Alemanha, quando propôs e impôs métodos históricos para o estudo das ciências do espírito, visava a profunda transformação cultural da Europa Contemporânea. Só no estudo da política internacional, de Napoleão até aos nossos dias, poderá verificar-se se a cultura constituída e difundida pelos sábios alemães foi de proveito para os seus fundadores ou beneficiou povos mais astuciosos e mais favorecidos pela sorte.

Durante muitos séculos esteve a Alemanha subordinada à cultura greco-latina, embora por vezes contra ela reagisse em nome de um espírito nacional; mas desde que Manuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura (1781), exarou a célebre sentença sobre a lógica de Aristóteles, ou sobre a lógica dos aristotélicos, tornou-se claro na filosofia alemã o propósito de resolver em novos termos, diferentes dos escolásticos, o problema ingente da relação do pensamento com a linguagem, quer dizer, o problema central da psicologia. O método histórico, aplicável às ciências do espírito, atribuiu maior valor à relação cinemática de antecedente a consequente do que à relação estática de sujeito e predicado, e a filosofia alemã, situando assim a causalidade na temporalidade, logo se apressou a opor a vontade certa à representação incerta, quer dizer, a opor o mundo numenal ao mundo fenomenal. Todos quantos admiramos as obras literárias de Goethe, Schiller e Novalis, todos quantos admiramos as obras científicas de Fichte, Schelling e Hegel, todos quantos admiramos as obras místicas de Eckhart, Boehme e Silésius, lamentamos que a cultura oficial alemã esteja prejudicada por demasiado apego à Terra.

A cultura europeia, em tudo quanto não significou repetição anacrónica de moldes clássicos e escolásticos, desenvolveu-se em réplica de simpatia ou de antipatia ao romantismo e ao idealismo dos Alemães, porque os outros povos do Continente não conceberam nem realizaram uma filosofia superior. A ciência «moderna» havia contribuído para a separação entre os estudos filológicos e os estudos filosóficos, causando assim a decadência e o descrédito da Escolástica. Os pensadores europeus, perturbados pelo preconceito da oposição a Aristóteles, deixaram de ver as relações de homologia e analogia que existem nas ciências do espírito, o que equivale a dizer que não viram, nem puderam ver, o significado profundo da revolução cultural levada a efeito pelo pensamento alemão.

A linguística alemã, ao redescobrir a antiga verdade, pareceu oferecer ao mundo uma revelação. Frederico Schlegel, na sua obra Uber die Sprache und Weisheit der Inder (1808), chama a atenção dos linguistas para o parentesco do sânscrito com o grego e o latim, mas também com o persa e o alemão; Jacob Grimm na sua Deutsche Grammatik (1819-1822) estudou a história fonética das línguas germânicas e induziu empiricamente as respectivas leis; Franz Bopp, que em 1820 publicava o primeiro estudo comparativo dos sistemas de conjugação, publica em 1833 a 1852 a sua obra principal que estabelece as bases científicas da gramática comparada. Ainda que para outros se reivindique prioridade ou colaboração nesta fase de estudos, como o inglês William Jones e o dinamarquês R. K. Rask, certo é terem sido os Alemães os criadores da chamada ciência linguística (1).

Interessa-nos prestar maior atenção a que, depois do idealismo e do romantismo (quer dizer, depois da morte de Hegel, ocorrida em 1831), os sábios alemães se deram ao cuidado de reconstruir a linguística românica. Não têm sido suficientemente estudadas as causas profundas do interesse dos Alemães pela história linguística do Império Romano. Seja qual for a motivação profunda, certo é que de 1836 a 1844 Federico Diez escreve a Grammatik der romanischen Sprachen, traduzida para francês em 1844, que haveria de valer de lei por muitos anos nos ambientes universitários (2).




Emílio Littré




A filologia portuguesa adopta, a partir de 1868, o positivismo alemão. É efectivamente nessa data que Adolfo Coelho publica a Teoria da Conjugação Portuguesa, seguido depois por José Leite de Vasconcelos, numa actividade que culmina na Gramática Histórica da Língua Portuguesa de José Joaquim Nunes. Estes filólogos ilustres, que professaram no Curso Superior de Letras de Lisboa, e depois na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foram efectivamente os mais fiéis representantes do positivismo alemão, ao lado de outros filólogos, também ilustres, que seguiam outras orientações, nomeadamente a de Littré (3).

Trabalhadores metódicos e incansáveis, eles reflectiam entre nós as características que o positivismo imprime na metodologia nos estudos históricos. Os Alemães, justamente porque exercitam a vontade, a paciência e a memória, no escrupuloso respeito dos documentos escritos, são exímios na compilação de verbetes, na composição de bibliografias, dicionários e enciclopédias, mas abstêm-se quanto possível de aventuras no descobrir as causas de relação ou de correlação. Esses estudos de biografia das palavras, desde o documento mais antigo até ao mais recente, acumularam-se em extensos dicionários etimológicos, aliás famosos, como o Romanisches Etymologisches Wörterbuch de W. Meyer Lübke.

Sem documentos não se faz história, dizem os positivistas que vão imitando os transformistas nas escavações paleológicas e paleontológicas. Reconhecida, porém, a prioridade da fala sobre a escrita, e consequentemente o valor da tradição, não podem os linguistas deixar de fazer conjecturas sobre as diversas alterações que cada palavra sofreu ao passar da forma mais antiga para a mais recente. A hipotética, ou metafísica, reconstrução dessas formas intermediárias (a que os linguistas, amigos de estrelas, costumam antepor um asterisco, para avisar o leitor de que em parte nenhuma da Terra viram tais formas nos documentos gravados ou escritos), é trabalho mental que pressupõe confiança nas leis naturais da fonética ou na convicção de que estas actuam com a necessidade das leis astronómicas.

Esta ilusória convicção dos linguistas tende a desaparecer na medida em que a própria fonética deixar de se cingir à descrição do aparelho fonador segundo o modelo que nos tratados de anatomia parece valer de esquema uniforme para a humanidade. Ante o reconhecimento de que a emissão de voz difere de pessoa para pessoa, ou pelo menos de que há a considerar diferenças de idade, de sexo e de raça, a classificação dos fonemas reais ou possíveis abre zonas de indeterminação, contingência e liberdade que não eram admitidas pelos positivistas. A actividade fisiológica, que é a emissão de voz, poderá ser demoradamente estudada mediante aparelhos de registo muito delicado, mas só interessa à linguística na medida em que a fala existe para um estímulo psicológico, ou seja, para uma cultura tradicional.

Também os fenómenos fonéticos, devidamente coleccionados, classificados e catalogados pelo primeiro método científico, que é o método empírico, nos parecem susceptíveis de ser subordinados a leis pelo princípio de indução. No estudo da fonética pelo segundo método científico, que é o método analítico, há que evitar a ilusão de descobrir os elementos simples e o erro de reconstruir com eles os fenómenos catalogados, porque em tudo quanto se relaciona com a antropologia os cientistas inclinam-se e precipitam-se, fazendo descer o que é psicológico à ordem do fisiológico, o que é orgânico à ordem do mecânico. No estudo dos fenómenos fonéticos há que ter presente que a imagem auditiva, transmitida por tradição, tem primado sobre as condições orgânicas de quem fala e, finalmente, sobre o resultado gráfico dos registos mecânicos, mais ou menos aperfeiçoados dos laboratórios (4).

Os documentos gravados ou escritos, obras de letrados, poderão representar o paradigma cultural oferecido à língua, visto que a língua é um orgão de cultura, mas não representam a língua tal qual se fala na respectiva época. Há, pois, que estudar a história étnica e a história política antes da história linguística. A dificuldade que ainda hoje existe em determinar os povos que habitaram o território que de há séculos se chama Portugal, e consequentemente a dificuldade de determinar os seus hábitos fonéticos, deixam insolutos muitos problemas da adaptação dos povos analfabetos à progressiva latinização do nosso vocabulário, da nossa sintaxe e da nossa lógica (5).



A Europa segundo o geógrafo e filósofo grego Estrabão.




Considerando que esta faixa ocidental da Península Ibérica foi colonizada e povoada por gente de línguas semíticas com as suas características de pronúncia e de flexão, não podemos deixar de estudar os vestígios que essa tradição deixou em todas as fases históricas da língua portuguesa. Deve-se a Teixeira de Pascoaes a doutrina admirável acerca do equilíbrio entre o elemento semita e o elemento árico na formação da mentalidade portuguesa. Há que estudar, primeiro, as línguas dos povos que estiveram nesta faixa de Península Ibérica se quisermos constituir a sério a filologia portuguesa, e devemos deixar para segunda fase a comparação com o latim e com as línguas românicas, segundo a metodologia de Além-Pirenéus e de Além-Reno.

Não é, porém, consolador o panorama actual dos estudos de filologia portuguesa. Não falando já da má organização destes estudos no quadro do ensino público, porque tal assunto foi inteligentemente discutido pelos melhores especialistas, bastará olhar de relance para o inventário das obras publicadas nos últimos anos. Em jornais, revistas e boletins vão sendo insertos alguns trabalhos que hão-de esquecer se não forem recolhidos em livros, mas entre eles avultam as notas sobre questões de ortofonia, ortografia e etimologia, materiais que aguardam o momento de serem incorporados num grande dicionário da Língua Portuguesa. Além destes trabalhinhos sobre palavras, que correspondem a uma fase já passada da ciência, não regista o bibliógrafo grande número de monografias sobre os fenómenos linguísticos, classificados segundo uma nomenclatura actual, nem consequentemente sobre os fenómenos psicológicos que justificam ou explicam os fenómenos linguísticos.

(...) Muitos indícios de reaproximação entre a filosofia e a filologia, entre os quais a opinião corrente de que não há verdadeiro filólogo sem preparação filosófica, nem verdadeiro filósofo sem preparação filológica, aguardam, porém, a inteligência que os coordene, proponha e imponha à aceitação das pessoas de mediana cultura e de influência política. Enquanto não for estabelecido, nos cursos das Faculdades de Letras, o programa de ensino que corresponde à metodologia aristotélica, enquanto a filosofia portuguesa não for ensinada pelo professor de filologia portuguesa e de literatura portuguesa, continuaremos a ignorar a significação da nossa atitude actual e histórica perante os problemas humanos, os segredos naturais e os mistérios divinos. Enquanto não compreendermos também que na escola secundária o mesmo professor deve ensinar língua portuguesa e filosofia portuguesa, segundo um método que garanta a união do espírito com a letra, poderemos considerar radicalmente errado o nosso sistema de ensino público (in A Razão Animada, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2009, pp. 61-66).


Notas:

(1) Louis H. Gray, Foundations of Language, New York, 1939.

(2) Otto Jespersen, Language - Its Nature, Development and Origin, London, 1922. A. Meillet, Linguistique Historique et Linguistique Générale, Paris, 1948-1952.

(3) José Leite de Vasconcelos, «A filologia portuguesa - esboço histórico» (1888), in Opúsculos, vol. IV, Coimbra, 1929.

(4) Rodrigo de Sá Nogueira, Tentativa de Explicação dos Fenómenos Fonéticos em Português, Lisboa, 1941.

(5) Francisco Adolfo Coelho, «Introdução sobre a língua portuguesa», in Frei Domingos Vieira, Grande diccionario portuguez ou thesouro da lingua portugueza, exposto e aberto ao publico, Porto, 1871-1874.